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[Saint Seiya] Prisão das Asas - Parte 6, escrita por Nemui

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Autora: Nemui
Fandom: Saint Seiya
Gênero: drama, aventura
Classificação: 16 anos
Status: Completa
Resumo: A vida de Hyoga se transforma quando entra em contato com um mundo completamente diferente do seu.



Hyoga acordou ainda com dores. Gemeu, olhou em volta. Notou que Charis dormia no chão, próxima à parede. Com a lareira em brasas, encolhia-se de frio, numa posição fetal. Mesmo que não devesse demonstrar afeto por sua discípula, não conseguia evitar o sentimento de gratidão depois dos cuidados que lhe oferecera. Seus ferimentos estavam devidamente limpos, apesar da gravidade, e ela ainda tivera o cuidado de cobri-lo com um pano sobre os machucados das costas para que não manchassem o lençol.

Levantou-se com certa dificuldade e cobriu-a com o cobertor, tomando o cuidado para não acordá-la. Apesar da dor, não podia mostrar-se fraco a Charis ou aos outros homofalcos, ou sua fama de péssimo guerreiro aumentaria mais. Acendeu o forno e preparou o café da manhã em silêncio, contando já com a discípula.

Charis despertou uma hora depois, quando ele terminava de preparar a mesa. Observou o cobertor, surpresa, e em seguida o fitou.

“Mestre?”

“Acordou? Venha, precisa tomar o café da manhã.”

Desde que vieram à cidade dos homofalcos, há quase um ano e meio, Charis não tivera qualquer refeição com Hyoga, mantendo uma relação consideravelmente distante. Sentou-se à mesa e ele serviu-lhe o prato, sem dizer uma palavra. Ainda era uma relação mestre-discípulo, mas ele encontrava-se diferentemente gentil naquela manhã.

Ainda estavam comendo quando Ájax surgiu à porta, pálido.

“Charis! Você estava aqui…”

“Desculpe se o preocupei, pai…”

“O treinamento de ontem foi puxado”, interveio Hyoga. “Deixei que ela descansasse aqui, pois estava tarde demais. Desculpe se o preocupei, Ájax.”

Ájax não parecia convencido. Contudo, deixou passar e dirigiu-se à saída.

“Está bem. Estou contando com você para proteger a minha filha, cavaleiro. Não se esqueça quem Charis é e os perigos que ela corre nesta cidade.”

“Entendi.”

Após a saída de Ájax, Hyoga terminou de comer e logo voltou à postura de mestre frio. Depois de cuidar dos ferimentos causados pelos grilhões, levantou-se e chamou a discípula.

“Está na hora do treino, Charis.”

De certa forma, aquele era o momento do dia que mais prazer lhe dava. A cada lição, relembrava-se de seu treinamento com Camus e cada palavra ensinada, colocando-o a um passo à frente. Pouco a pouco, construíra toda a formação sem a qual não estaria vivo. Fazer o mesmo com Charis era uma missão de honra, uma homenagem silenciosa que prestava a Camus, um agradecimento aos seus ensinamentos.

As dúvidas quanto à sua competência rondavam a mente, constantemente. Era freqüente flagrar-se pensando se conseguiria ensinar tão bem quanto Camus, se conseguiria transformar Charis numa guerreira que soubesse caminhar com as próprias pernas. Acima de tudo, desejava que ela se tornasse uma pessoa nobre, que lutasse pelos motivos certos.

Enquanto combatiam, Hyoga reparou que Charis buscara no dia anterior praticar os golpes que errara e novas estratégias de aproximação. A cada investida, tentava uma forma diferente de ataque, à qual ele respondia da forma mais eficaz. Era exatamente o que ele esperara daquele treino: era o modelo de luta perfeito que ela usava para realizar testes e reavaliar seu treinamento da tarde. Contudo, notou que a nenhum golpe seu se defendia. Num dos contra-ataques, lançou-a tão longe que Charis esfolou-se inteira.

“Pensa que é alguma espécie de arma suicida, Charis?”

Atordoada, Charis respondeu ainda no chão:

“Como assim, mestre?”

“Você podia ter se defendido facilmente desse contra-ataque ou simplesmente tê-lo desviado. Não adianta apenas atacar, precisa proteger-se também.”

“Seus golpes são tão rápidos que não consigo, mestre.”

“Precisa acostumar-se à velocidade. Vejo que já testou tudo que queria em mim. Está na hora de treinarmos sua defesa para que não acabe esgotada antes do décimo ataque.”

“O que vai fazer?”

“Eu proíbo você de atacar-me. Já lhe ensinei a defender-se, quero que pratique isso! Defenda-se!”

Avançando furiosamente, Hyoga pôs-se a golpeá-la impiedosamente, lançando ataques dos quais deveria defender-se sem problemas. Contudo, Charis demonstrava clara dificuldade para deter seus ataques quando aumentava a velocidade.

“Não deve temer os golpes. Está com medo do quê? De sentir dor? De morrer? Como espera defender os outros se não consegue nem se proteger?”

Um soco no rosto fez Charis cair novamente, com os olhos fechados.

“Vou começar de novo, desta vez mais devagar. Mas você precisa acostumar-se depressa aos ataques. Vamos, Charis!”

Sem reclamar, ela levantou-se e preparou-se para a defesa. Hyoga iniciou com golpes lentos, com os quais ela sabia lidar. Aos poucos, no entanto, foi aumentando a velocidade. Sem conseguir defender-se de alguns ataques, Charis recuou, mas logo foi derrubada novamente.

“De novo, vamos!”

O treino prosseguiu com Charis a defender-se dos ataques como podia, tentando acostumar-se à velocidade de Hyoga, achando que era praticamente impossível. Por mais que tentasse acompanhar os movimentos, sempre chegava a um ponto em que levava um golpe certeiro, daqueles que se perguntava depois como o sofrera. Mesmo assim, não desistiu, continuava a erguer-se resoluta a cada queda, determinada a conseguir. Subitamente, avançar mais aquele passo tornara-se uma questão de honra, um objetivo a ser cumprido na base da teimosia.

O resultado, no entanto, chegava a desanimá-la. Sempre que Hyoga aumentava mais a velocidade, não conseguia sequer desviar-se dos ataques, sempre recebendo algum de raspão ou diretamente num ponto vital. Talvez aquele fosse, mais do que a luta por terra, seu maior ponto fraco. Quando não conseguiu mais se levantar, Hyoga mostrou-se consternado com a dificuldade da discípula.

“Estou vendo que preciso dar um jeito nessa dificuldade com defesa. Vamos trabalhar mais nisso amanhã. É nessas horas que gostaria de dispor do dia todo para ensinar-lhe.”

“Talvez… Eu não possa mesmo aprender…”

“Está desanimando só porque tem dificuldades? Acha que ninguém as tem? Não quero saber de medos, frustrações, vergonha, não quero ouvir de novo. Enfie na sua cabeça que precisa aprender a defender-se, ou nunca poderá ser forte como deseja. É a sua vontade persistente a ponto de vencer o ponto fraco?”

“Eu entendi, mestre…”

“Não, não entendeu. Escute, Charis, o limite não está em seu corpo, mas em sua mente. A maioria das pessoas não consegue despertar o cosmos porque simplesmente não acredita ser capaz em tamanha façanha. Não quero que tenha um pensamento tão pobre e limitado, nenhum discípulo meu pode ter.”

“O que devo fazer então? Se o senhor for ao treino, o que posso fazer para melhorar a minha defesa?”

“Treine-a. Pedirei ajuda a Ájax para isso. No tempo restante, treine movimentos de esquiva. Imagine-me à sua frente, dando este mesmo treino. Faça o que fez com os ataques, pense na melhor maneira de defender, no ritmo dos movimentos de seu adversário, se é melhor desviar-se ou bloquear. Enfim, quero que se prepare, pois amanhã quero ver avanços.”

Hyoga deixou-a um pouco mais cedo para procurar Ájax, que circulava constantemente pela cidade. Naqueles momentos, desejava ter asas como todos para procurá-lo de forma eficiente. Precisava, contudo, conformar-se a procurar a pé, perguntando a todos e buscando rastros dos locais que ele visitara. Encontrou-o próximo ao limite da cidade, conversando com um grupo de soldados.

“Ájax.”

“Hyoga. Aconteceu algo com Charis?”

Desde que virara mestre, Ájax sempre se mostrava preocupado com a filha quando era procurado. Hyoga pensou, num relance, que o líder dos homofalcos devia preocupar-se com o que estava para acontecer e não com o passado.

“Preciso de sua ajuda no treino de Charis, porque sairei à tarde e não terei tempo de assisti-la. Não tenho o meu cosmos para treiná-la melhor, nem posso permanecer ao seu lado. Desta forma, o não consigo trabalhar no que quero de modo que ela compreenda minhas lições.”

“É claro que o treino de Charis é de meu interesse, Hyoga, não posso recusar-lhe uma ajuda. Diga-me. Quer que eu divida o tempo de treino com você? Posso dedicar uma parte da minha tarde com ela.”

“Não será preciso. Mas é possível destacar trinta homofalcos adultos, de preferência soldados?”

“Geralmente eles ajudam na manutenção da vila, muitos acabam ociosos. Não vejo problemas.”

“Então está disposto a aceitar qualquer tipo de treino?”

“É claro. Diga e eu prometo que cumprirei.”

“Quero que ordene esses trinta homens a apedrejá-la.”

A surpresa no rosto de Ájax foi tanta que faltou pouco para não apedrejá-lo no lugar de Charis.

“Como assim?! Por que quer matar a minha filha?”

“Não quero matá-la. Acha que me daria ao trabalho de treiná-la se a quisesse morta? Quero que a apedrejem até que não consiga mais se levantar. Dependendo, voltarei a pedir o mesmo amanhã.”

“Não pode fazer isso!”

“Sou o mestre, é claro que posso. Em todo caso, se estiver em dúvida, pergunte-lhe se aceita ser apedrejada. Tenho certeza de que aceitará.”

“Hyoga…”

“Mais perigoso será se não souber enfrentar esse desafio. Não estou formando uma guerreira qualquer, Ájax. Como você disse, ela precisa ser forte para liderar os homofalcos no futuro, ou não poderá trazer-lhes a paz. Apenas faça o que disse.”

Apesar de parecer um método cruel demais, Hyoga tinha certeza de que Charis só conseguiria libertar-se diante da morte e rodeada do perigo. Geralmente golpes de cosmos proporcionavam tensão suficiente no discípulo para forçá-lo ao máximo, mas Hyoga só podia aplicar golpes comuns. Era necessário investir em outro método, que lhe desse possibilidade de defesa, mas não de fuga.

Encontrou-a ainda no local de treino, praticando defesa. Já passava do horário de almoço e Ájax não demoraria a reunir os homofalcos. Parou, observou-a um pouco e deteve o treino.

“Acho melhor que não esqueça os limites de seu corpo, Charis. Eu quero que você volte para casa e almoce. Descanse um pouco, pois seu pai a chamará para treinar à tarde, um exercício que vai ajudá-la a melhorar sua defesa. O conselho que dou é: não importa o que aconteça. Você precisa se defender.”

Sem entender, Charis assentiu.

“Está bem, mestre. Assim o farei.”

“Ótimo.”

Deixando-a, Hyoga voltou para casa para preparar-se ao seu treino da tarde. Almoçou brevemente, pois não podia chegar atrasado. Os ferimentos do corpo ainda torturavam-no tanto que sentia que mais castigos acabariam por deixá-lo aleijado. Tirou a túnica e saiu à sua nova rotina, ainda sem saber como terminaria. As queimaduras ainda estavam à carne viva, ardendo a cada rajada de vento gelado que o atingia. Mesmo assim, forçava-se a continuar.

Para o seu alívio, Evan não parecia disposto a impor outro treino abusivo como o das flexões, já que muitos estavam feridos demais, como Hyoga. Na parte inicial, exigiu a corrida em torno da montanha, da mesma forma como no primeiro dia.

Após o esforço de Hyoga por seus companheiros do dia anterior, ele não era mais visto como uma figura exclusiva do grupo, mas como um participante que se destacava por seu esforço. Aos poucos, conseguia transformar a imagem negativa que seu título lhe atribuía e revelava seu caráter aos demais, conquistando-lhes a confiança. Talvez só mais alguns dias seriam suficientes para ser considerado um aliado, O que lhe daria mais liberdade para agir militarmente. Contudo, sabia que precisava ir até o final do treino, que duraria dois anos até ganhar o título oficial de soldado.

Entretanto, Evan não queria perder a chance de derrubá-lo na fama que se tornava visível a todos, depois da simulada batalha. Ao chegar à segunda metade do treino, anunciou, mantendo uma expressão neutra:

“Hoje vamos treinar ataques de asas. Vou acompanhar batalhas com todos, uma dupla de cada vez. Vocês o farão a trinta metros do solo. Aquele que for atingido e começar a sangrar será considerado perdedor.”

Imediatamente, os homofalcos decolaram, restando Hyoga no chão, sem ação alguma. Evan sorriu e aproximou-se, segurando seu chicote. Por um momento, o rapaz achou que levaria uma exorbitante punição por não ter asas para voar. No entanto, não foi forçado a ajoelhar-se.

“Então você sobrou, cavaleiro? A desvantagem dos humanos em relação aos homofalcos é inevitável, afinal. Bem, não posso culpá-lo por ser assim de natureza, como um homem que nasce cego. Mas não o deixarei sem fazer nada.”

Evan estendeu-lhe o chicote, indicando-lhe para pegá-lo.

“Cada perdedor deve ser punido. Darei a cada um vinte chicotadas. Eles voarão para cá e você deve dominá-los. Irei instruí-los para obedecê-lo, não se preocupe. Quando vierem, agarre-os pelos cabelos e assim os arraste até o local de punição. Dê-lhes as chicotadas com toda a força que tiver, não tenha dó.”

A intenção de Evan nunca lhe fora mais clara. Que homofalco o respeitaria, tratando-o daquela forma? Enojado com a ordem, Hyoga recusou o chicote.

“Desculpe, senhor, não posso.”

“Está me desobedecendo? Não deu a palavra? Não ia me obedecer?”

“Pode me punir, mas não posso fazer isso.”

O olhar de Evan tornou-se subitamente agressivo por ter seu plano em risco.

“Essa não é a questão. Ou me obedece, ou está fora do treino. O que prefere?”

Aquele era um trunfo que Hyoga não tinha como rebater. Contudo, não achava justo ele levar a culpa por algo que Evan determinara.

“Está bem. Mas só poderei fazer com uma condição, que considero justa: que eles saibam de sua ordem.”

“E quem você pensa que é para discutir justiça no meu campo de treino, cavaleiro? Só estou dizendo para obedecer-me.”

“Não posso, Evan…”

“Então está fora do treino.”

Aquela era a situação limite entre ele e Evan até então. Não havia como revidar aquele ataque, não sozinho. Caiu de joelhos e com as mãos no chão, oferecendo-lhe as costas. Respondeu alto, gritando para ter certeza de que todos ouvissem:

“Puna-me se quiser! Eu jamais torturarei aqueles que são meus colegas, jamais os trairei!”

Curiosos, muitos desceram um pouco, de forma que pudessem ouvi-los melhor. Evan ergueu o chicote, furioso, mas hesitou. Se atacasse Hyoga, ele seria o vilão da história. Agarrou-o pela corrente e puxou-o até os soldados, dando-lhes as ordens em voz baixa.

“Levem-no para longe e dêem-lhe uma surra. Não preciso desse inútil hoje.”

Ferido como estava, não havia diferença se Hyoga levasse uma surra. Qualquer suposição Evan manteria oculta, deixando aquele episódio como caso morto. Virou-se e decolou, já anunciando o começo das lutas.

“Muito bem, o que estamos esperando? Podem começar!”

Distraídos, os homofalcos voltaram suas atenções ao treino. Hyoga foi levado para longe, como Evan mandara. Ao chegarem a um local onde ninguém os veria, sua tortura iniciou-se com socos no rosto, deixando-o com diversas marcas. Em seguida, surraram no corpo, em golpes que com certeza permaneceriam como hematomas por dias. Após meia hora de golpes, deixou-se cair no chão, atordoado, esperando por mais ataques. Contudo, eles não vieram.

“Evan não estava certo.”

Surpreso, olhou para trás. Os soldados fitavam-no de maneira tranqüila, sem traços de agressividade.

“Vocês…”

“Mas as ordens dele são absolutas. Nós demos uma surra. Ele não disse quão cruel ela devia ser. Acho que essas marcas já são suficientes para enganá-lo.”

Vendo que os soldados não estavam animados para continuarem com a tortura, arrastou-se no chão e deitou-se numa posição menos desconfortável. Eles sorriram-lhe.

“Está tudo bem. Fique aqui e descanse um pouco, está ferido demais. Não podemos ignorar um homem que se sacrifica por seus companheiros. Provou que é um guerreiro assim ontem e hoje.”

“É verdade. É Hyoga o nome, certo? Muitos consideraram seus atos de grande valor ontem, todos o elogiaram. Não achamos certo espancá-lo a tarde toda. Vamos, descanse.”

Hyoga não esperava que o respeito dos soldados viesse tão rápido. Era muito fácil desconfiar das palavras de um humano, mas o impacto das ações típicas dos cavaleiros de Athena mostrara-lhes como ele era na realidade. O fato de aqueles soldados apoiarem-no de certa facilitaria o resto do treinamento.

Estremecendo de frio e de dor com a surra, encolheu-se no pequeno trecho de terra onde não havia neve e adormeceu, exausto.

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Nevava suavemente quando ele acordou, quase de noite. Um dos soldados cutucava-o com a ponta da lança, indicando que o tempo de treinamento terminara. Apesar da situação desconfortável, aquele descanso viera em boa hora, pois Hyoga se sentia renovado e pronto para enfrentar mais loucuras de Evan. Levantou-se e agradeceu-lhes.

“Obrigado por tudo. Não sei se agüentaria mais sem esse descanso.”

“Você ainda não provou que é nosso aliado, mas sabemos que não é igual aos demais humanos. Vá para casa agora.”

Hyoga seguiu seu caminho, e os homofalcos decolaram, em direção às suas casas. Abraçou-se enregelado, caminhando mais rápido para proteger-se logo na lareira.

Ao entrar, viu Charis deitada no chão, coberta de sangue e de ferimentos, principalmente nas mãos e nos pés. O rapaz aproximou-se e sacudiu-a levemente.

“Charis, acorde. Acorde.”

A garota despertou e encolheu-se de dor, gemendo. Olhou para cima e notou que a fitava. Não sabia por que, mas cobriu-se de vergonha e tentou esconder o rosto. Talvez fosse pelo treinamento da tarde.

“Você foi atingida por quantas pedras?”

“Eu… Não lembro…”

“Muitas?”

Timidamente, ela assentiu com a cabeça, em silêncio.

“Entendi. Levante-se agora, volte para casa. Amanhã fará o mesmo treinamento de hoje. Vou insistir até que você consiga defender-se de todas as pedras e que passe a lutar comigo sem ser um mero saco de pancadas. É muito importante que aprenda a suportar a pressão de seus oponentes, ou poderá perder a moral durante a batalha.”

A menina levantou-se com dificuldade, sob o olhar rígido do mestre. Algumas gotas de sangue pingaram no chão, já manchado de vermelho, e Charis dirigiu-se à saída, perguntando-se se haveria algum sinal de pesar por parte de Hyoga, após tamanha crueldade. Entretanto, a expressão dele era a mesma de sempre, dotada de grande neutralidade com tudo à volta.

Segurou a maçaneta, ainda em dúvida. O último olhar furtivo dera-lhe uma visão mais ampla do estado de Hyoga. Sujo dos pés à cabeça, estava todo machucado e cheio de hematomas, resultado de algum castigo de Evan. No mesmo instante, perguntou-se quem cuidaria daqueles ferimentos se ele a dispensara.

“O que está esperando, Charis? Acha que não precisa descansar para amanhã?”

Sem a chance de permanecer e descobrir por que Hyoga a expulsara de casa tão cedo, Charis voltou-se e caminhou de volta para casa, mancando. Seu pai também se mostrara chocado com tal treinamento, mas não lhe dissera uma palavra ou impedira que as pedras a atingissem.

Mesmo tentando seguir o conselho de Hyoga, não conseguia defender-se, por algum motivo que desconhecia. Era a velocidade das pedras? Ela ainda conseguia vê-las se aproximando. Era a indecisão de qual movimento usar? Mas Hyoga ensinara-lhe qual movimento era mais eficiente em cada situação. Afinal, o que a impedia?

Hyoga colocou mais lenha na lareira e deixou umas panelas com água esquentando no fogão; queria tomar um banho. Talvez aquele não fosse o horário mais apropriado, mas não havia outro. Como não queria que Charis perdesse o tempo do descanso de que necessitaria cuidando dele, decidiu que era melhor lavar todos os ferimentos de uma só vez.

Deitou-se na cama e suspirou, relembrando as palavras dos soldados que lhe deram a surra. Estava sendo aceito tão rapidamente que se perguntava se aquele treinamento era mesmo necessário para tanto. Mas logo se lembrou de que sua fama era devido ao comportamento durante o treino, aos valores que tinha como cavaleiro aplicados em companheiros diferentes.

Enchia a tina de água quando as batidas ocas na porta o detiveram. Como raramente recebia visitas, mostrou-se curioso e atendeu, esquecendo-se da água fervente no fogão. Os rostos preocupados de Eleni e de Myles surgiram logo em seguida.

“Hyoga, graças à deusa você está bem!”

“Nós ficamos preocupados, Hyoga. Soubemos sobre o treino de hoje, todos estão comentando.”

“Comentando?”

“Que Evan mandou que o torturassem à distância. Geralmente muitos acabam seriamente feridos depois disso. Mas… É mentira, não é? Estou vendo que não está tão ferido assim.”

“Não foi tão ruim assim”, respondeu, deixando-os entrar.

Eleni notou a tina d’água e caminhou pela casa, à procura de Charis.

“Onde está Charis? Ela não está ajudando?”

“Mandei que voltasse para casa descansar. O treinamento que dei à tarde foi duro, ela acabou ferida demais.”

“Pobrezinha. Mas e os seus ferimentos? Tantas marcas de chicote, Hyoga…”

“Tudo bem. Sei me virar.”

“Deixe-me ajudá-lo por hoje, estamos com tempo livre. Tire a roupa, está imundo.”

Imediatamente, Eleni tirou-lhe o balde da mão e pôs-se a preparar o banho, como quando Hyoga levara a primeira punição. Aparentemente, os homofalcos conservavam a publicidade do banho, pois não se importavam em mostrarem-se nus para os outros em algumas ocasiões. Myles continuava ali, sentado em sua cadeira com Tibalt nos braços, observando-o.

Após despir-se, Hyoga entrou na água e Eleni passou a ajudá-lo, limpando-lhe as costas com cuidado. Myles hesitou um pouco, antes de falar.

“Sabe, já acompanhei treinamentos de muitos soldados, Hyoga, muitos mesmo. Mas até hoje, nunca vi um que fosse tão torturado quanto você. Está claro como Evan o odeia e como os soldados homofalcos admiraram a sua conduta ontem e hoje. Estão dizendo que não é preciso lutar muito para descobrir o verdadeiro caráter de um guerreiro.”

“Eu fiquei surpreso pela resposta que me deram, Myles, e feliz.”

“Sim. E é por isso que acho que você deve abandonar o treinamento. Eles sabem que você morrerá se continuar.”

“Mas se eu abandonar, acharão que sou um covarde, Myles. Entrei para conquistar a confiança deles. Como podem confiar num colega que os abandona justamente quando lhes conquista a confiança? Não é justo.”

“Eu temi que dissesse isso. Hyoga, Evan não irá sossegar enquanto você não morrer. São dois anos de treinamento, não é como o que fazia para ser cavaleiro, entende?”

“Você é que se engana. Quantas vezes precisei enfrentar a morte para conseguir elevar minhas capacidades? Não é muito diferente do que Evan está fazendo comigo.”

“Mas como será sem o cosmos? Chegará uma hora em que os exercícios não poderão ser realizados sem cosmos. O que fará? Morrerá?”

“Talvez não.”

“No que está pensando?”

“Ájax sugeriu-me esse treinamento como uma forma de aumentar a confiança dos homofalcos em mim. Mas não é apenas isso, Myles. Pode ser que a razão de eu não poder utilizar o meu cosmos neste local seja os próprios moradores. Eles me temem, principalmente os soldados, já que as homofalcas se acostumaram com a minha presença. Portanto, se eu conseguir conquistar a confiança desses companheiros…”

“Conseguirá até livrar-se da corrente de Prometeu?”

“Exatamente.”

“E se não der certo?”

“Bem… Se não der, como você disse… Não poderei fazer os exercícios, só me restando a morte.”

Eleni parou por um momento, consternada.

“E você irá quebrar a promessa de treinar Tibalt?”

“Não… É claro que não. Então serei obrigado a desistir mesmo. Mas pelo menos eles saberão que fui até o último dos limites para acompanhá-los, que dei o máximo de mim. E espero que compreendam e que ainda me aceitem como alguém confiável.”

Sem ânimo para continuar a conversa, Myles voltou-se a Tibalt.

“Só espero que isso não aconteça antes do que imagina.”

Ao relar num ferimento ainda aberto, Eleni parou, pesarosa, e Hyoga mexeu-se rapidamente em reflexo. Mesmo sem ter recebido chicotadas naquele dia, seu corpo estava se transformando num depósito de machucados. Ainda com as palavras finais de Myles na cabeça, imaginava se o dia de sua desistência não estaria próximo demais.

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“Mestre…”

“Já está pronta?”

Charis estava de pé à sua frente, mas recusava-se a assumir postura de batalha. “Mestre, eu não entendo.”

“O que é?”

“Eu hesito para defender. Não entendo por que faço isso.”

“Uma hora vai conseguir, se treinar bastante.”

“Não sei se consigo.”

“Já conversamos a respeito disso. Não preciso repetir, preciso? Enquanto sua mente acreditar que não pode, não conseguirá.”

“Sempre que acredito que dará, acabo não conseguindo…”

“Isso é porque você não acredita, ou porque a técnica não foi aperfeiçoada o suficiente… ou porque deseja ser atacada.”

“Como assim? Não desejo isso!”

A falta de sucesso no treino abalara-a tanto que Hyoga já previra aquele momento de reclamação. Era um ponto em que o discípulo começava a duvidar de tudo: do mestre, do treino, de suas próprias habilidades.

“Talvez não conscientemente. Pode ser que tenha um trauma, algo que a trave no momento.”

“E o que é?”

“Não sei.”

Hyoga lembrou-se então do primeiro dia que a conhecera. Uma menina assustada, que tinha medo de tudo e de todos. Aproximou-se e ajoelhou-se para fitá-la frente a frente.

“Charis, como mestre, tenho o direito de saber para ajudá-la melhor. O que aconteceu enquanto você estava na terra dos homens, antes de conhecer-me?”

Logo o terror surgiu nos olhos da menina. Imediatamente, Charis abandonou a postura de aprendiza de cavaleiro para ser novamente a medrosa garotinha, que tinha medo de absolutamente qualquer coisa.

“Eles machucaram-na?”

Ela olhou para o chão e não quis responder com palavras. Apenas assentiu em silêncio com a cabeça, quase derramando lágrimas.

“Ainda tem medo deles?”

Uma nova afirmação não lhe deixou dúvidas. Acabara de encontrar a razão de tamanha dificuldade. Levantou-se e decidiu que uma conversa talvez fizesse mais diferença que uma manhã de luta.

“Você sabe, animais ficam paralisados de medo, mesmo quando sabem como defender-se. Ficam tão nervosos que acabam se esquecendo. É o que está acontecendo com você, Charis. Em sua mente, tenta visualizar os humanos, seus maiores inimigos enquanto treina. Mas tem medo deles. Já notei que seus ataques são fortes, cheios de rancor, por isso sei como é que treina. Você tem raiva deles, sabe que conseguirá extrair a força desse sentimento. Mas teme tanto que não pode defender-se quando eles atacam.”

Escutando, Charis parecia pensativa, digerindo suas palavras. Hyoga não tinha pressa para resolver aquele problema, sabia que não era tão simples. Após quase dois minutos, Charis baixou ainda mais o olhar.

“É verdade…”

“Não deve sentir raiva deles.”

“Mas…”

“Eu repito. Não deve sentir raiva deles. Se ficar nervosa cada vez que leva um golpe, nunca verá a realidade de uma guerra, de uma batalha. Não é nada pessoal, Charis.”

A menina ergueu a cabeça, com o olhar furioso.

“Não é nada pessoal? É porque você não é um homofalco, não sabe como o meu povo sofre. Eles são cruéis, sempre foram. Eles machucam homofalcos inocentes, querem dominá-los apenas por algumas notas de dinheiro. Não diga que estou errada porque sei que não estou. Sendo tão maus, como quer que eu não sinta raiva deles, mestre?!”

“Esqueceu que também sou um humano? Por acaso também tem raiva de mim e do treinamento que dou?”

“Não! Você é diferente! É o único que…”

“Eu não sou diferente, Charis. Não sou. Sou um humano igual a todos, minha mãe era humana e não era cruel. Meus amigos são humanos e não são cruéis. Conheço tantos humanos que jamais machucariam um homofalco. Você está ofendendo pessoas que me são muito caras, sabia?”

Suas palavras calaram Charis de imediato.

“Quando vim para a terra dos homofalcos, jogaram-me na prisão e me acorrentaram. Entrei no treinamento dos soldados, Evan e os outros me machucaram até que não conseguisse mais me levantar. Mas nunca odiei os homofalcos por isso, jamais! Nunca destratei ninguém aqui, nunca levei para o lado pessoal. Acha que mato os meus inimigos no campo de batalha porque os odeio, Charis? Não tenho motivo nenhum para odiá-los. Posso combatê-los um dia e ser amigo deles no outro. Não há a menor diferença entre os humanos e os homofalcos além da cultura.”

“Eu não concordo, mestre…”

“Pensa que sabe tanto dos humanos assim? Eu gostaria que conhecesse outros humanos, interagisse com eles para saber que nem todos são tão cruéis como imagina. Pudera conhecesse o Shun, o Seiya, o Shiryu… Descobriria o significado da palavra humanidade. Pena que eles não podem vir para cá sem tocar no cristal, senão os chamaria de imediato e deixaria que passassem um tempo com você. Ah, Charis… Como eu queria que compreendesse.”

“Acha que é importante esta conversa? Por que não posso simplesmente treinar e vencer esse obstáculo com minha própria força?”

“Porque essa não seria a verdadeira força. Por que acha que já consegui vencer inimigos mais poderosos do que eu? Eles possuíam cosmos e técnicas mais poderosas.”

O silêncio da aprendiza permitiu-lhe que continuasse.

“Um coração cheio de raiva não tem valor nenhum, Charis, força nenhuma. Você pode ter toda a vantagem para si quando é poderoso… Mas alguém que luta cego e com o coração vazio inevitavelmente será derrotado por outro que tem a fé e a esperança do lado. Os cavaleiros de Athena não são fortes apenas pelas técnicas que possuem, mas também pelas convicções que carregam na luta. Esse é o significado de alguém verdadeiramente forte.”

“Ainda não entendo, mestre… Eu… não posso simplesmente ser o mais forte possível para proteger os homofalcos dos humanos?”

“Você sempre deve ser o mais forte possível, Charis, pois técnica e cosmos também contam. Mas o espírito também é imprescindível. Muitas pessoas caem no erro de achar que técnicas e armas são suficientes para proteger. Outras simplesmente se cegam com o poder, na desculpa de proteger os mais fracos. O ato de proteger carrega um significado mais profundo.”

“Ensine-me, por favor, mestre.”

Mas como ensinar? Tudo que dizia eram lições que aprendera no campo de batalha, com feridas no corpo. Não podia simplesmente esperar um homofalco ficar em risco para que Charis praticasse.

“Honra e justiça não é algo que consigo ensinar apenas com pensamentos vagos, ainda mais a uma criança. Talvez… Você queria ouvir o relato de um cavaleiro que já enfrentou várias batalhas para compreender.”

O rosto da menina iluminou-se, imaginando que tipo de histórias Hyoga guardava para contar-lhe.

“Sim, mestre! Quero muito saber como eram as lutas dos cavaleiros de Athena!”

Aquela era uma lição que Camus jamais lhe dera. No entanto, era normal os discípulos do Santuário conhecerem as histórias mais famosas dos cavaleiros, inspirando-lhes a conquista da armadura. Mesmo que o objetivo primário de Charis fosse proteger os homofalcos como substituta de Ájax, achava que ela poderia ter uma noção melhor de como era a outra visão dos humanos.

“Então… Vamos para a minha casa. É melhor que contar aqui fora, neste frio. Em compensação, quero que treine até tarde hoje, mesmo depois das pedras.”

Charis estremeceu ao ouvir sobre as pedras, mas não reclamou. Talvez estivesse ansiosa para conhecer mais sobre os lendários cavaleiros de Athena. Para não se tornar mais próximo de Charis, resolveu apenas contar sobre a estrutura do Santuário e a última Guerra Santa, destacando os cavaleiros de ouro e seus amigos e colocando-se em segundo plano.

Em casa, Hyoga contou como se desse um relatório ao Santuário, mas Charis ouviu cada palavra com assombro e admiração. Mesmo as histórias épicas dos homofalcos que lera dos arquivos de seu pai não chegavam a ser tão grandiosas quanto as batalhas dos cavaleiros.

Hyoga fez questão de contar sobre a suposta traição dos cavaleiros de ouro, inclusive o seu mestre, e como eles abandonaram tudo para proteger Athena. Aos poucos, notou que Charis começava a compreender como eram as relações entre cavaleiros e sua luta, perguntando sobre cada personagem em si. Hyoga dava os detalhes que lembrava, procurando enfatizar suas características profissionais.

Embora o relato tivesse tomado sua manhã inteira, esperava que tudo aquilo pudesse servir de ajuda a Charis. Por já estar quase na hora do treino, tirou a túnica e comeu um pedaço de peixe do dia anterior, apressadamente.

“E todos os cavaleiros são assim?”, perguntou Charis, enquanto o via preparar-se.

“Todos que permaneceram ao lado de Athena depois que ela assumiu o controle, sim. E nenhum deles possui asas, Charis.”

“Desculpe.”

“Eu entendo que tenha pensado mal dos humanos depois do que aconteceu. Mas o mundo é tão vasto, Charis, com tantas pessoas, de tudo quanto é tipo. Há boas, há más.”

“Estou vendo, mestre…”

“Bem, tenho de treinar. Prepare-se, terá de enfrentar aquelas pedras de novo. Vai repetir esse exercício até conseguir, entendeu?”

“Sim. Até mais tarde, mestre.”

“Hum.”

Hyoga saiu e foi direto ao campo de treino. Achava que Evan definitivamente o esmagaria naquele dia, mas estava enganado. Ao chegar, notou que havia vários olhares reprovadores… em direção a Evan. Sem querer destruir ainda mais sua imagem, o líder militar simplesmente deu uma corrida e um exercício de luta em duplas. Percebeu, recebendo olhares respeitosos dos colegas, que acabara de virar um soldado homofalco.

——————————————————————

Ao voltar, Hyoga tirou uma parte das plantações para preparar um jantar decente, já que não estava cansado. Passou perto do local onde treinava Charis e surpreendeu-se quando viu os homofalcos atirando pedras sem parar na criança. Tanto faltava pedras que Ájax tinha chamado mais homens para recolhê-las e assim manter o exercício constante. Charis estava mais machucada que antes, com o sangue a escorrer dos braços e da cabeça. Mesmo assim, mantinha-se firme em pé, ofegante, enquanto tinha o olhar concentrado nos ataques que vinham.

Os homens lançavam as pedras de uma vez só, mas ela conseguia rebater cada ataque com um pouco de dificuldade. Ainda não estava perfeita na defesa e hesitava sutilmente, mas era uma diferença vertiginosa. Uma das pedras atingiu-a, mas ela manteve-se de pé. Um novo fio de sangue escorreu de seu ombro, num machucado que provavelmente levaria dias para cicatrizar. Vendo seu empenho, Hyoga não conseguiu evitar um sutil sorriso de admiração e observou o treino de lá mesmo.

As pedras continuaram e Charis suportava os ataques bravamente, embora já estivesse exausta demais para continuar. Ájax, surpreso, não mandou que parassem.

Num determinado momento, foi atingida de tal forma que se tornou impossível deter os ataques seguintes. Ela ainda conseguiu desviar de alguns, mas logo caiu exausta, sem poder mais levantar-se.

“Chega”, ordenou Ájax.

Hyoga enfim aproximou-se e recebeu um olhar neutro do líder.

“Como conseguiu isso tão rápido?”

“Você dá crédito à pessoa errada. Não fui eu quem se defendeu.”

Charis arrastou-se no chão e sentou-se, recuperando o fôlego. Viu Hyoga e sorriu-lhe.

“Desculpe, mestre. Vou me esforçar para que nenhuma pedra me pegue amanhã.”

“Então você perdeu o medo delas.”

“Sim. Depois do que me contou… Fiquei envergonhada por pensar tão mal dos humanos. Há pessoas boas também. Os cavaleiros são incríveis, tão formidáveis… Agora entendo por quê.”

“Isso é bom. Mas não está pensando em virar uma amazona, está?”

“De início até pensei, mestre. Mas depois percebi que Athena não é mais importante para mim que as pessoas que amo nesta terra. Não é Evan que diz que cada golpe que um soldado homofalco recebe é transferido à sua família? É porque ele precisa ser forte para protegê-los. Não só o poder… Mas o espírito também. Não posso ter medo das pedras. Os homens não são maus como imaginava.”

Ouvindo, Ájax também se aproximou.

“Filha…”

“Pai… Eu prometo para você. Vou ser a melhor líder possível aos homofalcos. Com os ensinamentos do mestre Hyoga e o seu apoio… Não quero mais hesitar.”

Emocionado, Ájax ajoelhou-se e abraçou-a, arrancando sem querer alguns gemidos de dor da filha.

“Você será… melhor do que eu.”

Não agüentando mais a dramaticidade da ocasião, Hyoga ignorou os sentimentos de Ájax.

“Charis, vamos continuar. Você não tem usado as asas por muito tempo, precisa exercitá-las.”

“Por quanto tempo, mestre?”

“Quatro horas. Sem tocar no chão.”

Desvencilhando-se do pai, Charis levantou-se no ar com as asas, ainda próxima ao chão.

“Voe em volta, mas não saia da área da cidade. Depois disso, poderá voltar e descansar em casa. Amanhã continuaremos.”

“Entendi, mestre. Vejo-o amanhã!”

Ao vê-la partir, Ájax não sabia se socava Hyoga ou se lhe agradecia por ensiná-la.

——————————————————————

Hyoga estava ajoelhado de quatro no meio do campo de batalha. Evan chicoteava-o nas costas, após mais um exercício falho que envolvia o cosmos. Naquela semana, completava dois anos desde que chegara à terra dos homofalcos, tempo que parecia correr depressa demais. As tensões entre os homofalcos naqueles meses de paz cessaram e Hyoga já era considerado um morador inofensivo daquela terra. Embora ainda usasse a corrente de Prometeu, sentia que ninguém se importaria se usasse o cosmos, pois sabiam que não faria nada de mau.

Os dez golpes estipulados daquele dia eram cruéis, pois já recebera vinte no anterior. O sangue escorria pelo corpo, uma situação à qual já se acostumara. Como Evan parara de torturá-lo especialmente por ser humano, os olhares dos homofalcos eram de neutralidade, de acordo com a punição. Hyoga também sabia que concordara, desde o início, ser tratado daquela forma.

Levantou-se após o último estalo, atordoado, e Evan dispensou-os, no final de mais um treino. Logo quando Hyoga saía do campo, alguns colegas aproximaram-se, animados.

“Ei, Hyoga! Que tal uns goles antes de voltar para casa? Não há nada melhor depois de tantas pancadas!”

“Talvez depois, Zeth. Deixei Charis no gelo, ela já deve estar esgotada.”

“A menina é de ferro, amigo. O que me diz, só um copo? Otis disse que você topava.”

“Eu não sou Otis. Digo a verdade, não posso deixá-la. Amanhã, que tal?”

“Palavra de homofalco, hein?”, riu. “Vai tomar o dobro pra compensar hoje.”

“Ah.”

Hyoga tomou um caminho diferente aquele dia, desviando-se pela montanha. A cidade dos homofalcos era parcialmente protegida dos ventos gelados do ártico por uma cadeia de montanhas que funcionava como parede. Encolhendo-se de frio por estar sem camisa, Hyoga abraçou-se e correu para manter-se aquecido. Viu a imagem de Charis, ao topo de uma colina, recebendo diretamente os ventos gelados. Escalou-a rapidamente e encontrou a discípula encolhida sob a neve e tremendo de frio. Conseguia manter-se viva pelo cosmos recém-despertado, que queimava suavemente à sua volta.

“Charis, cheguei.”

Ela não respondeu. Hyoga a deixara ali antes de ir treinar e agora destrancava as correntes com as quais a prendera ali. Ao tirar os grilhões da perna, notou como a garota crescera naqueles meses, talvez por causa do duro treinamento. Sem dizer mais nada, colocou-a sobre um dos ombros, mesmo que doesse por causa das chicotadas, e voltou para casa.

Embora não admitisse, Charis era tão determinada quanto ele na época do treinamento. Se no início dera exercícios leves comparados aos dos cavaleiros de Athena, agora pagava a diferença com uns mais rigorosos. Entrou em casa e derrubou-a sobre a pele de urso que deixara em frente à lareira, já acesa. Em seguida colocou mais lenha e pôs-se a preparar seu jantar.

Ser mestre era uma perspectiva totalmente nova a ele. De início, custou-lhe ser chamado constantemente de mestre, sentindo-se inseguro na nova posição. A responsabilidade de ensinar pesava-lhe tanto que passava noites em claro pensando na melhor forma de explicar uma lição a Charis. Teria Camus se sentido da mesma forma? Mesmo tendo adquirido experiência suficiente para ensinar nas batalhas anteriores, sentia como se ainda houvesse muito a aprender antes de ser o professor ideal.

Charis estremeceu e despertou, olhando para a lareira. Em seguida sentou-se sobre o tapete e viu seu mestre cuidar da comida.

“Mestre…?”

“Há um cobertor no armário. Pegue, se quiser.”

Ainda com frio, ela seguiu o conselho e enrolou-se no cobertor, voltando à lareira. Após a tarde toda recebendo o vento ártico, sentia que até seus ossos estavam congelados. Contudo, o cosmos recém-despertado incentivava-a a treinar com mais afinco, desejando aperfeiçoá-lo.

“Mestre, o que devo fazer em seguida?”

“Você não dormiu ontem à noite, pois estava treinando com o gelo. Deve respeitar os limites de seu próprio corpo, Charis, e saber quando descansar também.”

“Mas o cosmos me dá energia de sobra.”

“E acha que terá cosmos de sobra para sempre? Na batalha, é importante saber dosar o uso do cosmos, guardá-lo para quando é realmente necessário, Charis. Se não dormir em breve, ficará tão esgotada que dormirá por uma semana inteira. Eu detestaria perder tanto tempo assim.”

Tirando a comida do fogo, Hyoga preparou o prato para si e sentou-se à mesa para comer. Charis costumava jantar em casa, mas sempre passava um tempo com Hyoga após o treino.

“Mas você disse que o cosmos é infinito, mestre.”

“Não significa que não demande energia para isso. Logo entenderá o que quero dizer durante o treino.”

“Está bem.”

Mais aquecida, Charis tirou a caixa de remédios do armário e aproveitou para tratar os ferimentos de Hyoga enquanto ele jantava. Quando terminava de molhar-lhe as costas com o ungüento, seu pai abriu a porta, trazendo um envelope.

“Hyoga, isto chegou do Santuário hoje. Está endereçado a você.”

“Do Santuário? Faz tempo que eles não me mandam nada. O que será?”

“Pode ser uma missão. Tem o selo de Athena.”

Hyoga abriu a carta e leu com cuidado. Tratava-se de uma missão que era simplesmente encontrar-se com um contato do Santuário em Kohotek, sua antiga aldeia. Estarrecido, perguntou-se se Saori não teria se apiedado dele e mandado aquela missão apenas para que tirasse umas férias. Mostrou a mensagem para Ájax, que cruzou os braços.

“Bem, não há como impedi-lo. Você tem a minha permissão para sair daqui se quiser, só está preso pela punição do Santuário. Se sair, tirarei a corrente de Prometeu temporariamente. Vai partir quando?”

“Hoje.”

“Mas já? Não está pensando em viajar de noite, está? Vai se destroçar montanha abaixo.”

“Não se preocupe, tenho o meu cosmos para proteger-me. Além do mais, pode ser que seja urgente, preciso ver.”

Levantando-se, Hyoga preparou sua velha mochila, guardando um pouco de comida para a viagem e alguns agasalhos. Curiosa, Charis terminou de limpar-lhe as costas e aproximou-se.

“Mestre, posso ir junto? Não tenho mais medo do mundo dos humanos.”

Alarmado, seu pai quase surtou:

“No que está pensando, Charis?! Uma homofalca não pode entrar e sair do mundo dos humanos assim!”

“Desculpe, Charis, não posso levá-la. Se eu tiver de lutar, como vou protegê-la? Fique aqui e treine, fortaleça o seu cosmos nas montanhas de gelo até que eu volte.”

Visivelmente desapontada, ela olhou para o lado e murmurou, obediente:

“Está bem… Como quiser, mestre.”

“Não é que eu não queira levá-la, entende?”

Pronto para a viagem, Hyoga dirigiu-se à entrada da cidade com Ájax e Charis. Tinha pressa, sabia que levaria um tempo considerável até a antiga moradia. Antes de partir, contudo, o líder dos homofalcos queimou seu cosmos, ordenando que a corrente de Prometeu deixasse o corpo de Hyoga. Os grilhões se abriram e a corrente afastou-se de Hyoga, que comentou, surpreso:

“Já faz tanto tempo que uso essa corrente que até me sinto estranho sem ela.”

Ajax riu e ofereceu-a de novo.

“Quer que eu a coloque de volta?”

“Não, não é preciso. Há muito não me sentia tão leve. Acho que meu cosmos até aumentou com o treino que andei fazendo, queima mais forte do que antes.”

“Isso é bom. Pode precisá-lo para proteger os homofalcos.”

“Sim. Bom, já vou indo. Cuidem-se.”

“Até logo, mestre!”

Hyoga partiu, ainda se sentindo estranho. Estava mais ágil devido à diferença de peso com a corrente. Os ferimentos dos grilhões ardiam em contato com o vento ele protegeu-se vestindo o casaco. Mesmo assim, não sentia frio, pois seu cosmos queimava à sua volta e mantinha-o aquecido. Era um alívio poder usá-lo novamente, como se tivesse ficado sufocado todo aquele tempo.

Desceu a montanha rapidamente, agora que não havia Charis para cuidar. Se fosse rápido, poderia alcançar Kohotek em um ou dois dias de viagem. A neve não estava muito alta, permitindo-lhe mover-se com facilidade.

Aproveitando a viagem, observava a paisagem que nunca mais vira. Mesmo ainda estando na Sibéria, o exterior possuía um ar que ele jamais esqueceria. Era o mesmo de quando era garoto e vivia sozinho com sua mãe, indo de cidade a cidade, buscando dinheiro para viajar ao Japão.

Mesmo cansado do treino, não quis parar. Caminhou a noite toda e só descansou quase de manhã, sob a velha tenda que usara na viagem com Charis, dois anos atrás. Sorriu ao pensar na discípula e no quanto ela mudara naquele único ano de treinamento. Em alguns anos, certamente seria uma das guerreiras mais fortes da terra dos homofalcos, podendo derrotar até mesmo Evan.

Olhando para a fogueira e comendo o resto de um peixe, perguntou-se o que poderia ser sua missão. Estendia o seu cosmos por todo o continente, mas não sentia nada suspeito. Seria mesmo aquela uma missão?

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