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[Saint Seiya] Prisão das Asas - Parte 1, escrita por Nemui

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Autora: Nemui
Fandom: Saint Seiya
Gênero: drama, aventura
Classificação: 16 anos
Status: Completa
Resumo: A vida de Hyoga se transforma quando entra em contato com um mundo completamente diferente do seu.



Acendendo a arandela, Hyoga surpreendeu-se com a chegada da noite em plena tarde naquele dia. Nuvens espessas cobriam Kohotek, advertindo a chegada de uma nevasca atípica. Sentia o vento gelado nas costas, mesmo sob o casaco de pele que vestia e a proteção de seu cosmos. Muito em breve teria de entrar e permanecer confinado para não ser pego desprevenido, pois sabia que o tempo não teria piedade naquela noite.

Apressou-se para limpar o peixe que seria seu jantar e voltou para dentro, pensando apenas nos afazeres do dia. Envolvido pelo calor da lareira e do forno que deixara aquecido, sentia-se afortunado por não ter de preocupar-se com muito mais do que aquilo. Apesar de admirar a praticidade das cidades, a vida em Kohotek também possuía suas vantagens, como a simplicidade das tarefas.

Colocando o peixe no forno, jogou-se na cama, exausto devido ao treinamento. Sentia que o dia não acabava antes de treinar ao menos quatro horas, aperfeiçoando as técnicas que herdara de Camus. Fazia seis meses que não recebia uma missão do Santuário, e isso o deixava relativamente entediado. Com a exceção de casos isolados, não tivera oportunidade de pôr seus conhecimentos à prova e até pensava viajar ao Japão apenas para treinar com os amigos.

Apesar de o dinheiro da viagem não ser problema por ser sócio da Fundação Grado, sentia angústia toda vez que desembolsava a passagem de avião para o Japão. Quando era criança, sua mãe esforçava-se ao máximo, de cidade em cidade, tentando juntar a quantia necessária para levá-lo na viagem. Sentia que era injusto esbanjar dinheiro daquela forma, tão imprudente. Preferia reunir com seus próprios esforços e viajar somente quando era requisitado.

Olhando através da janela, notou que a nevasca tinha se iniciado, com a violência que suspeitara. Sentou-se na cama e ficou a observar o gelo rasgando os céus com rapidez, distraído, enquanto esperava pelo peixe. Os vidros tremiam, lutando contra o vento, lembrando-o da época de tempestades. De fato, aquela era particularmente forte.

De repente, no escuro, Hyoga viu um vulto ser arremessado ao chão, cobrindo-se de neve. No início, achou que se tratava de um galho, mas logo percebeu que era um ser vivo.

‘Não é de surpreender que algum bicho saia voando nesta nevasca. Mas é estranho aproximarem-se da aldeia.’

Contudo, o que saiu da neve foi um braço nu. Quase que em reflexo, Hyoga saltou da cama e pegou o cobertor, alarmado. Nenhuma pessoa sem cosmos poderia sobreviver naquela tempestade desagasalhada. Correu até ela e cobriu-a com o cobertor, embora não conseguisse enxergá-la direito. O bramido impedia que a ouvisse quando gritou para ele, mas sabia que estava com hipotermia.

Ajudando a desconhecida a levantar-se, Hyoga guiou-a até a cabana, que quase desaparecia na nevasca, apesar de estar perto. Sentiu um enorme alívio ao fechar a porta e finalmente enxergar a pessoa que socorrera. Era somente uma criança, uma menina com cabelos ruivos.

“Você está bem?”

Tímida, a garota encolheu-se no cobertor, tremendo. Por um momento, Hyoga perguntou-se se era de frio ou de medo. Achando melhor deixá-la acalmar-se um pouco, voltou-se à cozinha e pegou um pouco de água para fazer um chá. Não era de seu feitio iniciar uma conversa, mas precisava descobrir quem era aquela garota. Enquanto colocava a chaleira no fogo, tentou dialogar.

“Eu fiquei surpreso quando a vi caindo na neve. Esta aldeia é tão remota que quase não temos visitas. Ainda mais em tempos como este. Mas não costuma ser assim nesta época, geralmente é mais seco. Acho que até amanhã, a tempestade cessa. Você pode ficar aqui até lá.”

A garota olhava para ele com neutralidade, sem demonstrar qualquer reação. Hyoga sorriu, embora sentisse que suas palavras de nada adiantavam.

“Eu sou Hyoga. E você?”

Ela hesitou um pouco, mas disse, em grego fluente.

“Eu não falo sua língua.”

Surpreso, Hyoga aproximou-se e voltou à língua que aprendera no treinamento a cavaleiro. Não falava grego desde a última vez que visitara o Santuário.

“Você é grega. Tem sorte de eu também saber grego. Eu sou Hyoga. Qual é o seu nome?”

“Ch- Charis.”

“Charis… Não imaginava que usaria grego na Sibéria. Você está bem? Não está machucada?”

Meneando com a cabeça, Charis viu Hyoga acalmar-se, relaxar visivelmente e sorrir, como se se recuperasse de uma brincadeira de mau gosto. Pousando a mão sobre a cabeça dela, sabia somente que estava assustada.

“Vou preparar algo quente para você. Tente descansar, está bem?”

Bolhas formavam-se no fundo da chaleira, quase fervendo, enquanto Hyoga se perguntava como uma criança que só falava grego viera parar em sua aldeia. Não sabia se era uma coincidência ou se tinha alguma relação com aquelas terras. Como uma organização que agia no mundo inteiro, o Santuário possuía grandes pedaços de terras em todo lugar, incluindo na Sibéria. Mesmo as terras cultivadas de Kohotek pertenciam a ele, sendo Hyoga o responsável por sua manutenção.

Ele sabia que a região onde morava continuava autônoma por ser protegida pelo Santuário, apesar do avanço das cidades e da tecnologia. O extremo leste da Sibéria era a base do Santuário na Rússia asiática, apesar de ser completamente habitada. Havia uma exclamação em sua mente dizendo que não se tratava de uma simples coincidência. Poucas pessoas desbravavam-se nas montanhas siberianas, não só pelo perigo, mas por pertencerem ao Santuário. Mesmo os cavaleiros precisavam de permissão para viajar até lá.

‘Será que ela veio de alguma base do Santuário…?’, pensou. Viu que a chaleira fervera e preparou uma caneca, em meio a pensamentos. Após a morte de Camus, Hyoga tornou-se o cavaleiro responsável pelos casos na Europa e na Ásia, junto com Shiryu. Por que não saberiam de algo tão importante em suas áreas de influência? Entregando o chá nas mãos da garota, aproveitou para obter informações.

“Aqui está. Tome cuidado, porque está quente.”

Charis aceitou e procurou esquentar as mãos na caneca, com frio. Observando-a, Hyoga sentou-se no banco à sua frente, pensando em como se aproximar.

“Quando o tempo melhorar, levarei você até a sua casa. É perigoso uma criança andar sozinha nestas bandas. O tempo é instável, tempestades como esta podem voltar. Pode me dizer onde você mora?”

Assustada, a menina encolheu-se mais ainda, olhando para baixo. Era como se lhe tocassem numa ferida, tão profunda quanto a própria alma.

“Eu… posso voltar sozinha… Eu preciso voltar sozinha… Desculpe.”

As suspeitas de Hyoga cresceram mais. Se ela precisava voltar sozinha naquelas condições, era porque o território era proibido a qualquer um. Charis parecia um animal encurralado na parede, tremendo. Ele achou que seria melhor recuar por enquanto.

“Tudo bem. Isso não é da minha conta mesmo. Mas é melhor que você vá depois de este tempo maluco desaparecer. Agora mesmo estou assando um peixe para o jantar, mas ele é grande demais para uma pessoa. É bom ter alguém para compartilhar.”

Recebendo um olhar de desconfiança, Hyoga levantou-se e foi até o armário à procura de roupas secas. Havia alguns casacos antigos, da época do treinamento, de quando ele ainda estava crescendo. Apesar do cheiro de mofo, sabia que era melhor que roupas molhadas na neve, que poderiam resultar num resfriado. Entregou-os a Charis, que terminava de beber o chá.

“É melhor que vista isto por enquanto, Charis. Sei que estão guardadas há muito tempo, mas se continuar com essas roupas molhadas, pode adoecer. Deixe as suas naquele cesto perto da parede que cuidarei do resto. Eu vou fechar a porta da cozinha para terminar o jantar. Quando ficar pronta, venha para comer.”

Fechando a porta da cozinha, Hyoga perguntou-se quando fora a última vez que tratara uma pessoa com tanta gentileza. Não fazia parte de sua natureza ser tão educado ou prestativo. Geralmente fazia favores pelas costas, sem que ninguém soubesse. E preferia que continuasse sendo daquele jeito.

Tirou o peixe do forno, desejando ter mais a oferecer de sua casa. Não era o tipo de pessoa que fazia questão de uma refeição completa; satisfazia-se com qualquer coisa que preenchesse o buraco do estômago. Contudo, um hóspede exigia um tratamento completo, o que ele não podia oferecer devido à tempestade. Se o tempo não fosse um obstáculo, tiraria um pouco da horta comunitária de Kohotek para preparar uma refeição decente.

Quando terminava de fazer a mesa, Charis entrou timidamente, enrolada no cobertor. Vestia o casaco que Hyoga emprestara, mas não parecia satisfeita com a temperatura.

“Está com tanto frio assim, Charis? Isso é estranho, aquele chá é ótimo para alguém com hipotermia. Ou é a sala? Pode tirar, a cozinha está bem quente por causa do forno.”

Charis recuou, mas obedeceu e tirou o cobertor. Hyoga surpreendeu-se ao ver uma estranha saliência nas costas da menina por baixo do agasalho. Aproximou-se, causando pânico na criança.

“Mas… O que você está escondendo aí?”

Olhando rapidamente pela janela, Charis viu que não havia saída. Ajoelhou-se no chão e abraçou-se nervosamente. Achando que escondesse um objeto por baixo do agasalho, Hyoga agarrou a gola e viu por dentro. Para a sua surpresa, não encontrou um objeto, mas um amontoado de penas marrons que terminava nas costas da menina, como parte do corpo. Charis começou a chorar, temendo pelo que viria a seguir.

Por um momento, ele ficou sem saber o que fazer. Jamais vira algo parecido, mas não queria assustá-la mais do que já estava. Ela tinha motivos para esconder aquelas asas de qualquer presença e temer pelo pior. Era apenas uma criança que sofria por ser diferente dos outros, que não possuía o direito de viver em paz. Ajoelhando-se, Hyoga procurou amenizar seu ato, em tom reconciliador.

“Desculpe. Você tem motivos para ter medo, não é? Mas eu prometo que não farei nenhum mal a você. Nenhum mesmo.”

Levantando-se, afastou uma cadeira para ela e sorriu gentilmente.

“Não sou um bom cozinheiro, mas espero que goste. Quando a tempestade passar, darei a você tudo que precisa para voltar para casa, se não quiser que a acompanhe. Não precisa se preocupar, pois vou guardar o seu segredo com muito cuidado.”

Observando-o desconfiada, Charis sentou-se na cadeira e deixou que lhe servisse um prato. Não havia como fugir e não era prudente ser hostil com aquele homem, que lhe oferecia abrigo, mesmo sabendo sobre suas asas. Mas temia que ele fizesse algo contra ela, como o último homem que a encontrara.

Hyoga serviu mais chá e tentou agir com naturalidade, enquanto se perguntava que tipo de criatura Charis seria. Encontrar uma menina que só falava grego no meio da remota Sibéria já era quase impossível. Descobrir que ela possuía asas era um absurdo sem igual. O máximo que podia fazer era permitir que ela partisse com segurança e depois fazer uma rápida pesquisa no Santuário para saber do que se tratava.

Com os próximos passos definidos, notou que o período que a garota não se alimentava era refletido em sua fome, atiçada pelo peixe. Ela comia tão rápido que, por um momento, Hyoga achou que se engasgaria com uma espinha. Recebeu um olhar envergonhado quando ela terminou.

“Obrigada, Hyoga… Por favor… Não conte para ninguém…”

“Eu prometo. Vamos, pegue mais. Estou vendo que não tem se alimentado direito, e você está em fase de crescimento. Sem falar que há bastante. Eu vou preparar a cama, precisa descansar para viajar amanhã.”

Levantou-se e arrumou a cama, ainda tentando buscar em sua mente a razão para tal existência. O medo que havia no rosto de Charis era verdadeiro, sabia que ela devia ter sofrido nas mãos de algum homem mal intencionado. Não podia fazer nada quanto àquilo, mas ao menos lhe daria uma noite confortável antes de partir. Deixou para si um velho colchão que estava guardado ao lado do armário e viu que a tempestade não diminuía. Definitivamente não era normal naquela época.

Quando Charis voltou da cozinha, deparou-se com a cama especialmente preparada para ela. Por que alguém se incomodaria daquele modo?

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Charis ainda dormia quando Hyoga se levantou. Olhando pela janela, o rapaz percebeu que a neve não parara de cair, apesar de o vento ter perdido sua força. Talvez ela tivesse que permanecer por mais algum tempo até que pudesse realizar uma viagem segura. Pensando no café da manhã, vestiu o casaco e saiu rapidamente, em busca de alimentos melhores à sua hóspede.

No entanto, quando voltou, encontrou uma cama vazia e nenhum sinal de vida na casa. Perguntando-se por que estava surpreso, pensou em segui-la, mas desistiu. Talvez já estivesse a quilômetros de distância. Se aquelas asas pudessem ser utilizadas, com certeza não poderia ser alcançada.

Mudando os planos, Hyoga pensou em tomar o café da manhã na vila vizinha, aonde teria de ir para vender os peixes de Kohotek. Reuniu-se com Yacov e seu trenó, ainda com Charis em mente. Naturalmente se preocupava por ter tido o trabalho de cuidar dela durante todo o tempo.

Ao chegar à vila, no entanto, suas atenções foram desviadas por um homem que ele jamais vira, circulando pelas ruas. Por lembrar-se de todos os moradores, estranhou ver um desconhecido entrar e sair da estalagem, apressado com algo. Mesmo achando que estava ficando paranóico, Hyoga insistiu em montar a barraca mais afastada do que de costume; apenas para ter a visão do homem.

Apesar de a vila ser próxima ao mar, era mais fácil comprar os peixes de Kohotek e assim evitar uma viagem que duraria cerca de duas horas. Para Hyoga, era a tarefa que cumpria para viver na aldeia, ao lado do túmulo de sua mãe. Achava uma chateação, mas sabia que era assim que a comunidade de Kohotek sobrevivia.

Naquela manhã, porém, ser um mero comerciante foi cômodo suficiente para descobrir o que acontecia naquela região. Quase no final de seu expediente, Hyoga viu, entre os transeuntes, o visitante arrastar uma criança pelo braço. A ponta do casaco que se revelava sob um cobertor não deixava dúvidas: era Charis.

“Yacov… Cuide da barraca um pouco. Preciso ver uma coisa.”

Correu atrás deles até alcançá-los e agarrou Charis pelo outro braço, impedindo-a. O homem virou-se hostil, como se Hyoga fosse um ladrão.

“Você! O que está fazendo com a minha filha?!”

Ajoelhando-se na frente da menina, Hyoga notou que ela chorava. Algo estava errado.

“Eu fiquei preocupado… Por que saiu daquele jeito?”

A garota permaneceu em silêncio, embora estivesse surpresa por vê-lo de novo. O homem voltou a puxá-la, irritado.

“Vamos logo, menina, o que está esperando?”

Hyoga segurou-o pelo ombro, firmemente. Fitou-o nos olhos, com uma fúria que nem ele mesmo sabia por que sentia, antes de perguntar em grego.

“Você é mesmo o pai dela? Responda!”

Mas logo percebeu que ele não falava grego. Divisando a verdade da situação, separou-o violentamente de Charis, e protegeu-a com o corpo.

“Seu miserável, se não fala grego, como pode ser o pai dela? Como pode recuperá-la depois de uma tempestade sem se preocupar? Que tipo de ser humano é você?”

“Eu sou o pai dela, e você não tem nada a ver! Vamos, garota!”

“Se é o pai dela, responda! Qual é o nome dela?”

Hyoga acertara a pergunta. Sem saber como responder, a única opção que restara era obtê-la pela força. Tentou acertar um soco no rapaz, que facilmente se desviou. Nervosa, Charis afastou-se, enquanto assistia assustada à luta.

Ao tentar acertar um segundo golpe, o homem levou um soco de contra-ataque, que o atirou ao chão, indefeso. Hyoga segurou-o pela gola do casaco e ameaçou-o, colocando toda a sua raiva em cada palavra que proferia.

“Se tocar nela de novo… Eu o mato. Ouviu bem? Não pense que vou hesitar com um miserável como você.”

Atirando-o contra o chão, o rapaz viu-o correr em retirada, enquanto Charis observava-o estupefata. Simplesmente não sabia dizer se o que ocorrera era bom ou não. Ainda não sabia se Hyoga era alguém confiável, ainda mais com aquela força.

“Charis, ele nem sabia o seu nome. Que espécie de pai é esse… Tratando-a assim. Venha.”

Os braços foram estendidos para ela. Havia uma escolha a fazer. Podia confiar naquele rapaz que a salvara e voltar com ele; ou correr e continuar fugindo. Vendo que ela demorava a tomar a decisão, Hyoga pegou do bolso a carteira de dinheiro, de onde tirou todas as notas que podia comportar.

“Você não tem a obrigação de vir comigo, Charis. Mas se quiser mesmo ir sem mim, então quero que fique com isto. Estava guardando para uma viagem, mas você vai precisar mais dele do que eu. Se pretende seguir em frente, pelo menos quero que tenha como se sustentar. Pegue.”

Diante de todo aquele dinheiro, ela notou algo de diferente naquele homem. Todos que a acolheram até agora eram homens egoístas, que só estavam interessados em obter dinheiro usando-a. Mas aquele Hyoga oferecia-lhe tudo que tinha para que ela pudesse fugir com segurança. Era algo que nenhum outro fizera por ela. Pensava em voltar para casa, queria ver a terra que deixara meses atrás, mas sabia seria uma jornada arriscada demais. Aproximou-se de Hyoga e olhou para o dinheiro. Ele continuava a oferecer-lhe.

Decidindo, Charis ignorou as notas e subitamente abraçou-o, superando o medo que sentia dos humanos. Se passara por tantos homens iguais, por que não tentar a sorte com aquele?

Surpreso, Hyoga sentiu que teria de mudar seus planos. Não sabia mais se era certo entrar em contato com o Santuário. Verdades simples como um abraço sincero eram suficientes para eliminar quaisquer dúvidas. Levantou-se com Charis nos braços e olhou para Yacov, que assistira a tudo da barraca.

“Yacov, vamos voltar mais cedo hoje. Esta pequena precisa de minha ajuda.”

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A repentina confiança de Charis deixara Hyoga intrigado, mas ao mesmo tempo aliviado. Sentia uma tristeza em seu olhar que de certa forma lembrava-o dele quando era criança. Podia ser apenas a imaginação, mas aquela tênue impressão fez com que ele mudasse seus planos e desistisse de entrar em contato com o Santuário. Não era o cavaleiro de Cisne que desejava aquilo; mas ele, o Hyoga.

Arrumava uma mala de viagens enquanto Charis observava a urna da armadura de Cisne, repleta de curiosidade. Naquela tarde, pedira a Yacov para cuidar da cabana enquanto estivesse fora. Não sabia por quanto tempo teria de viajar para levar a garota alada de volta ao seu lar. Era provável que cruzasse o limite permitido a ele e invadisse a área protegida do Santuário. Sabia que não sairia impune daquela aventura, mas algo dentro dizia que não se arrependeria daquela decisão.

“Hyoga… O que é esta caixa?”

“Ela guarda um tesouro muito importante para mim.”

“Você vai levar?”

“Não. Não vou precisar dela. É muito pesada e minha mala já está bem grande.”

Charis olhava para a urna de todos os lados, inquieta. De certo modo, Hyoga ficou satisfeito por ver que ela se sentia mais à vontade em sua companhia. Não temia segurar-lhe a mão quando andava e até sorria quando conversavam. Além disso, não tinha mais vergonha de mostrar as asas marrons como as de um falcão, abrindo-as de tempos em tempos como se espreguiçasse.

Fechando o zíper da mala, o rapaz contemplou a beleza das asas da menina, que possuíam a maciez de um filhote, mas o tamanho de uma ave adulta. Esperou que ela as recolhesse para cobri-la com um grosso casaco.

“Vista isto. Não quero que fique doente na viagem. Não há nenhum problema manter as asas recolhidas por tanto tempo?”

“Não tem jeito. As pessoas pensam que eu sou um monstro quando vêem minhas asas. Elas acham que são feias.”

A naturalidade com que Charis dissera aquilo causou um nó na garganta de Hyoga. Tentou disfarçar ajudando-a a vestir-se como se fosse um irmão mais velho. Em seguida pendurou a mochila nas costas e pegou a menina no colo, sabendo que a distância que teriam de percorrer era exagerada para uma criança. Sentia raiva ao pensar que a auto-estima de Charis estava tão baixa apenas por causa do lado podre dos humanos e queria fazer algo para compensar.

“Elas têm algum problema de vista então. Nenhum pássaro possui asas tão belas.”

A surpresa de Charis ao olhar para ele foi resposta suficiente. Sorriu com gentileza e saiu de casa, sem saber ao certo por que se arriscava daquela maneira por uma única criança. Seria a curiosidade em torno do fato de ela possuir asas ou seria o espírito que havia sido tocado pelo medo que ela possuía?

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As suposições de Hyoga estavam corretas quando viu Charis apontar ao leste, em direção às montanhas proibidas. Havia algo que o Santuário escondia, até mesmo de seus cavaleiros, no canto mais remoto do planeta. Ajeitando-a no colo, continuou a caminhar, vencendo a altura pacientemente, como se pagasse uma promessa.

Com a chegada da noite, não podia mais distinguir o caminho, acabando por tropeçar em algumas pedras no percurso. Sabia que já era hora de parar e acampar, mas insistia em continuar mais um pouco, pelo menos até encontrarem um abrigo decente para passarem a noite. Quando deslizou em um pequeno barranco oculto pelas sombras, Charis agarrou-se em seu peito e encolheu-se, assustada.

“Desculpe. Assustei você?”

“Tudo bem… Também não consigo ver nada…”

“Eu queria avançar mais um pouco para conseguirmos um abrigo, mas acho que é impossível. Na noite passada, conseguimos uma cabana, mas agora só encontro neve, por mais que ande…”

“Ninguém viaja por aqui. Como as pessoas da minha terra voam, não precisam de abrigo nas montanhas.”

“Não há jeito. Vamos ter que ficar aqui. O vento é mais fraco deste lado. Vou improvisar um abrigo para não passarmos muito frio. Desça um pouco.”

Com o pouco que enxergava, Hyoga armou uma tenda que usava durante as viagens. Não era confortável, mas era o suficiente para protegerem-se do frio naquela noite. Estendeu um dos cobertores que carregava no chão e deixou um mais grosso dobrado do lado, para quando fossem dormir. Do lado de fora, acendeu uma fogueira, cozinhou uma sopa instantânea e descongelou um pouco de carne.

Charis acompanhava-o em silêncio com os olhos, mas agitada. Procurava observar seus passos sob todos os ângulos, movimentando-se continuamente. Só se sossegou quando recebeu uma tigela de sopa e se sentou numa pedra, comportada. Apesar de mostrar paciência com ela, Hyoga não conversava muito e preferia comer em silêncio, como se estivesse de mau humor. Receosa, a menina olhava para ele e logo em seguida voltava a baixar os olhos à sopa. A ausência de palavras incomodava-a constantemente. Sentia que ele era o mais distinto humano que encontrara até então. Era o único que se preocupava de verdade com ela e dedicava o seu tempo apenas para levá-la de volta para casa. Alguém que cuidava dela tão bem não podia ser cruel de verdade.

“Hyoga…?”

“O que foi?”

Ele continuou a comer, repondo toda a energia que gastara carregando a bagagem e Charis montanha acima. Sabia que precisava mesmo de uma boa noite de sono, mas tentava cobrir o cansaço com comida. Intimidada, a garota pensou se devia mesmo perguntar a ele ou não. E se ele se incomodasse?

“Eu… Queria saber por que está fazendo isso… Por que está me levando de volta?”

“Ora, não era isso que você queria?”

“Sim, é claro que sim, mas… Você é um humano… Humanos não costumam… fazer essas coisas.”

“Por que não? Nós não usamos a palavra humano como qualidade?”

“É que… Os homens que cuidaram de mim só fizeram coisas ruins. Eles me exibiam como se eu fosse um monstro, me usavam pra ganhar dinheiro… Eles não gostavam de mim. Quando eu dizia algo, eles me mandavam calar a boca e me batiam… Como se eu tivesse feito alguma coisa errada. Você foi o único que não me tratou assim… Por quê?”

Hyoga parou de tomar a sopa e fitou Charis, incerto. Não havia como defender uma sociedade quando uma criança sofria daquele jeito nas mãos de homens sem escrúpulos. Pousou a mão direita sobre o ombro dela, revoltado com as besteiras que muitos ainda insistiam em fazer. Sentia que as feridas que ela carregava eram tão profundas quanto as que ele recebera quando criança.

“Há homens que não deveriam nem ter nascido. Mas há aqueles que reconhecem o valor de uma vida, Charis. Por trás dessas asas, existe uma vida que é você e ninguém mais. Eu não tenho o direito de machucá-la se não fez nada de errado. Você só quer voltar para casa. E eu só quero ajudar.”

“Por quê? Você quer delatar a posição de nossa terra ao mundo? Você pensa em escrever alguma coisa sobre nós? O que você vai ganhar com isso? O que você quer em troca?”

“Você sofreu mesmo… Tem razão em ficar desconfiada. Saber que voltou sã e salva é recompensa suficiente para mim. Se não confia, não precisa revelar a localização de sua terra. Quando puder alcançá-la sem minha ajuda, separamo-nos. Você pode voltar o resto do caminho voando, não é? Eu prometo que não prejudicarei seu povo de qualquer maneira.”

Encolhendo-se sob o casaco, Charis desviou o olhar, sem saber se devia acreditar naquelas palavras.

“Eu ainda não entendo por que faz isso.”

“Bem, espero que um dia entenda. Vamos terminar logo e dormir. Está esfriando cada vez mais e estou ficando com sono.”

Guardando as coisas, Hyoga entrou na apertada tenda junto com Charis, que sentia o receio crescer dentro de si. A última vez que dormira próxima a um homem, fora tratada como um animal. Contudo, aparentemente Hyoga não possuía esse tipo de comportamento. O rapaz deitou no cobertor e cobriu-se como se não houvesse ninguém ao seu lado. Sentia o corpo pesado demais para continuar acordado e pensava somente em descansar para o dia seguinte.

Mesmo com a tenda firmemente montada ao chão e com o cobertor oferecendo proteção nas laterais, Charis sentiu o vento penetrar e gelar suas costas, como um fantasma. Afoita, encolheu-se sob o cobertor e aproximou-se de Hyoga, cujo calor do corpo atenuava o frio. Vendo que ele não se importara, permaneceu daquele jeito, esperando o sono vencê-la.

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Charis estava aconchegada a ele quando acordou, na manhã seguinte. Notou que o vento cessara e que a temperatura aumentara um pouco, propiciando o clima perfeito para continuar com a viagem. Levantou-se, tomando o cuidado para não acordá-la, e começou a arrumar a mochila. Ao mesmo tempo, perguntava-se por que estava naquela viagem. Ele, que não estava habituado a cuidar dos outros, desobedecia à Athena e arriscava-se numa viagem com uma garotinha.

‘Eu devo estar louco’, pensava, enquanto sacudia Charis, que abriu os olhos, sonolenta.

“Charis, acorde… Nós precisamos continuar agora.”

Sentando-se sobre o cobertor, Charis viu Hyoga sorrir de uma forma que lembrava o seu pai.

“Dormiu bem?”

Percebendo que dormira quase em cima dele, corou, imaginando o quanto ficara vulnerável de noite. Hyoga começou a dobrar o cobertor, querendo iniciar a caminhada o quanto antes, já que a tempestade passara. Ainda havia razões para desconfiar dele. Ainda não sabia se ele não faria mal à sua terra. Mas ainda assim sentia que seu espírito acreditava nele. Segurou-lhe o braço quando ele se virava para amarrar o cobertor na mochila, impulsiva.

“Eu quero que você conheça a minha terra.”

Por um momento, ele pareceu surpreso. Achava que ela optaria pela segurança e se separaria dele no meio do caminho, para não revelar a localização de sua terra. Sentindo-se grato pelo voto de confiança que lhe acabara de ser depositado nas mãos, afirmou com a cabeça.

“Está bem. Prometo que vou levá-la até lá com segurança e que não farei qualquer coisa que possa prejudicá-los.”

Ele prometeu. Mas quantas promessas homens não quebraram? Quantas vezes ela não foi traída, machucada, maltratada? Como saber se o que ele dizia era verdade? E se ele era apenas mais um que sabia atuar com perfeição? Sentiu vontade de voltar atrás. Hyoga continuou a desmontar a tenda, e ela percebeu que não havia como voltar atrás. Restava voltar à sua terra e assistir às conseqüências.

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A inclinação da trilha aumentara, e Hyoga era obrigado a escalar em alguns trechos. Quanto mais subia, mais cansado se sentia e mais arriscado era. Sabia que aquelas montanhas pertenciam ao Santuário e que nem mesmo cavaleiros eram permitidos ali. No entanto, jamais ouvira falar de pessoas aladas no Santuário e que morassem na Rússia. Perguntava-se se o seu mestre também desconhecia esses seres que não constavam nem na mitologia.

Caminhou metade do dia quando avistou uma cidade no topo de uma montanha. Charis apontou como sendo a terra dos ‘homofalcos’, criaturas que surgiram na mitologia. Recuperando o fôlego, Hyoga fez Charis descer de seu colo e observou estarrecido. Era uma cidade tão isolada que dava arrepios no jovem; era quase uma cidade fantasma.

“Então aquela é a sua casa. Não é de surpreender que seja tão isolada e de difícil acesso.”

“Como nós voamos, não precisamos de caminhos que nos levem até lá.”

Observando em volta, procurou o melhor caminho para chegar ao topo. De todas as maneiras, teria de escalar aquela montanha sem nenhum equipamento de alpinismo. Notou que um dos lados da montanha era menos inclinado, o que permitia uma escalada razoavelmente segura para um cavaleiro. Pensou em descer a montanha sobre a qual estava antes, mas o descanso era urgente.

“Nós vamos dar a volta por ali para que eu possa subir daquele lado. Vai ser bem cansativo e eu estou exausto de tanto escalar. Vamos comer um lanche e depois continuamos.”

Tirando alguns salgados que comprara numa cidade, sentou-se numa pedra e passou a comer, tranqüilamente. Em breve descobriria o que o Santuário tanto escondia naquelas montanhas, mesmo sendo ele um dos cavaleiros mais fiéis a Athena. Charis parecia mais pensativa do que antes, e recusou-se a comer.

“Você deve estar louca para abrir as asas e voar para lá de uma vez só. Se quiser ir à frente, vá. Eu chego mais tarde.”

Cabisbaixa, a garota encolheu-se como sempre fazia quando ficava intimidada.

“Não é isso… É que estou preocupada com o que meu pai irá dizer. Eu fiquei tantos meses na terra dos homens, desobedeci e acabei saindo de casa… Ele deve estar furioso comigo.”

“Ele está é preocupado. Acalme-se. Verá a cara de alívio que ele fará quando encontrá-la, eu garanto.”

Hyoga bebeu alguns goles do cantil e guardou-o, resoluto. Queria chegar à terra de Charis antes do pôr do Sol, não sabia se era seguro escalar a última parte apenas com a luz de sua lanterna. Levantou-se e colocou a mochila nas costas, pronto para partir.

“Você pode voar?”

“Sim.”

“Terá de descer a pé. É muito íngreme, vou precisar dos braços.”

A neve cedia fácil e ele achou que a opção mais segura era descer escorregando em vez de procurar o melhor apoio ao pé. Jogou-se morro abaixo, tomando o cuidado para não tropeçar em nada, com Charis a acompanhar do lado. Com as asas abertas, não era problema para ela descer num vôo raso. Como aquela região era inóspita, não havia problema em mostrar suas asas ao mundo.

Continuando até a base da montanha, Hyoga traçou mentalmente o percurso até o topo, pensando em cada detalhe. Fez Charis subir em suas costas, sobre a mochila, e iniciou a subida, calmamente. Sabia que em situações como aquela, a pressa era uma passagem ao inferno, algo que ele não desejava de forma tão estúpida. Procurou um ritmo e escalou, com Charis a observar cada movimento seu.

Apesar de o dia ser curto no inverno siberiano, Hyoga conseguiu chegar ao topo antes de escurecer, mas as luzes da cidade já estavam acesas quando terminou. Ao atravessar o portão, os moradores, todos alados, observaram-no com terror. Preocupada, Charis segurava-lhe a mão como forma de protegê-lo contra os outros, que achavam que Hyoga fosse um monstro. Mesmo assim, ele sentiu a ponta de uma espada encostar-se no pescoço, vinda de um homem que acabara de aterrissar.

“Solte a minha filha.”

Havia dezenas de maneiras de defender-se de uma ameaça daquelas com suas técnicas de luta. Contudo, Hyoga preferiu permanecer parado, pois prometera não causar nenhum dano àquele povo. Charis abraçou o pai, afoita, tentando evitar o confronto.

“Não, pai! Ele é meu convidado! Não o machuque!”

“Convidado?”

“Sim… Ele me salvou e me trouxe até aqui… Por favor, ele não é mau.”

A espada afastou-se do pescoço e o homem cumprimentou-o relutantemente. A primeira impressão que Hyoga teve do homem era que possuía alguma aversão a humanos, mas respeitava a palavra dos outros. Cumprimentou-o de volta, observando as enormes asas que o carregaram até ali.

“Desculpe. Não sabia que você era um convidado de Charis. Sou Ájax, líder dos homofalcos. Espero que perdoe minha ousadia.”

“Eu sou Hyoga. Encontrei sua filha no meio de uma tempestade, em minha aldeia. Ela estava com problemas, então me ofereci para ajudar. Eu peço desculpas por vir até aqui.”

“Não… Se é um convidado da minha filha, então precisamos respeitá-la. É bem vindo para ficar, jovem. Estava tão preocupado com o sumiço de minha filha; sou imensamente grato por tê-la trazido a salvo. Deve ser difícil para um humano como você viajar até aqui. As montanhas desta região são cruéis aos alpinistas. Você deve estar cansado.”

Chamando um dos moradores, Ájax atraiu a atenção de outras pessoas, que logo se reuniram em torno de Hyoga, curiosas com a ausência de asas. Este supôs que aquela era a primeira vez que muitas viam um humano normal, pelas expressões de espanto.

“Por favor, preparem o quarto do hóspede enquanto o recebo apropriadamente. Charis, venha junto. Não agüentava mais a vida sem você.”

—————————————————————

A casa de Ájax estava longe de ser luxuosa. Construída a partir de rochas e de madeira das coníferas, assemelhava-se às cabanas de Kohotek em técnica. A única diferença era o generoso espaço que possibilitava a permanência de até cinqüenta pessoas na mesma sala. A mesa era igualmente rústica e mal acabada, com a aparência de velha. ‘É evidente’, concluiu Hyoga. ‘No meio de montanhas tão isoladas, não poderiam construir um palácio, por mais que se esforçassem’.

Serviram-lhe vinho, que Hyoga achou melhor que o da vila de onde costumava comprar. Havia uma poltrona trabalhada para Ájax e uma menor para Charis. Em volta, várias cadeiras aos visitantes. O pensamento de que Charis era filha do líder dos homofalcos causava-lhe estranheza, mas sabia que aquele título não trazia a ela muita diferença econômica; apenas social.

“Estou em débito com você, Hyoga. Obrigado por ter feito o que fez. Meu povo não possui bons olhos para humanos, mas vejo que você é diferente.”

“Não foi nada. Eu que fiquei surpreso por encontrar pessoas aladas. É como se tivessem saído de um livro de mitologia.”

“Pode-se dizer isso, meu rapaz. Nós, homofalcos, somos criaturas que possuem sangue humano e animal, desde os tempos da mitologia. Há milênios moramos nestas montanhas, isolados da civilização. Para dizer a verdade, você é o terceiro humano que vi em toda a minha vida.”

“Vocês vivem isolados… para protegerem-se, não é verdade?”

“Sim. Humanos já fizeram atrocidades com os homofalcos. Nós vivemos separados para sobrevivermos. A vida é difícil nestas montanhas, mas é o único modo. Mesmo assim, permaneça aqui durante algum tempo. Tenho certeza de que Charis ficaria muito contente.”

“Obrigado, Ájax. Mas só vim para trazer Charis de volta. Não pretendo ficar muito tempo; amanhã de manhã preciso iniciar a viagem de volta. Fiquei contente por conhecer a terra dos homofalcos; pode ter certeza de que a guardarei a sete chaves para que nenhum homem a descubra.”

“Pretende mesmo ir tão cedo…?”

“Sim. Com minhas desculpas.”

O olhar de Ájax alterou-se e ele virou-se para um dos súditos que o servia.

“Por favor, traga o cristal sagrado.”

E voltando-se ao rapaz, tornou-se subitamente sério demais, como se conversasse sobre um acidente.

“Hyoga, eu sei que o que fez pela minha filha foi um ato de grande altruísmo. Contudo… A lei dos homofalcos é soberana, até mesmo aos homens de coração nobre. Espero que você entenda que o fato de pisar em meu território torna-o sujeito às nossas leis.”

Num segundo, o rapaz sentiu que o tempo fechava para ele. Diante do olhar severo de Ájax, viu-se obrigado a concordar com sua imposição. Ele era o invasor das terras sagradas do Santuário, era o visitante que perturbava a paz de criaturas que já tinham sofrido nas mãos dos humanos. Não havia como contrariar.

“Eu entendo. Eu prometo que obedecerei às leis dos homofalcos. Mas infelizmente não as conheço. Pode me explicar?”

O homofalco voltou com um cristal em formato de cubo em mãos. De seu interior, Hyoga sentia que havia uma enorme quantidade de poder, que vibrava a cada centímetro que se locomovia, como o fogo de uma vela. O objeto foi deixado nas mãos de Ájax, que o mostrou ao rapaz.

“A primeira e que você precisa conhecer imediatamente é a lei sagrada da palavra. Toda palavra que os homofalcos proferem é verdade. Se um morador diz uma inverdade, sabendo que se trata de algo falso, é punido com a morte. E a segunda lei mais importante é esta. Este é um objeto divino dos homofalcos. Ele foi criado pelas nossas deusas protetoras, que são Ártemis e Athena.”

“Mas… Ártemis e Athena? Como…?”

“Eu já disse que os homofalcos possuem o sangue dos humanos e dos animais, não disse? Ártemis é a deusa da caça e nos protege de predadores. Athena é a deusa que protege a nossa parte humana. Este objeto foi criado pela junção desses dois enormes poderes para proteger-nos dos homens. Athena deu-nos a instrução para utilizá-lo. Ela disse que todo homem que pisasse em nossas terras deveria tocar neste cristal. Se ele respondesse com uma florescência azul, significaria que o humano não representaria nenhum perigo ao nosso povo e que poderia partir com a certeza de que estaríamos a salvo. Entretanto, se ele brilhasse na cor do sangue, significaria que esse homem seria uma ameaça a nós. Portanto, não deveria deixar a nossa terra até que a cor se tornasse azul. Se fosse vermelho, não significaria necessariamente que esse homem fosse mau, mas que a sua partida nos traria problemas, com toda a certeza.”

“Esse objeto… Foi realmente criado por Athena e por Ártemis? Jamais ouvi falar disso…”

“Os humanos esqueceram-se de muitas coisas da mitologia. Por exemplo, os cavaleiros que protegem Athena. São guerreiros humanos que lutam em nome de Athena.”

Dando-se conta de que estava somente como Hyoga e não como cavaleiro, achou melhor manter essa imagem. Começava a entender por que os cavaleiros não possuíam permissão para entrar no território dos homofalcos. Mesmo os cavaleiros eram humanos que possuíam inclinação para o mal como qualquer um.

“Eu só preciso tocar?”

“Sim. O cristal verá seu futuro e dirá se sua partida irá nos causar algum dano. Se isso acontecer, infelizmente não poderá partir.”

Olhando para o poderoso cristal, Hyoga perguntou-se se aquela não seria uma armadilha dos homofalcos para protegerem-se dele. Ájax encarava-o tranqüilamente. Charis aparentemente via aquele objeto pela primeira vez, dada a sua curiosidade. Até mesmo o homofalco que trouxera o cristal parecia curioso. Não havia como acusá-los.

Naquele momento, achou que o fato de ser cavaleiro traria um ponto em sua vantagem. Sendo os cavaleiros de Athena responsáveis pela paz na Terra, era bem provável que o cosmos da deusa depositado naquele cristal responderia de forma favorável. Decidindo que o melhor era permitir que o destino respondesse, esticou o braço e tocou no cristal.

Imediatamente, sentiu o cosmos de Athena fluir por seu corpo e entrar em contato com seu próprio cosmos. Havia mais um que provavelmente era de Ártemis, igualmente poderoso. O brilho que emanava do cristal era o cosmos combinado das deusas, numa mistura que Hyoga jamais imaginara sentir. O resultado, porém, era o que ele menos desejava ver. O brilho sangrento espalhou-se por todo o recinto, fazendo com que o homofalco atrás de Ájax agarrasse uma lança em defesa.

Estupefato, Hyoga retirou o braço e encostou-se à cadeira, sem acreditar no que vira. Como sua saída prejudicaria os homofalcos? Assustada, Charis agarrou-se ao braço do pai, que também se mostrava surpreso. Houve alguns segundos de silêncio que serviram de digestivos para a notícia, antes de Ájax devolver o cristal ao homofalco.

“Eu não acredito. É a primeira vez que o vejo reagir tão forte. Hyoga…”

Seguiu-se outro silêncio. Não era preciso falar para que o rapaz entendesse. Qualquer um que visse aquela luz pensaria que Hyoga viera àquela cidade com a pior das intenções. O difícil era transformar a acusação em palavras. Sabendo disso, o rapaz preferiu adiantar-se.

“Eu também estou surpreso… Juro que não desejo qualquer mal à cidade dos homofalcos, Ájax… Nem posso acreditar que o cristal tenha reagido tão forte. Eu… prometi a Charis que não causaria qualquer mal a vocês. Se a lei dos homofalcos proíbe-me de partir… Então devo ser fiel à minha palavra.”

Olhando para a mesa, Ájax parecia triste com o resultado.

“Eu sinto muitíssimo, Hyoga… Mas não poderá ficar no quarto dos hóspedes.”

—————————————————————

Após a saída de Hyoga da casa, Charis agarrou o braço do pai, angustiada. Sentia-se culpada e temerosa ao mesmo tempo. Hyoga tivera todo o trabalho de levá-la a salvo até ali e agora precisava ser recompensado com a luz sangrenta do cristal. Por outro lado, as suspeitas latentes em relação ao humano cresceram ao ver aquele brilho mortal, como se refletisse a maldade dos homens.

Ájax encostou-se à poltrona, suspirando. Em seguida, lançou um olhar reprovador à filha, como se ela tivesse acabado de quebrar uma janela.

“Charis.”

Intimidada, encolheu-se em sua poltrona, temendo pela bronca que ainda não recebera.

“Você acredita mesmo que aquele homem tem um bom coração?”

Por um momento, ela achou que teria sido melhor uma bronca do que aquela indagação. A gentileza de Hyoga desde que se conheceram era algo que ela queria guardar como uma lembrança boa, não como uma enganação.

“P-Por que, meu pai?”

“Você viu o brilho sangrento do cristal. Ele nunca erra. Quanto mais intenso for o brilho, mais intenso é o perigo existente na partida do humano.”

“Mas você disse que ele não reflete a maldade nos homens…”

“Sim, querida, é verdade. Mas os dois últimos homens que encontrei só desejavam o mal ao nosso povo por motivos egoístas. Estavam atrás de fama e de dinheiro.”

“Mas o Hyoga é diferente. Ele foi o único que foi gentil comigo. Ele até disse que se eu não quisesse, não me acompanharia até aqui. Por que ele desejaria algum mal?”

“Não a estou subestimando, Charis, mas você ainda é uma criança. Vejo inteligência atrás daqueles olhos, vejo um homem que sabe plantar, esperar crescer e colher depois. Ele pode ter sido gentil com você apenas para que o trouxesse até aqui. Ele fez tudo parecer que sua visita fosse sem motivos para depois se aproveitar. Ele voltaria para a cidade, contaria aos outros humanos sobre a nossa localização e por fim nos traria o caos. Você entende? Para que o cristal brilhasse daquele jeito, só poderia ser uma tragédia aos homofalcos. Eu sei que você acabou gostando dele, filha. Mas precisa entender que existem adultos que se aproveitam de crianças assim, principalmente entre os humanos.”

Como se cada palavra de seu pai fosse uma agulha, Charis abraçou os joelhos e olhou para o chão, desesperada. Não conseguia acreditar que Hyoga fosse mesmo aquele tipo de gente. Ájax pôs a mão sobre a cabeça dela, na tentativa de consolá-la.

“Desculpe dizer palavras tão duras, querida. Mas você precisa entender que, como futura líder dos homofalcos, deve aprender a defender o interesse de seu povo. Para isso, não pode ser manipulada por ninguém. Você não deve confiar em estranhos, mas na sua família.”

Sem responder, Charis levantou-se e saiu de casa. No fundo, sabia que o que seu pai supusera podia muito bem ser a verdade. Mesmo assim, havia um lugar nela que dizia que Hyoga não era um homem cruel como todos acreditavam.

Aproximou-se da prisão de pedra, onde ele era colocado a mando de seu pai. Esperou que os homofalcos responsáveis pela segurança se afastassem e caminhou até a grade que os separavam. Hyoga sentara-se na cama, pensativo, com a mochila jogada num canto do chão. Sobre uma pequena mesa de madeira havia uma bandeja com o jantar; um pedaço de carne de raposa, um pão e um jarro de água. Não lhe sorriu quando a fitou.

“Charis.”

A frieza fez com que ela sentisse os olhos arderem e as palavras de seu pai endurecerem mais ainda. Afastou-se da grade e logo sua visão ficou borrada. Notando, Hyoga levantou-se e aproximou-se dela, abrandando o tom de voz.

“Ei… Não precisa ficar assim.”

“Meu pai disse… que quanto mais intensa é a luz, maior é o dano que você vai nos causar… Mas que dano é esse? O que você quer de nós?”

“Nada. Eu não quero nada, de verdade. Eu prometi a você que não causaria nenhum mal. E vou cumprir a minha palavra. Vou ficar aqui até que aquela luz fique azul, está bem assim?”

Por que continuava a acreditar? Por que não via nenhum mal naquele homem? Precisava mesmo ser tratado como um prisioneiro após uma viagem tão cansativa?

“Podiam ter dado um quarto melhor para você…”

Hyoga sorriu, trazendo mais dúvidas ao coração de Charis.

“Eu estou bem. É muito melhor que a tenda, não concorda? Você é que precisa tomar cuidado com esse vento. Não vai pegar um resfriado, ouviu?”

Ao tentar se aproximar novamente, um homofalco interveio, colocando-se entre os dois.

“Charis, não! Este humano é perigoso.”

Surpresa com o homofalco que lhe bloqueava o caminho, Charis deu meia volta e retornou para casa, com a consciência pesada. Hyoga pegou a bandeja e pôs-se a comer tranqüilamente.

—————————————————————

Apesar de a porta de sua prisão ser uma simples grade que não oferecia qualquer proteção contra o vento, Hyoga recebera cobertores pesados que lhe proporcionaram uma noite razoavelmente confortável. Para compensar a pobre refeição do dia anterior, seu café da manhã fora caprichado, até melhor do que ele costumava ter em Kohotek. Enquanto comia, perguntava-se se aquela não seria uma forma de desencorajar a fuga daquela cidade.

Ignorando os olhares curiosos dos moradores, Hyoga observou admirado as andanças dos homofalcos. Agasalhados com grossos casacos, decolavam e aterrissavam, trazendo e levando coisas, como pássaros de um ninho. Muitos caçavam pequenos animais ou pescavam em pleno vôo, com uma habilidade que traria inveja a qualquer homem. Ájax, como Hyoga pensara, não era o tipo de homem que tirava vantagem de sua posição de líder. Era gentil com os moradores e até ajudava em algumas tarefas corriqueiras, como consertar as casas. Charis acompanhava-o o dia inteiro, aprendendo a coordenar o trabalho dos homofalcos.

Paralelamente ao trabalho dos moradores, havia um grupo de jovens que se dedicava à luta, treinando metade do dia. Eles treinavam não apenas lutas terrenas, como ataques voadores, semelhantes aos dos pássaros. Enquanto assistia ao treino, Hyoga naturalmente pensava nos defeitos e virtudes de cada rapaz, assim como nos conselhos que daria para melhorarem. Era um senso que acabara desenvolvendo após anos de experiência como cavaleiro. Mesmo assim, assistia em silêncio, como se fosse uma insignificante sombra na cidade.

Na hora do almoço, todos os homofalcos recolheram-se em suas casas, e o cheiro da comida espalhou-se por todos os cantos, atiçando o apetite de Hyoga. Ájax trouxe-lhe a bandeja fumegante acompanhado do homofalco que provavelmente era o seu braço direito. Hyoga estava deitado na cama, entediado, já que sua prisão só possuía a cama, a mesa, um banheiro e uma bacia de água para lavar o rosto.

“Como você está, Hyoga? Precisa de alguma coisa?”

Os objetos básicos Hyoga já possuía na mochila. Com a exceção de objetos cortantes, que os homofalcos retiraram após uma revista, estavam todos os apetrechos de viagem, não necessitando de nada. Ao observar os moradores, Hyoga até achara que estava em melhores condições. Contudo, o tempo simplesmente não passava sem ter nada para fazer.

“Não. Para dizer a verdade, estou bem confortável. Se for para desejar algo, pudera ter uma leitura para passar o tempo. Um livro, qualquer coisa. Quanto ao resto, vou muito bem.”

“Eu imagino como deve ser cansativo ficar sem fazer nada o dia inteiro. Eu notei que você não parava de observar os homofalcos de manhã. O que achou de nossa cidade?”

“Ela é impressionante. Estou vendo que as asas servem pra muitas coisas além da simples locomoção e entendo como vocês conseguem sobreviver num local tão isolado.”

“Fico feliz que tenha gostado. Nós vivemos assim há centenas de anos. Isso é graças ao poder do cristal, que sempre nos protegeu. Devemos agradecer a Ártemis e a Athena. Eu vivo para proteger tudo isso. Sou uma espécie de guardião dos homofalcos, vivo para servi-los. Não sei se um homem da civilização consegue compreender isso com a alma.”

“Acho que só alguém que realmente tenha feito isso pode entender esse sentimento, Ájax.”

“Você tem razão. Charis ainda é muito nova para compreender e acabou trazendo você até aqui. Isso é ruim, tanto para nós como para você, Hyoga. Se o cristal tivesse ficado azul, é claro que não teríamos nenhum problema… Mas agora… O mínimo que posso fazer por você é isso: a cada cinco dias, deixarei que toque novamente no cristal. Se os deuses desejarem, um dia ele ficará azul para você. Eu sinto muito… Sei que é difícil de entender e de acreditar…”

“Eu prometi a Charis que não faria mal aos homofalcos. Pretendo ir até o fim com essa promessa.”

O olhar de Ájax endureceu durante um momento, como se o ameaçasse.

“Você prometeu isso à futura líder dos homofalcos e à minha filha. É melhor que cumpra, para o seu próprio bem. Mandarei trazerem um livro para você depois. Os homofalcos possuem diversas e interessantes lendas.”

O livro foi trazido como Ájax prometera, e Hyoga lançou-se à sua leitura como um homem no deserto a encontrar um oásis. Como Ájax não estava interessado em relatar mais sobre a história dos homofalcos, escolheu para Hyoga um clássico da literatura homofalca, ‘Crônicas de um homofalco cego’, escrito há mais de duzentos anos. Apesar do grego arcaico, Hyoga parecia apreciar o livro, pois passara o resto da tarde em silêncio. Só parou quando Charis aproximou-se da grade, pensativa.

“Ei, Charis. Como vai você?”

“Você ainda não tentou fugir.”

“Por que eu fugiria?”

“Você não precisa contar pra todos o que viu nesta terra?”

Com os olhos do homofalco que estava em guarda sobre ele, limitou-se a ficar sentado na cama e deixar o livro de lado.

“Eu prometi que não contaria. Também prometi que não faria mal aos homofalcos.”

“O homem que me bateu prometeu que não me machucaria. Por que promessas dos humanos são tão frágeis? Por que eles não podem prezar a palavra como os homofalcos?”

Sentindo que era um desabafo que estava há tempos trancado na garganta de Charis, Hyoga estava impelido a aproximar-se mais e conversar de perto. Mas sabia que se o fizesse, mataria o diálogo.

“Sabe, Charis… Seu pai me passou um livro muito interessante hoje à tarde. As ‘Crônicas de um homofalco cego’. Já leu?”

“Sim, ele já me fez ler. Mas o que tem a ver com o que eu lhe disse?”

“Tem muito a ver. Fala sobre um homofalco que fez um pacto com a natureza por ter nascido sem a visão. Um pacto é uma promessa. Por ter sido feita com a natureza é mais especial ainda. Como ele não podia prejudicá-la, já que ela lhe dera o poder de voar sem ter medo de chocar-se contra uma pedra, precisava fazer sacrifícios. Essa promessa tornou-se parte de sua vida, de sua própria conduta. Mas quando ele prejudicou a natureza, mesmo que inconscientemente, quase morreu numa montanha. O preço de uma promessa pode variar. Eu achava que o preço da minha não seria alto, que eu a entregaria a salvo nesta cidade e voltaria para casa. Mas não foi. Isso não muda o fato de que preciso cumpri-la. Se eu não cumpro minha promessa, quebro o vínculo que criei.”

“Mas se você entende isso, porque os homens não cumprem as promessas?”

“Por que eles não entendem isso. Eles querem ter vantagem sobre os outros. Charis, você viu a quantidade absurda de homens que existe no mundo lá fora.”

“Sim.”

“O mundo lá fora é uma guerra constante. Os homens lutam entre si para sobreviver. Essa é a maneira que eles criaram. Vocês também possuem as suas maneiras, que são o isolamento e o cristal. Todos possuem armas para se defenderem. Acontece que optei por outras armas e mantive a força da promessa viva. Quando prometi a você, fiz um pacto. Eu cumpro a minha palavra. Em troca, as pessoas acreditam em mim. Você pode não acreditar neste exato momento; por isso, tem toda a razão de desconfiar de mim. Eu não estou chateado por isso. Só serei merecedor de sua confiança quando tornar minha promessa uma realidade.”

“E se ela não se tornar realidade?”

“Se ela não se tornar… Serei um tremendo imbecil.”

Charis sorriu sutilmente e deu-se por satisfeita. Como o seu pai dissera, apenas o tempo traria a resposta daquele estranho humano que era Hyoga.

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