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[Saint Seiya] Prisão das Asas - Parte 16, escrita por Nemui

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Autora: Nemui
Fandom: Saint Seiya
Gênero: drama, aventura
Classificação: 16 anos
Status: Completa
Resumo: A vida de Hyoga se transforma quando entra em contato com um mundo completamente diferente do seu.


O ato homérico de Hyoga rendera-lhe inúmeros elogios dos homofalcos nos dias conseguintes, convertendo-o de prisioneiro a herói. Contudo, Hyoga não possuía qualquer apego com a fama recém-adquirida. Mantinha-se discreto e obediente a Myles e a Evan, sabendo que nada mudava sua posição como escravo. Por causa dos ferimentos, livrou-se de uma semana de servidão para recuperar-se, dias que eram muito bem-vindos às costas.

O ferimento da cabeça ainda não estava completamente curado no último dia de descanso. Hyoga estava sentado na cadeira, servindo a sopa a Adelphos, quando Charis entrou, trazendo um peixe.

“Trouxe o almoço, mestre. Não há nada melhor que peixe para curar ferimentos.”

“Só há peixe por aqui. Bem, não posso reclamar.”

“Não precisamos de mais nada, mestre. É por isso que homofalcos vivem pacíficos neste pedaço de terra.”

“Você acaba de dizer algo que líderes de todo o mundo reprovariam. Mas sabe, eu concordo. Não precisamos de mais nada. Não temos motivos para sair daqui.”

“Não é verdade? A líder que eu quero ser é essa. Se quiserem reclamar, que reclamem. Serão pessoas que não sabem valorizar a vida. Foi o meu pai que ensinou.”

Ouvindo os ensinamentos de Ájax por meio de Charis, Hyoga notava como o antigo líder era cheio de sabedoria, apesar de agir sempre por interesses. Notou que Charis pegara a caixa de remédios e agora o rondava, ansiosa para trocar-lhe o curativo. Olhando a sombra na parede da casa, percebeu como já era tarde.

“Pela deusa, Adel tomou tudo isso de tempo? Desculpe, Charis, pode fazer o que tiver de fazer, enquanto dou comida para ele.”

“Não dá, mestre, você não deve mexer a cabeça enquanto troco o curativo. Termine antes, não precisa ter pressa.”

“Para compensar, vou treiná-la até a noite.”

“Já disse para não se preocupar, mestre. Você ainda está se recuperando.”

Mesmo que Charis ainda o colocasse como prioridade, a dele era ela. Terminando de dar comida a Adelphos, colocou-o no chão e deixou que ele ficasse ali brincando, enquanto Charis trocava o curativo da cabeça. A discípula desenrolou a faixa cuidadosamente, embora o ferimento ainda causasse aflição em Hyoga. Enquanto passava o remédio com um pedaço de algodão, comentou, relembrando a luta.

“Agora todos acham que é um herói. Mas independente de quais palavras circulem nas ruas, seu comportamento permanece o mesmo, mestre. Você continua neutro, calmo e diligente como sempre.”

“Se eu perdesse, seria um bandido; se ganhasse, seria um herói, Charis. Posso encarar tudo isso de duas maneiras: chorar e comemorar, de acordo com a situação; ou ser o mesmo de sempre. De que adianta ter um tipo de respeito que se desmorona à menor falha? Eu quero construir uma relação de confiança com o povo homofalco de outra forma, Charis, mais sólida.”

“Essa é feita tijolo por tijolo, foi assim que meu pai ensinou. Você tem razão, mestre. Mesmo assim, não consigo não ser levada nessa euforia. Quando revejo os seus golpes daquele dia, fico empolgada. A Aurora Execution, o Freezing Coffin, o Kholodnyi Smerch… Até o Diamond Dust era tão perfeito que queria ser você.”

“São técnicas conseguidas a duras penas, garota. Tenha paciência.”

“Eu sei… Também estou desenvolvendo as minhas. Um estilo só meu…”

Hyoga sorriu e calou-se. Esperou que Charis terminasse para levantar-se e preparar-se para o treino.

“Hoje vou treiná-la o dia inteiro, Charis. Espero que esteja preparada.”

“Estou, mestre. Podemos começar?”

“Claro, vamos sair agora.”

Pegando Adelphos no colo, Hyoga e Charis dirigiram-se para a área de treino. Próximo a eles, Hyoga improvisara um cercado para deixar o bebê sem que tivesse de preocupar-se enquanto lutava com Charis. Olhou sério para a discípula, iniciando o treino.

“Vamos começar. Hoje quero ver como andam suas técnicas de gelo. Quero que tente me derrotar. Assim que Myles vier e liberar o meu cosmos.”

“Sim, mestre.”

Myles não demorou a chegar para liberar o cosmos do cavaleiro, que já estava em posição. Logo que seu cosmos aflorou sobre a corrente, Hyoga e Charis avançaram um contra o outro ferozmente, iniciando uma batalha que visava atingir o ponto fraco alheio.

Iniciando com um ataque de farpas de gelo, Charis tentou forçar Hyoga a desviar-se do gelo. Contudo, seu mestre não se interessou nesse tipo de defesa. Devolveu um ataque de gelo que congelou e destruiu as farpas, em pleno vôo. Em seguida, atirou um ataque de gelo sobre Charis, atirando-a no chão. Sem desistir, ela levantou-se e correu em volta dele, procurando uma brecha para atacar. Hyoga também se movimentou e a luta passou a ser uma série de movimentos entre ambos, cada um procurando a posição mais adequada para atacar. Quando Charis achou que havia uma chance, queimou o cosmos e atirou o Diamond Dust contra Hyoga.

Bloqueando-o com uma das mãos, ele esbravejou-se.

“Charis, seu Diamond Dust é ridículo. Chama isso de ataque?”

Charis continuou a correr e a procurar uma posição para atacar. Queimou o cosmos novamente e tentou outro Diamond Dust por trás, que Hyoga desviou facilmente.

“Você não está entendendo, Charis? Sua técnica é pobre e falta trabalho. Eu vou lhe mostrar o verdadeiro Diamond Dust!”

Hyoga queimou o cosmos e atirou o Diamond Dust contra a pupila, congelando-a. Vomitando sangue, Charis ficou sem forças para levantar-se. No entanto, não houve pausa para ela: Hyoga deu-lhe outro soco, atirando-a para fora do campo de batalha.

“Você acha que seu inimigo vai esperar que se recupere e se levante? Acha mesmo?”

Suportando a dor, Charis levantou-se e avançou sobre Hyoga, desenvolvendo uma lança de gelo e tentando feri-lo. A resposta foi violenta: ele queimou o cosmos e agarrou a lança, espalhando gelo através dela até congelar o braço de Charis. Recuando, a garota queimou o cosmos e conseguiu desfazer o gelo. Mais uma vez, concentrou o cosmos e tentou utilizar o Diamond Dust para congelar as pernas de Hyoga.

“Não adianta, Charis, o Diamond Dust não funciona contra mim. A única forma de vencer-me é aumentar o seu cosmos e torná-lo mais frio que o meu! Vamos! Queime o seu cosmos!”

Obedecendo, Charis tentou forçar mais o seu poder. Enquanto isso, Hyoga avançou e golpeou-a no rosto, atirando-a ao chão. No entanto, ela logo se levantou e conseguiu desviar-se de um segundo golpe.

“O que houve, Charis? Já cansou?”

Ignorando a provocação de Hyoga, Charis tentou aumentar ainda mais o seu cosmos. Gastando seu último pedaço de energia, lançou um Diamond Dust com todas as forças. Este veio com mais velocidade e Hyoga teve que usar um ataque de gelo para defender-se.

“Foi interessante, mas não o suficiente! Você quer ser forte, não quer? Vamos, onde está essa força?”

Cansada, Charis não sabia mais quanto tempo agüentaria depois de gastar tanto cosmos. Lembrando-se de que fora ensinada que o cosmos era infinito de acordo com sua vontade, pensou em como desejava alcançar seus objetivos. Se quisesse manter suas palavras vivas, precisava vencer Evan em batalha e ser tão forte quanto um cavaleiro de ouro para dar ao seu mestre um final de paz. Fechou os olhos e queimou mais o cosmos, sem saber direito de onde tirava tanta energia.

Hyoga atacou-a novamente, mas Charis conseguiu desviar-se e realizar uma tentativa de contra-atacá-lo, da qual ele se desviou. Criou uma lança, a mais forte que conseguia, e avançou sobre ele, atacando-o diretamente. Hyoga decidiu atacá-la por baixo para defender-se, mas Charis saltou, evitando o seu ataque. Sem parar, avançou por trás e quase conseguiu machucá-lo, passando a lâmina da lança próxima ao seu pescoço.

Sem perder a calma, Hyoga agarrou a lança e puxou-a com Charis. Pega de surpresa, a garota desequilibrou-se e ele aplicou-lhe um forte golpe no estômago, atirando-a novamente ao chão.

“Foi um ataque interessante, mas mal calculado. Permitir que o inimigo a desequilibre é pedir para morrer. Você é o quê? Uma guerreira ou uma suicida?”

Charis continuou, sem perder o ânimo. A cada golpe seu, Hyoga contra-atacava de um modo diferente, apontando os seus defeitos e provocando-a. Myles notava que era um treino bem mais rigoroso e denso que o de Evan, além de ser mais violento pelas respostas de Hyoga. No entanto, a moral de Charis nunca baixava, ao contrário dos soldados homofalcos. Ela sempre se levantava e avançava, procurando uma forma de atacá-lo.

O último ataque de Charis fora uma tentativa de congelar Hyoga pelo pescoço, que terminou com o seu cheio de gelo. Hyoga mantinha uma frieza bastante contrastante com a gentileza dos momentos de descanso.

“Que tentativa inútil. Nunca tente aproximar-se de seu inimigo dessa forma se ele tem os braços e as pernas livres para contra-atacar. Se o pescoço fosse fácil, todos tentariam. Se quiser uma técnica para degolá-lo, precisa ser rápida e hábil. Técnica é a chave, uma técnica que você ainda não possui.”

“Já passou quase uma hora”, interveio Myles. “Você pediu para terminar um pouco antes.”

Encerrando a luta, Hyoga acalmou-se. Charis recuperava o fôlego no chão, enquanto ele esperava.

“Charis, você poderia ter morrido mais de vinte vezes se fosse um combate real. Precisa ainda de muito treino.”

“Sim, mestre, entendo.”

“Levante-se. Já recuperou o seu fôlego. Está pronta para os próximos exercícios?”

Obedecendo, Charis fitou-o séria.

“Sim, estou.”

“Então, prepare-se.”

Hyoga queimou o cosmos e ergueu uma parede de gelo do chão.

“Seu próximo exercício é o mesmo de ontem. Quebrar essa parede de gelo. Em comparação com a de ontem, precisa fazer com que o seu cosmos se eleve mais ainda para conseguir quebrar os átomos desta.”

“Sim, mestre.”

Concentrando o cosmos, Charis posicionou-se em frente à pedra. Reuniu o poder no punho e golpeou, sem causar qualquer dano ao gelo. Mesmo com a mão sangrando, não desistiu. Continuou a concentrar o cosmos, tentando aumentá-lo mais do que antes.

Vendo que a discípula levaria um tempo até conseguir, foi até Adelphos e colocou-o para andar fora do cercado. O bebê começava a tentar andar com a ajuda do rapaz, que pacientemente o segurava enquanto se exercitava. Myles observava-o com interesse.

“Você quase não brinca com ele.”

“Estou cuidando dele, conforme prometi.”

“Mesmo assim, como espera que ele cresça feliz?”

“Acha mesmo que ele pode ser feliz vivendo com um cavaleiro de Athena frustrado como eu? Ele é mais feliz ao lado de Charis.”

“Mas é mais chegado a você.”

“É, eu sei.”

“Tenho inveja de você, Hyoga, sabia? Olho para Adelphos e penso em Tibalt. Penso no filho e na esposa que perdi. Penso: se esse garoto fosse meu, pegaria uma tarde inteira só para brincar com ele e dar-lhe todo o amor que merece.”

“Não está tentando me convencer a fazer isso, está?”

“Você interprete do jeito que quiser, só estou comentando. Eu adorava Tibalt. Como queria tê-lo salvado. Como queria ter aproveitado melhor esse tempo que passei com ele. Acho que você um dia também gostaria disso.”

“Eu estou aproveitando. Só que não tenho o direito de aproveitar mais do que isso. Eu queria que esse garoto fosse um cavaleiro de Athena no futuro, quero deixar um cavaleiro da nova geração com as técnicas de Camus. Não posso ser o pai de verdade desse garoto, brincar, tratar como meu. Embora ele seja praticamente o meu filho.”

“Não entendo… Por que não, Hyoga?”

“Se um dia ele for um cavaleiro de Athena, é melhor que me veja como mestre, e não como pai.”

“Não faça isso, Hyoga, está deixando-o órfão.”

“É o que ele é. Tanto Seema quanto o pai dele morreram. Ele é órfão.”

“Sabia que quando os pais morrem, o professor de armas deve assumir os cuidados do filho, não é?”

“Sei. Foi o que me disse no dia do ataque. Assim o fiz.”

“É verdade. Mas acontece, Hyoga, que agora você é considerado o pai adotivo dele. Estou falando oficialmente.”

“Não me disse isso antes.”

“Não minto, colega. Adelphos é agora o seu filho, ao mesmo tempo em que você tem a obrigação de educá-lo nas armas. Eu me sinto mal por Seema, pensando que você simplesmente lhe dá as necessidades e esquece o resto. Dá a impressão de que não o ama.”

Colocando-o no colo, Hyoga ressentiu-se.

“Não é isso. Estou confuso com a guarda de Adelphos, Myles. Porque naquele dia em que conversei com Seema, ela tinha algo para pedir-me. Sinto que era importante e que tinha relação com Adel. Só que ela não teve coragem de contar-me. Eu não sei se ela queria que eu fosse o mestre ou o pai do garoto. Eu não sei e nunca saberei, porque ela morreu por minha culpa. Decidi ser o mestre, porque era a escolha mais óbvia. Mas toda vez que me aproximo dele, essa cena vem-me à cabeça. O que Seema queria?”

“Entendi. Você não sabe se deve criá-lo como pai ou como mestre, não é? Optou pelo último porque seria o mais fácil. Mas Hyoga, você tem realmente o direito de abandoná-lo assim? Não digo isso sem razão, pois você será a pessoa mais importante para ele, independente da escolha que fizer.”

“Não vou abandoná-lo. Jamais faria algo do tipo.”

“Errado. Você está abandonando-o. Foi o que aconteceu quando eu era pequeno. Meus pais morreram muito cedo, num dos ataques dos servos de Prometeu. Meu mestre de armas… o meu pai adotivo… criou-me como você está fazendo. Nunca tive uma relação próxima com ele, nunca tive um pai de verdade. Eu me sentia sozinho de certa forma, mesmo vivendo sob o mesmo teto. Eu sempre fui um estorvo para ele, sempre fui um fardo, uma mala. Um dia ele chegou a dizer que pouco lhe importava se eu viveria ou não. Detestaria ver a história se repetir com Adelphos, Hyoga.”

Remetendo, a sua própria história, Hyoga lembrou-se de Mitsumasa Kido, que o levou para a mansão apenas porque Hyoga concordara participar do treino de cavaleiros. Não lhe importava se era do mesmo sangue, ele não passava de um estorvo ao velho empresário. Olhou para Adelphos, perguntando-se se não estaria repetindo o mesmo erro.

“É possível ser pai e mestre ao mesmo tempo? Responda. São relações completamente diferentes. Se pudesse, deixava-o sob um teto que pudesse acolhê-lo como um filho, não comigo.”

“Pois você só está negando uma verdade inquestionável, Hyoga. Já é praticamente o pai de Charis.”

Encerrando a conversa, Myles abriu as asas e partiu, deixando-os. Hyoga olhou para Adelphos, que lhe puxava a túnica, sem parar de se mexer.

“O que me diz, Adel? Está infeliz comigo?”

Ignorando-o, o bebê saiu de seu colo e voltou a engatinhar, explorando aquele pequeno pedaço de mundo.

——————————————————–

Após as festividades esportivas dos homofalcos, foi a vez de preparar o casamento de Evan e Aure, que celebraria a união das duas famílias ligadas a Hyoga. Dessa forma, os preparativos também tomavam boa parte de seu tempo, sendo obrigado a seguir Evan ou Myles, dependendo da ocasião. Na batalha contra Éolo, Hyoga mostrou-se claramente superior a Evan em matéria de poder, deixando-o enraivecido. No entanto, a glória temporária ao cavaleiro aliviou-lhe os castigos sofridos naquele tempo.

Como a festa seria realizada numa estufa abandonada, Hyoga precisava restaurá-la a ponto de torná-la praticamente um salão de festas. Era um trabalho pesado por realizá-lo sozinho; mas por ter conseguido a permissão de Evan para trabalhar nos dias que devia servi-lo também, estava satisfeito.

Elevava um pilar de madeira, utilizando toda a força do corpo. Sabia que já era de noite, mas a luz dava a impressão de que ainda não passava das quatro da tarde. Contudo, os homofalcos já se dirigiam às suas casas, cansados depois de mais um dia. Charis aproximou-se voando e pousou ao seu lado, tomando uma ponta da corda.

“Deixe-me ajudá-lo, mestre. Quero continuar logo com o treino.”

“Deixe, eu cuido.”

Hyoga já terminava de erguer o pilar, por isso rejeitou a ajuda e encerrou o seu dia com a estrutura praticamente restaurada. Desceu da escada e Charis voou até o chão, animada.

“Nós vamos continuar com o treino agora, mestre? Disse que vai me ensinar algo novo.”

“Sim, uma nova técnica para você, que luta voando. Mas é um truque que não pode ser praticado sempre.”

“E como é, mestre?”

Hyoga pegou uma das asas de Charis e moveu-a, testando os movimentos.

“Quando vocês voam, realizam essa batida, não é? Batem, dobram e voltam, como os pássaros.”

“Sim, é assim que sempre fizemos. Por que, mestre?”

“Porque o movimento que Evan realizou na competição foi diferente. Consegue mover a asa assim?”

Ajudando na movimentação das asas com as mãos, Hyoga delicadamente moveu-as para baixo, numa rotação quase circular. Notou certa resistência de Charis, que não estava acostumada àquele gesto.

“É um pouco difícil, mestre, mas consigo.”

“Não tenho asas para saber, diga-me tudo. É desconfortável, dói?”

“Não dói, mas é desconfortável. Se eu fizer muito, provavelmente dói.”

“Entendo. É por isso que ele quase não usa esse movimento.”

“O que é, mestre?”

“É a forma como Evan bate as asas, Charis. Ele quase não dobra quando volta, ele simplesmente rota-as assim… E volta a bater. Dessa forma, a resistência do ar é menor, a eficiência do vôo melhora e ele não precisa bater as asas com tanta pressa. Pode até lançar ataques com as asas em pleno vôo.”

“É verdade?”

“Foi assim que vi. Era muito rápido, mas tenho certeza de que era assim.”

Repetindo o movimento devagar, Charis logo se cansou.

“Mas é duro, mestre. Não consigo fazer esse movimento com velocidade para voar… Nós só conseguimos movimentar assim por causa da articulação dos braços…”

“Que pena… Se pudesse voar assim, teria uma vantagem absurda durante a luta. Poderia desenvolver técnicas misturando o gelo e as asas. Mas se isso machuca o seu corpo, devemos desistir de tal técnica. Bem, vamos treinar outra coisa.”

Surpresa por ver que Hyoga desistira fácil da técnica de vôo, Charis seguiu-o até o campo de treino, exasperada.

“Espere, mestre! Eu posso praticar e conseguir. Eu já aprendi que não posso aprender técnicas sem me machucar, sei que preciso praticar esta também. Por favor, não perca a fé em mim.”

“E quem disse que eu perdi a fé em você, Charis? Simplesmente disse que treinaríamos outra coisa.”

“Mas… Eu sei que posso aprender!”

“Se isso a machuca, não posso forçar, Charis.”

“Se Evan pode, eu também posso, mestre!”

Hyoga parou, assim como Charis.

“Charis, quando você machuca as mãos e os pés, eles logo saram, não é verdade?”

“Sim, mestre.”

“Mas forçar esse movimento com as asas pode ser perigoso, pois se trata de uma articulação. Eu não conheço bem a anatomia dos homofalcos, nem muito sobre o que esse treino poderia causar à sua saúde. Não sou louco para seguir em frente e colocá-la em risco, seria muita irresponsabilidade de minha parte. Achava que esse movimento não era difícil, pois já tinha visto que vocês o utilizam com freqüência. Mas se pode machucar, seria errado forçar.”

“A questão é a superação de obstáculos, mestre. Mesmo que eu me machuque…”

“Se você tivesse que ficar cega para aprender uma técnica, assim o faria?”

Diante do silêncio da discípula, Hyoga encerrou a conversa.

“Foi o que pensei. Vamos até a praia. Quero treinar o seu cosmos na água.”

Embora não parecesse totalmente convencida, Charis seguiu-o.

————————————————————

Mesmo sem dizer uma palavra, Hyoga era favorável à união de Evan e de Aure, pois esperava que seus castigos diminuíssem ou abrandassem. No dia da festividade, ficaria encarregado de servir aos convidados em todo tipo de trabalho. Muitos ainda estranhavam sua posição naquela cidade, sendo um importante representante do Santuário e escravo simultaneamente. Hyoga procurava assumir cada tarefa com posturas diferentes e independentes, por mais que ouvisse comentários de seu comportamento.

Myles e Evan chamaram para o casamento mais de trezentas pessoas, o que podia ser considerado um exagero diante da população atual. Sabia que ele seria um dos poucos a trabalhar naquela festa, o que resultaria em possíveis punições por demora mais tarde. Mesmo assim, esperava que aquela fosse uma das últimas ocasiões em que levaria chicotadas.

Geralmente, o ritual era realizado pelo líder dos homofalcos, que utilizava sua espada para formalizar a união do casal. Dessa forma, foi Myles que conduziu a cerimônia, realizada de noite, embora o céu ainda estivesse claro. Curioso, Hyoga permaneceu de pé, próximo à parede, observando os movimentos de Myles, enquanto a festa não começava. Trajados com vestimentas gregas, semelhantes às utilizadas no Santuário, Evan e Aure ajoelharam em frente a Myles, que tirou a espada e fincou-a no chão entre eles.

Tanto Evan como Aure cortaram suas mãos na lâmina e ofereceram algumas gotas de seus sangues em homenagem às deusas. Em seguida, homofalcas que auxiliavam no ritual lavaram suas mãos. Uma rena também foi sacrificada, e Myles logo deu início à festa, que duraria a noite toda.

Segurando uma garrafa de vinho, Hyoga circulou entre as mesas, servindo aos convidados com a discrição de um garçom. Ainda que tivesse lanchado rapidamente antes da festa, sentia o estômago roncar, diante de tantos pratos inalcançáveis. Ignorando suas necessidades, continuou a trabalhar diligentemente.

Num determinado momento, serviu Charis. A garota mostrou-se visivelmente constrangida com seu ato, estranhando ser tratada daquela forma por seu próprio mestre. Procurando não fitá-la, Hyoga recuou e continuou a andar pelas mesas. Serviu colegas soldados, serviu homofalcas que trabalharam ao seu lado nas estufas. Ao aproximar-se da mesa de Evan e de Aure, recebeu um sorriso irônico de seu dono.

“Ser servido por um cavaleiro de Athena na condição de escravo. Gosto disso.”

Hyoga ignorou e manteve-se em silêncio. Notou que um homofalco pedia mais vinho do outro lado do salão e foi atendê-lo, em silêncio. Realizou aquele trabalho por horas, revezando com pequenas limpezas que surgiam no decorrer da festa, à medida que homofalcos bêbados derramavam copos e bagunçavam o salão. Com o aumento do consumo de álcool, tornou-se impossível atender a todos, gerando a insatisfação de Evan, que o ameaçou com o chicote.

“Para cada reclamação que ouvir, levará cinco.”

E assim se iniciou uma contagem que se revelou cruel para Hyoga, pois muitos acabaram se exaltando e exigindo mais vinho simultaneamente, reclamando vigorosamente a cada copo não reenchido. Ao término da festa, quase de manhã, Evan saiu do salão acompanhado da esposa, rindo.

“Ei, escravo. Quero tudo limpo quando voltar.”

Sentia raiva, é claro, mas não havia como contestar. Hyoga passou a limpar o salão logo em seguida, com os olhos pesados de não dormir, recolhendo a sujeira e os restos de comida. Ainda teve tempo de engolir algo durante a limpeza, mas as horas seguidas de trabalho tinham lhe sugado todo o ânimo. Só conseguiu terminar de manhã, quando todos saíam para iniciar o dia. Retornou para casa esgotado, abrindo a porta e vendo que Charis já estava ali, dando comida para Adelphos.

“Mestre, ainda estava no salão?”

“Sim. Precisava limpar tudo depois.”

Engolindo um pedaço de pão, trocou a roupa e voltou-se para ela.

“Está pronta? Podemos começar o treino?”

“Mas não quer dormir um pouco? Você parece tão cansado, mestre.”

“Esquece, Charis. Vamos treinar. Não posso dar ao luxo de descansar quando você se empenha em seus objetivos. É uma ordem.”

Ele não aceitava que Evan perturbasse o treino de Charis. Podia machucá-lo, torturá-lo, mas não permitia que Charis fosse envolvida. Caminhou ao campo de treino e assumiu posição de luta.

“Vamos fazer um aquecimento antes. Sem cosmos.”

Lutaram corpo a corpo, durante quase meia hora, até que Myles chegou, surpreso.

“Depois de ontem, esperava que você estivesse dormindo, Hyoga.”

Ignorando o comentário, Hyoga parou de lugar e colocou-se à posição.

“Charis, agora vamos lutar com o cosmos por quarenta e cinco minutos. Depois disso, quero testar a sua velocidade. Myles.”

Seguindo as instruções de Hyoga, Myles ajudou-os com o treinamento, enquanto Hyoga rebatia qualquer tentativa sua de tocar no assunto do casamento. Aquele momento era dedicado inteiramente ao desenvolvimento de Charis, não sendo permitida qualquer interrupção. Ao final da manhã, Hyoga criou mais paredes de gelo para Charis quebrar com o cosmos, forçando-a a aumentar o seu poder. Enfim, levantou-se e aceitou que Myles lhe dirigisse a palavra.

“Você não dormiu nada?”

“Evan mandou-me limpar o salão, ou eu levaria mais chicotadas. Acho que as que ele contou já estão de bom tamanho.”

“Mandei que ele reduzisse, mas só consegui vinte. Você agüenta?”

“A questão não é se eu agüento, Myles. Ou agüento, ou morro”, respondeu secamente.

“Se você morrer, Athena ficará profundamente ofendida. Ela já tem se mostrado contrária à sua situação. Eu já expliquei que isso tem efeitos negativos aos homofalcos.”

“Já deixei bem claro à Athena que minha escravidão nada tem a ver com política. Mantenho minhas obrigações como cavaleiro de Athena, também. Se é algo injusto, não sei. Só estou mantendo a minha palavra com os homofalcos, conforme prometi. Agora, com licença. Evan quer dar-me a punição em breve. Não posso me atrasar para não pegar um pena mais pesada.”

Hyoga dirigiu-se à casa de Evan e esperou na porta. O homofalco chegou voando e sorriu, ansioso para puni-lo.

“Pergunte-me como foi minha noite.”

“…Como foi a sua noite, senhor?”

“Perfeita. Para completar, só me resta uma coisa. Venha.”
Evan puxou-o pela corrente, e Hyoga seguiu-o obediente até um local onde os ventos batiam sem piedade. Mesmo sendo verão, a temperatura ainda era baixa demais para um corpo humano sem cosmos. Aproximou-se de uma árvore e mandou que tirasse a túnica. Hyoga acatou e ajoelhou-se, oferecendo-lhe as costas nuas.

“Serão oitenta, com um desconto de Myles. Mas antes…”

Com uma corda, Evan amarrou-lhe as mãos na árvore, deixando-o ainda mais temeroso daquele castigo. Sorrindo, o homofalco contemplou sua situação como se admirasse uma obra de arte.

“Vou desamarrá-lo amanhã de manhã, não se preocupe.”

E segurando o chicote, preparou-se para dar o castigo.

“Está pronto?”

————————————————————–

Após encerrar o treino daquele dia, Charis veio trazendo um grosso cobertor e a caixa de remédios, com uma expressão preocupada. Hyoga despertou quando ela o sacudiu de leve.

“Mestre, você está bem?”

A dor nas costas era amenizada com o ar gelado, mas Hyoga sabia que sua situação devia estar muito pior. Sentou-se no chão para que Charis limpasse os ferimentos, encostando a cabeça na árvore. Arrependia-se de ter achado que venceria Evan dentro de uma hora e que conquistaria a confiança dos homofalcos tão fácil. Teria sido menos desonroso desistir do treinamento e aceitar suas limitações. Agora descobria na carne o quão limitada era a sua situação.

“Charis, como está o Adel?”

“Eu deixei-o dormindo em casa, mestre. Acho que não irá acordar até amanhã. Vou ficar aqui para cuidar de você esta noite.”

“Não. Eu tenho certeza de que ele vai acordar de noite. Tem feito isso todos os dias. Ele é só um bebê, deve dar prioridade a ele.”

“Mestre…”

Nervosa, Charis terminou de limpar e notou que a carne das costas estava dilacerada com o chicote. Não sabia como Hyoga podia mexer-se com ferimentos tão graves, nem como ele agüentava a dor do tratamento sem gemer.

Depois de tratá-lo, enrolou-o gentilmente com o cobertor e levantou-se, ainda indecisa.

“Devo mesmo deixá-lo, mestre? Posso ficar e fazer companhia.”

“Obrigado, Charis”, respondeu Hyoga, calmamente. “Mas eu gostaria de ficar um pouco sozinho agora.”

Condoída, antes de partir, Charis fitou-o.

“Mestre… Dói tanto em você quanto em mim.”

Deixado sozinho, Hyoga encolheu-se como pôde sob o cobertor, perguntando-se até quando seria reprimido daquela forma. Por mais obediente que fosse, Evan espancava-o por puro sadismo e ódio aos humanos. Pensou em desafiá-lo para mais uma luta, mas não tinha certeza se ganharia dentro do limite de uma hora. Mais aquecido após a ajuda de Charis, suspirou e adormeceu, já conformado.

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