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[Saint Seiya] Prisão das Asas - Parte 7, escrita por Nemui

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Autora: Nemui
Fandom: Saint Seiya
Gênero: drama, aventura
Classificação: 16 anos
Status: Completa
Resumo: A vida de Hyoga se transforma quando entra em contato com um mundo completamente diferente do seu.


“Hyoga!”

Yacov foi o primeiro a vê-lo quando chegou. Com doze anos, crescera conforme a idade. Enquanto o via aproximar-se, Hyoga sentiu como se tivesse estado ausente por cinco anos.

“Yacov, há quanto tempo.”

“Você sumiu! Disseram que nunca mais voltaria! Mas… voltou…”

“É por um tempo. Não posso ficar.”

“Mas por quê? O que está fazendo agora, onde está morando? Tem idéia do quanto ficamos preocupados?”

“Desculpe se os preocupei. Ainda estou morando na Sibéria, mas não tenho permissão para revelar o local. Estou aqui numa missão em nome do Santuário.”

“Entendo… Então vai partir em breve?”

“É possível. Podemos conversar mais tarde? Estou cansado da viagem. Suponho que minha cabana ainda esteja de pé.”

“Ela está, mas… Tem gente morando lá.”

“É mesmo? Quem?”

“É o substituto seu, que o Santuário enviou pouco após sua partida.”

“Um substituto? Fico aliviado por saber que há alguém protegendo Kohotek. Preciso conversar com ele, nós nos vemos mais tarde, Yacov.”

“É uma promessa, Hyoga!”

Curioso, Hyoga foi direto à antiga cabana. Não sentia saudades específicas daquela casa, mas das pessoas da aldeia. Mesmo assim, vê-la novamente era de certa forma nostálgico. Parou à frente e bateu a porta, estranhando a situação. Era como se batesse na porta da própria casa, algo que ele jamais fizera, ainda mais por viver sozinho.

A porta abriu-se, e o ocupante, olhando para o lado, distraidamente atendeu, num russo carregado:

“Sim?”

Hyoga surpreendeu-se de imediato quando o reconheceu.

“Shun?”

“Hyoga! Já chegou? Entre, vamos! Não precisava bater na porta.”

O rapaz entrou e sentiu-se aliviado com o calor do interior. Shun mantinha a casa bem quente com lareira e forno, principalmente porque não parecia apreciar o frio. Notou que sua armadura estava no centro da sala, dentro da urna. Shun fechou a porta e serviu-lhe uma sopa quente.

“Não imaginei que viesse tão rápido.”

“Achei que fosse uma emergência. O que houve?”

“Houve um ataque isolado ao Santuário e queriam que você investigasse. Saori não quis enviar-lhe a missão diretamente, pois envolve a segurança de muitos homofalcos. Mas não precisa se apressar, há tempo de sobra. Pensa que não quero mais conversar com o meu amigo?”

“Desculpe. Como você está? Já se acostumou com a vida na Sibéria?”

“Já, já… Só não gosto do frio, não é para mim. Nem se compara com o frio que fazia na ilha de Andrômeda… Mas é diferente de todos os lugares, há uma paz imensa. Agora entendo por que prefere ficar aqui ao Japão.”

“E por que veio em meu lugar? Há outros cavaleiros na Rússia, você sabe.”

“Fui eu que pedi a Saori. Houve uma pressão enorme sobre ela quando você invadiu a terra dos homofalcos. Nenhum de nós sequer sabia da existência dessas criaturas, só Athena. Quando souberam que você invadiu um território proibido, queriam impor-lhe a pena de morte, mas Athena não permitiu.”

“Contudo, ela também não podia me deixar impune.”

“Exato. Por isso, o máximo que conseguiu foi exilá-lo ali… Ela se sente culpada até hoje por isso, sabia?”

“Não foi culpa dela. Eu sei que errei.”

“Depois disso, precisávamos designar um cavaleiro para assumir o seu posto. Havia alguns cavaleiros russos, mas… Eu pedi que me enviassem. Se é importante para você, é da mesma forma para nós. Não é assim que somos?”

Hyoga sorriu com as palavras do amigo, agradecido.

“Obrigado, Shun… Mas e sua vida? Não pode viver assim só porque deixei Kohotek. E a ilha de Andrômeda? E June?”

“Ela mudou-se para a Inglaterra, foi recomeçar a vida lá. Como só eu estava ocioso, resolvi ajudá-lo. Acho que Saori ficou mais calma depois disso. Shiryu está em Gorohou, Seiya está no Japão, com Seika. Não imagina como está feliz por poder ficar ao lado dela.”

“Como sinto falta deles… Meus amigos… E o seu irmão?”

“Ele está treinando novos cavaleiros… na ilha de Andrômeda. Está com três discípulos, ensinando as mesmas técnicas que aprendeu na ilha da Rainha da Morte.”

“Então ele também virou mestre.”

“Você virou?”

“Sim, estou treinando a mesma garotinha que salvei, dois anos atrás. Seu nome é Charis e ela é filha do líder dos homofalcos.”

“E ela será uma amazona?”

“Não. Deixei a opção aberta, para que ela decidisse. E Charis decidiu ser a líder dos homofalcos e protegê-los até a morte. Está tão empenhada que não tenho dúvidas de que será uma ótima guerreira.”

“Que ótimo. Quer dizer que deixamos de ser a nova geração.”

“Uma hora teríamos de deixar de ser, não? Precisava passar os ensinamentos de Camus adiante.”

“Os ensinamentos… Acho que também preciso fazer o mesmo… Sou discípulo de Daidaros… Não posso deixar que sua honra morra.”

“Você se sairá bem, com certeza.”

“Ah, Saori contou-me que mantém relacionamento por correspondência com os homofalcos. Vocês se falam?”

Meneando com a cabeça, Hyoga respondeu, sorrindo.

“Nem mesmo um ‘você está vivo?’. Acho que ela não pode, pois toda correspondência é lida pelos conselheiros do Santuário, você sabe.”

“Então não soube disso.”

Shun dirigiu-se até o armário e tirou um álbum de fotos. Hyoga surpreendeu-se ao vê-lo. Todos os amigos estavam reunidos em Gorohou, celebrando o casamento de Shiryu com Shunrei.

“Pela deusa… Agora me sinto velho.”

“Aconteceu no ano passado. Todos sentiram a sua falta na ocasião, Hyoga. Veja a última foto.”

Fazendo-o, ficou boquiaberto, enquanto Shun alargava o sorriso.

“O nome dele é Long, tem seis meses.”

“Céus… Como estou desatualizado, Shun. Se soubesse, enviaria algum presente. Que bom, estou contente por eles…”

“Direi como ficou feliz com a notícia. Será presente suficiente para eles, Hyoga.”

“Diga, por favor. Que eles sejam felizes juntos.”

“É claro. E que ainda nos encontraremos para jogar conversa fora.”

Por um momento, uma tristeza desencadeada pela quantidade de mudanças em suas vidas inundou-o. Hyoga observava as fotos, ressentido por não poder ter participado das comemorações, por revê-los apenas em fotografias.

“Pudera fazer isso com a mesma facilidade… Não estou reclamando por morar com os homofalcos, gosto deles… Mas sinto-me tão distante do mundo agora…”

“Deve ser duro pra você.”

“É merecido… Mas duro. Ah, do que estou reclamando, Shun? Deveríamos estar gratos por não termos tido mais batalhas, não é?”

Sensibilizado, Shun levantou-se.

“Quando soube que vinha, fui até a vila e comprei algo para levar à sua mãe. Afinal, não custa nada ir visitá-la, não é?”

Shun entregou-lhe um maço de flores, semelhante aos que ele comprava quando vivia em Kohotek para levar ao túmulo.

“Só direi qual é sua missão depois de voltar”, sorriu. “E enquanto estiver fora, cuidarei para que ninguém perturbe o descanso dela.”

“Shun… Como posso agradecer-lhe?”

“Não se preocupe com isso, Hyoga. Vá logo.”

Hyoga logo saiu e dirigiu-se à planície congelada. Mesmo que a cidade dos homofalcos fosse-lhe amigável, aquela planície ainda era o seu refúgio espiritual. Apenas estar de pé sobre a superfície congelada do Mar da Sibéria trazia-lhe tanta paz que se esquecia de tudo.

Já não era mais possível enxergar o navio a olho nu, somente recordava na memória o local, marcado com uma cruz de madeira simples, que Shun construíra à sua mãe. Sentiu-se grato pelo empenho do amigo, jurando que um dia definitivamente faria algo para agradecer-lhe. Colocou o buquê junto à cruz e sentou-se no gelo com as pernas cruzadas.

Havia tanto tempo que não fazia aquilo que quis permanecer ali para sempre. Cogitou, por um momento, abrir uma cratera e mergulhar até o navio, mas logo descartou a idéia, lembrando-se dos conselhos de Camus quanto à relação com sua mãe. Limitou-se a observar a superfície gelada tristemente, sabendo que não podia aproximar-se mais. Era hora de concentrar-se no futuro.

Doía. Por mais que tentasse voltar seus pensamentos à nova vida que levava ao lado dos homofalcos, doía. Os olhos ardiam, pediam para prantear. E Hyoga lutou contra aquela vontade. Era forte, insana, louca, tanto que precisou cerrar os punhos e reunir tudo que lhe restava de racionalidade para evitá-la. Respirou fundo, tentando acalmar-se. De todas as batalhas, contra o Santuário, Poseidon e Hades, aquela era a mais difícil. Mas conseguiu evitar as lágrimas.

Permaneceu ali por mais de uma hora, recordando as andanças com sua mãe e o naufrágio que culminou sua decisão de tornar-se cavaleiro. As peças de sua vida sempre se encaixavam de forma perfeita, mas constituíam um quadro extremamente melancólico, carregado de sangue e de dor. O pai que o abandonara, o mestre e o melhor amigo que perdera, a vida que construíra e destruíra simultaneamente.

Ao levantar-se, notou que Shun o observava em silêncio do alto da colina. Sua dor sempre fora compartilhada com os amigos, de forma voluntária ou não. Caminhou até ele, retomando o motivo que o trouxera até ali.

“Já pode me contar qual é a minha missão, Shun.”

Shun ainda não estava disposto a desviar de assunto. Ainda olhando à planície congelada, comentou:

“Eu sei que é duro, Hyoga.”

“Não é tanto, com toda a consideração que teve, Shun. Muito obrigado.”

“Fico feliz por ajudar. Prometo que ela não estará sozinha, não enquanto eu estiver vivo. Quanto à missão, voltemos à cabana, tenho umas coisas para mostrar-lhe.”

Assim que retornaram, Shun espalhou algumas fotos sobre a mesa, de uma homofalca aprisionada. Hyoga reconheceu-a de imediato.

“Mas é… Aure! Ela deveria estar conosco… Aliás, ela está conosco! Sempre a vejo caminhar pela cidade!”

“Sabe se ela tem uma irmã gêmea?”

“Não, não que eu saiba. Ela é a única irmã de um amigo meu, que foi seqüestrada pouco depois de eu ser capturado. Ficou um longo tempo desaparecida, mas conseguimos resgatá-la no meio da neve, num esconderijo… O que ela faz no Santuário nestas fotos? Quando foram tiradas?”

“Semana passada.”

“Não pode ser…”

“Isso está ficando cada vez mais estranho. Tentamos conversar com ela, mas sempre começa a chorar e a gritar quando sequer nos aproximamos. Achamos que podia até falar com ela…”

“Que estranho…”

Hyoga lembrou-se então da conversa que tivera com Aure depois de resgatá-la. Fora bem fria, pois ela não queria lhe revelar o que ocorrera enquanto estivera em cativeiro. Simplesmente agradeceu, sorriu meio sem jeito e partiu. Não conseguira mais trocar palavras com a homofalca. Podia ela ser falsa? Ou era a que se encontrava no Santuário?

“O que acha que devemos fazer?”

“Esperava que você nos dissesse. Agora vive com os homofalcos, achei que desse por falta dessa homofalca.”

“Mas é impossível que haja duas delas. Só pode ser falsa, Shun!”

“Fizemos exames médicos nela. As asas são genuínas, ela é uma homofalca.”

“Isso significa que a Aure que está…”

Hyoga levantou-se abruptamente desesperado por retornar à cidade dos homofalcos. Shun ergueu-se logo em seguida, tentando acalmar sua afobação.

“Espere, Hyoga. Não devemos nos precipitar ainda. Precisamos decidir quais serão nossos próximos passos, antes que você volte para lá. Não pode mais sair de lá a seu bel-prazer.”

“Eu sei, mas se há um impostor entre os homofalcos, é meu dever protegê-los!”

“Você deve levar o caso ao seu líder antes.”

Hyoga hesitou por um momento. Ájax acreditaria em suas palavras se dissesse que Aure era uma farsa? Se até ele fora enganado por uma réplica tão perfeita, certamente os demais levariam a palavra da falsa Aure mais a sério do que as suas.

“Eles não acreditarão em mim…”

“Por quê? Agora você é o protetor dos homofalcos, Hyoga. Eles precisam ouvi-lo, já que é jurado de Athena.”

“Há uma diferença absurda ser um humano jurado de Athena e ser a própria, Shun. Homofalcos não confiam em humanos, mesmo que sejam cavaleiros de Athena. Já faz dois anos que moro com eles e ainda não consegui conquistar a confiança de todos, não o suficiente para que me aceitem como guardião.”

“Se disser que ela é falsa…”

“Eles provavelmente acharão um absurdo e dirão que planejo algo contra. Talvez Ájax, o líder, me ouça, mas nada é certeza.”

“Pelo menos você deve tentar.”

“Eu tentarei. Mas e se não der certo, Shun? Mesmo tendo sido designado pelo Santuário como protetor deles, não gozo de liberdade o bastante para liderar uma investigação contra a Aure, principalmente porque ela age como se estivesse traumatizada com os humanos.”

“O Santuário não poderá permitir que Aure continue livre se você não obedecer às ordens, Hyoga. Se os homofalcos não liberarem Aure… Pode ocorrer uma crise entre Athena e eles. Tenho certeza de que seu líder não deseja isso.”

“Nem eu quero. Minha situação como cavaleiro ali pioraria caso o Santuário impusesse ordens sobre eles. Shun, eles mal conseguem cultivar estas terras congeladas, mal podem viver. Homofalcos são movidos por um intenso sentimento de orgulho e de honra, mas permanecem confinados naquelas terras por medo dos humanos. Se Athena intervir no pouco espaço que possuem, independentemente do motivo… Não me surpreenderia se alguns deles não iniciassem um empreendimento contra os humanos.”

“Então terá de resolver em longo prazo, se for necessário. O mais importante é que garanta a segurança dos homofalcos.”

“É o jeito. Devo partir agora, então.”

“Fique mais um pouco. Saori pediu-me para entrar em contato com ela quando o encontrasse.”

“Vai até a vila para telefonar?”

“Vou. Não vou demorar mais que algumas horas, espero que não o atrapalhe. Por que não descansa um pouco da viagem enquanto isso? Pode partir amanhã de manhã.”

O cansaço da viagem ainda o abatia e o frio pedia um bom descanso antes de lançar-se novamente ao deserto congelado. Hyoga cedeu e tirou o casaco sujo de neve, ficando apenas com a velha túnica que independia da corrente para vestir. Shun pôde ver, naquele momento, o resultado da estadia do amigo com os homofalcos, nos ferimentos que os grilhões da corrente de Prometeu deixaram em seu corpo.

“Mas que lesões são essas? Você estava acorrentado?”

“São da corrente de Prometeu. Ela bloqueia os meus poderes enquanto estou com eles.”

“A lendária corrente… Meu mestre já me falou dela. A corrente que é capaz de deter até mesmo os deuses… Não sabia que estava com os homofalcos. Mas por que a estava usando?”

“Eu prometi a Charis que não causaria qualquer mal aos homofalcos, Shun. Isso também inclui sujeitar-me a tudo que me impõem. Muitos de lá me aceitam, com ou sem a corrente. Mas ainda não tenho permissão para circular entre os homofalcos sem ela. Ájax tirou-a temporariamente para que pudesse cumprir as ordens de Athena.”

“Hyoga…”

“Já me acostumei a ela, não se preocupe.”
Shun não parecia convencido. Os ferimentos que jamais cicatrizavam pareciam desumanos para qualquer pessoa de fora, mas Hyoga era sincero quando dizia que se acostumara. Agora, a sensação de liberdade é que lhe era estranha.

“Está tudo bem, Shun. Não sou um escravo dos homofalcos, se é o que está pensando. Vá logo entrar em contato com Athena. Enquanto isso, aproveitarei para relaxar um pouco. Faz tempo que não vejo esta casa.”

“…Está bem. Como queira, Hyoga. Mas se quiser permanecer mais um pouco aqui… Farei vista grossa.”

Deitando na cama, Hyoga cruzou os braços sob a cabeça e fechou os olhos.

“Não preciso dessas coisas. Vou esperá-lo aqui.”

“Até mais…”

Shun fechou a porta, deixando-o sozinho. Hyoga deitou de lado e suspirou, agradecendo aos céus por Shun não ter visto as marcas de chicote nas costas, pois definitivamente teria se convencido de que ele era um escravo, mesmo que negasse. Athena também não podia aceitar que um cavaleiro sagrado fosse tratado daquela forma por qualquer um. Proteger os homofalcos contra Athena seria o próprio inferno a ele. Para isso, preferia esconder seu sofrimento dos outros e resolver sozinho seus problemas com as criaturas aladas.

‘É uma ironia pensar que devo protegê-los contra aquela que me mandou fazê-lo… Não, isso não deve acontecer’. Encolhendo-se de frio, Hyoga puxou o cobertor e adormeceu, exausto.

O retorno de Shun deu-se apenas de madrugada, despercebido a Hyoga. Tão cansado estava que dormiu a tarde toda, descarregando no sono o peso da viagem e dos treinos como soldado. Sem querer despertá-lo, o amigo dirigiu-se ao canto oposto do quarto, estendeu um velho colchão. Mesmo tomando cuidado, não pôde evitar que Hyoga despertasse.

“Shun? Já chegou?”

“Cheguei. Mas é madrugada agora. Volte a dormir.”

“O que Saori disse?”

“Falamos sobre isso amanhã, está bem? Estou cansado, preciso dormir.”

‘Você não está’, quase respondeu Hyoga. Sabia que Shun simulava cansaço apenas para deixá-lo dormir mais um pouco. Resolveu não discutir e deixou que os olhos fechassem, pesados.

“Desculpe. Boa noite.”

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O cheiro de comida acordou-o de manhã, meio zonzo. As pessoas podiam imaginar que viver numa cidade tão pacata como a dos homofalcos era tranqüilo, mas estavam enganadas. Hyoga costumava ocupar-se o tempo todo com seus afazeres, treinando Charis e sendo treinado por Evan, cozinhando e cuidando da casa no tempo restante. Pouco tempo havia para relaxar de verdade e ter uma noite satisfatória de sono.

Levantou-se e notou que Shun já estava de pé, preparando o café da manhã. Notou que preparava uma refeição bem mais volumosa que o normal, quase um almoço. Provavelmente pensava na viagem que ainda teria de enfrentar naquele dia.

“Bom dia.”

“Bom dia, Hyoga. Espero que tenha descansado bem.”

“Até demais. Havia tempos que não dormia tão bem. Não tenho muito tempo para descansar em casa.”

Soava estranho para ambos ‘casa’, referindo-se à cabana na cidade dos homofalcos, quando aquela onde se encontravam era o seu antigo lar.

“Ser mestre demanda tempo.”

“É. Há outras obrigações também…”

“Trabalha para eles?”

“Não. Ájax não me obriga a trabalhar, já que sou o mestre de Charis. Nem mesmo antes, quando era um simples prisioneiro. Houve uma época em que ajudei as homofalcas a cuidar das estufas, mas era um trabalho ao qual me ofereci. Nada forçado.”

Shun provavelmente ainda pensava que ele fosse um escravo dos homofalcos, depois de conhecer as feridas da corrente.

“Que obrigações são essas, então? Sem querer me intrometer demais, não é obrigado a responder…”

“Eu treino. Preciso conquistar a confiança dos guerreiros homofalcos e por isso treino ao lado deles.”

“…Hyoga.”

“O que foi, Shun, algum problema?”

Shun voltou-se a ele com o olhar sério, deixando a cozinha de lado.

“Não precisa mentir. Não direi a Athena. Você ainda é prisioneiro deles? É torturado, não é?”

“Por que acha isso?”

“As manchas de sangue na sua roupa, principalmente nas costas. Pelo formato… Não consigo deixar de pensar que são marcas de chicotes. Por favor, diga que estou errado.”

Surpreso, não havia mais nada que Hyoga podia esconder. Não queria que Shun e os demais cavaleiros pegassem raiva dos homofalcos com conclusões precipitadas e por isso cedeu.

“Está bem. Não vou mentir, são de chicote.”

“Mas!”

“Eu não menti para você, não sou um escravo. Ainda uso a corrente porque os homofalcos possuem um poder doado por Athena que os protege e os guia, uma espécie de oráculo. Esse poder me impediu de tirar a corrente, depois que deixei de ser um prisioneiro para eles. As chicotadas foram causadas no treino com os homofalcos. O guerreiro que os treina é impiedoso, Shun, chicoteia qualquer um que não cumpra os exercícios.”

“Mas para você não deve ser difícil.”

“Não é difícil com o cosmos. Sem meus poderes, estou reduzido a um homem qualquer no meio deles. Quatro ou cinco homofalcos já são suficientes para dominarem-me por completo numa luta. Mas ao menos mantenho minha forma física assim.”

“Não acredito. Faz tudo isso mesmo por eles, Hyoga?”

“Eles só querem viver em paz, Shun. Minha missão e pena vitalícia é garantir que tenham essa tranqüilidade. Ainda sou um cavaleiro fiel a Athena e ainda guardo minha honra, não importando quantos obstáculos precise superar para atingir meus objetivos. Meu dever é protegê-los e oferecer-lhes minha obediência. Mas os homofalcos não conseguem confiar num homem sem asas como eu, principalmente os guerreiros.”

“Entendo… Para protegê-los, precisa do apoio militar deles… Definitivamente não podemos criar um conflito entre humanos e homofalcos, como Athena disse no telefone. Ela mandou-me manter contato com você por meio de correspondência para nos informarmos de cada passo neste caso.”

“O que mais ela disse, Shun?”

“Disse que deseja um homofalco.”

“O quê?”

“Ela quer que enviem um homofalco ao Santuário que possa conversar com Aure e talvez abrir seu coração. Disse que enviaria uma carta a Ájax a respeito, mas espera que você dê o recado antes. Enquanto isso, deve tentar aproximar-se da Aure que se encontra com os homofalcos e descobrir se ela é autêntica. Precisamos descobrir o quanto antes.”

“Alguém que possa abri-la… Só pode ser Myles, o irmão. Será complicado, pois ele possui muitas responsabilidades para com os homofalcos. Mas tentarei.”

“Pediu que tomássemos cuidado. Ela sente cosmos estranhos rondando esta região da Sibéria. Ultimamente eles têm ficado mais fortes e mais agitados.”

“Podem ser os inimigos que seqüestram homofalcos de tempos em tempos. Preciso voltar o quanto antes.”

“É verdade. Mas não sem se alimentar bem para a viagem. Restabeleça as energias aqui e parta descansado, Hyoga. Não quero que amoleça no meio da escalada”, sorriu Shun.

Grato pelo cuidado do amigo, Hyoga devolveu o sorriso e sentou-se à mesa.

“Desde criança, ensinaram-me a jamais desperdiçar comida.”

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Ájax já o esperava à entrada da cidade, carregando a corrente de Prometeu quando Hyoga aproximou-se, após dois dias de escalada. Ainda deixou que ele recuperasse o fôlego, antes de dirigir-lhe a palavra.

“Cumpriu com sua missão?”

“Ainda não… É uma missão que devo cumprir aqui.”

Hyoga tirou o agasalho e deixou que Ájax repusesse a corrente de Prometeu. Os grilhões foram cerrados e a sensação repulsiva do frio do metal deixou-o incomodado. O peso da corrente jogou os braços para baixo e tornou seus passos mais lentos. O cosmos que até então voltara a queimar livremente era tragado à corrente, impedindo-o de proteger-se do frio.

“É estranho ser acorrentado de novo.”

“Não há jeito. Você ainda não pode andar sem ela. Mas diga, Hyoga, que missão é essa que deve cumprir?”

“Posso contar sob o calor de uma lareira?

“Desculpe. Vamos até em casa, Charis também o espera.”

Colocaram-se na direção da casa de Ájax, passando pelas prisões. Hyoga observou a jaula na qual ficou confinado por mais de um ano, sem poder fazer nada. Sentia-se grato por agora poder caminhar entre as pessoas e guiar seus próprios passos na terra dos homofalcos, mesmo que acorrentado.

Observou cada cômodo vazio com os pensamentos voltados aos dias de prisioneiro e surpreendeu-se quando viu um homem na última prisão, sentado sobre a cama. Parou e fitou-o estarrecido. Ájax também parou e explicou-lhe tranquilamente:

“Ele apareceu por aqui, dois dias atrás. Tentou atacar nossos homens e foi aprisionado. O cristal não lhe permitiu que fosse embora. Por um acaso não o conhece?”

“Não, nunca o vi na vida.”

O prisioneiro, ao notar que eles não se afastavam, aproximou-se da grade, desesperado. Dizia em russo, mesmo sabendo que ninguém ali falava a sua língua.

“Por favor, soltem-me! Eu não fiz nada de errado, soltem-me! Eu só estava me defendendo! Por favor, deixe-me ir! Não me machuquem! Eu preciso ir, preciso voltar! Tenho filhos, tenho esposa! O que vocês querem? Dinheiro?”

“Acalme-se. Não conseguirá nada assim. Vamos, Hyoga.”

Intrigado, Hyoga continuou a seguir o líder, ignorando os gritos do prisioneiro. Ájax suspirou, aborrecido.

“Você é tão mais comportado e inteligente que ele. Não acredito que terei de conviver com um sujeito tão chato.”

“Que estranho. Se tão poucos homens se aventuram por esta região… Não faz tanto tempo que vim para cá.”

“Também estranhei. Por isso, desconfiei que o conhecesse. Bem, por hora, vamos deixá-lo.”

Ao entrarem no casarão de Ájax, Hyoga viu Charis enfaixar um dos pulsos, machucado por causa do treino. A garota sorriu e levantou-se logo em seguida.

“Seja bem-vindo, mestre. Como foi em sua missão?”
“Foi mais uma reunião, Charis, nada emocionante. Espero que tenha treinado em minha ausência.”

“Mas é claro! Veja o resultado!”

O cosmos de Charis aflorou, iluminando todo o cômodo e envolvendo todos com o seu vigor. Nos dias que estivera fora, treinara para aumentá-lo mais e invocá-lo sempre que precisasse. Aos poucos, exercício a exercício, o cosmos de Charis ganhava força e resistência, assim como o corpo. Hyoga assentiu com a cabeça, aprovando o resultado.

“Muito bem. Mais tarde, quero ver como anda em técnicas de luta. Espero que não tenha se esquecido de treinar o corpo também.”

“É claro que não, mestre! Estou pronta para retomar o treino de luta quando quiser.”

“Por enquanto, vá se exercitar um pouco. Tenho assuntos a resolver com Ájax antes.”

“Entendi, mestre. Vejo-o mais tarde.”

Charis saiu de casa, obedecendo a Hyoga animadamente. Ainda viram as asas baterem próximas à janela, na curva que fazia em direção às montanhas. Ájax sorriu e sentou-se numa poltrona.

“Ela está contente com a sua volta. Charis adora você.”

“Só lamento não ter tempo o bastante para ensiná-la melhor. Se estivesse em seu lugar, teria me sentido frustrado. Não… Acredito que ela esteja frustrada com minha situação atual.”

“Não há nada que possamos fazer para minimizar isso, por enquanto. Você deve obedecer à sua deusa, em primeiro lugar.”

“Tem razão. E desta vez, é uma missão na qual precisarei de ajuda e que envolve a segurança dos homofalcos.”

“E o que é?”

Hyoga retirou as fotos de sua mochila e mostrou-as a Ájax, espalhando-as pela mesa.

“São fotos que tiraram no Santuário.”

“Há séculos não vejo esses papéis estranhos com imagens. Está dizendo que eles retratam a realidade?”

“Sim. Veja, também fiquei surpreso quando Shun me mostrou.”

“Mas é a Aure! Isto é uma armação do Santuário, Hyoga, não deve acreditar. Ela está entre nós, conseguimos resgatá-la naquele dia, você mesmo conversou com ela.”

“Mesmo considerando essa possibilidade, não posso ignorar as fotos e minha missão, Ájax. O cavaleiro que me passou a missão não é outro senão o Shun. Ele já quase morreu para salvar-me na batalha das Doze Casas, sempre lutamos juntos, é um valioso companheiro de guerra. Confio minha vida a ele e sei que não está mentindo. Você pode até desconfiar dele, mas Shun é um guerreiro que segue o mesmo código que eu e nunca teve problemas para manter a palavra.”

“Se ele é um cavaleiro de renome e que merece nossa credibilidade… Não tenho como impedir que você investigue Aure. Mas gostaria de mais detalhes a respeito.”

“Parece que esta Aure que aparece nas fotografias surgiu atacando o Santuário e foi presa, na Grécia. Eles analisaram as asas, disseram que eram genuínas, ela era uma homofalco. Além disso, Shun conversou com a deusa Athena por telefone e ela exigiu que enviasse um homofalco conhecido de Aure para a Grécia, a fim de conversar com a suposta invasora.”

“Quer dizer, enviar Myles? Você só pode estar brincando!”

“Quer enviar uma carta à deusa para confirmar? Eu garanto que será só perda de tempo. Aliás, nem precisa fazer isso. Shun informou-me que ela enviará o pedido na próxima correspondência.”

“Se fizesse isso, significaria desconfiança à própria deusa.”

Ájax lançou um olhar desconfiado a Hyoga, logo após responder.

“Isso não significa que confie em você.”

“Eu sei que não. Mas pode verificar se digo a verdade com o cristal.”

“Eu não preciso, sei que está dizendo a verdade. O que me preocupa é o que Myles pode encontrar no Santuário.”

Um momento de silêncio no diálogo foi reservado para Ájax ponderar e decidir o que fazer, enquanto Hyoga esperava pacientemente pelo resultado. Por fim, cedeu.

“Está bem. Mas antes, devemos descobrir se a nossa Aure é também verdadeira. Se não houver nada de errado nas asas dela, teremos um sério problema para resolver. Se for uma impostora, eu mesmo a executarei. Se for uma homofalca, devo enviá-la ao Santuário junto com você, Myles e mais um contato nosso.”

“Contato?”

“Sim. O homofalco responsável pelas correspondências da cidade, um personagem especial.”

“Nunca ouvi falar dele, apesar de perguntar-me diversas vezes como vocês faziam para comunicar-se com o resto do mundo.”

“Ele é um homofalco cujas asas foram arrancadas para que pudesse se misturar entre os humanos. É um guerreiro nobre e leal que se sujeita a tal condição apenas pela nossa gente.”

“Então é assim que funciona. E nunca houve um traidor?”

“Essa é uma observação interessante. Já houve sim traidores homofalcos que ocuparam este cargo. O mundo dos humanos é tão sujo e corrupto que consegue quebrar até a alma de um nobre homofalco. Essa é mais uma razão para que não tenham asas.”

“Por quê?”

“Porque a única coisa que impede o poder do cristal são as asas, caro amigo. Quando um homofalco perde as asas, ele se torna um humano de certa forma. Humanos e homofalcos não são espécies tão diferentes, ao contrário do que muitos pensam. É perfeitamente possível um humano e um homofalco procriarem e deixarem descendentes. Por ironia do destino, Evan possui sangue humano, sabia? Mas é pouco, coisa de dez gerações atrás. A sorte dele é não ter asas defeituosas, pois geralmente esses homofalcos nascem com algum problema. Casca de ovo fina, asas curtas…”

“Então esse contato que vocês possuem também está preso ao poder do cristal?”

“Sim. Não é apenas isso. Esse homofalco só possui permissão para entrar em contato comigo, e não pode entrar na cidade. A cada visita, faço-o tocar no cristal e verificar se sua alma não foi corrompida.”

“E quando é?”

“Ele deve ser sacrificado, imediatamente.”

“Não imaginava isso.”

“Sim. Mas geralmente não há problemas. O homofalco escolhido é um grande amigo meu, do tipo em que confiaria a minha vida, assim como você faz com esse seu amigo… Shun é o nome, certo? Ele é um grande homofalco, de grande honra e coragem. Mas sinceramente espero que ele não tenha que se envolver em tal missão…”

“Então tenho sua permissão para investigar Aure?”

“Tem. Vou pedir a Myles primeiro. Ele verificará se as asas são verdadeiras. Espere pela resposta amanhã, preciso resolver este assunto com calma. Além disso, temos o nosso indesejado hóspede. Quero que você cuide dele, Hyoga.”

“Eu? Mas por que eu?”

Ájax levantou uma das sobrancelhas, numa expressão sarcástica.

“Ora, não é o encarregado de proteger os homofalcos?”

“Sim… Peço perdão se pareci omisso. Só estou curioso pela razão que o leva a confiar a mim essa tarefa.”

“É bem simples. Vocês são da mesma raça e você ainda está preso com a corrente de Prometeu. Oficialmente, não é nosso prisioneiro, pois o cristal provou que não têm intenções maléficas contra os homofalcos. Contudo, não sabemos por que deve ser subjugado a esses grilhões. Acho que poderíamos utilizar sua situação como vantagem na aproximação daquele humano.”

“Você quer que ele mostre suas intenções a mim, pensando que também sou um prisioneiro?”

“Exatamente.”

“Não imaginei que homofalcos pudessem mentir.”

“Não seria uma mentira, Hyoga. As mentiras são ditas com palavras, não silêncios.”

“Mas se você induz uma pessoa ao erro, também é uma mentira.”

“Esse é o conceito humano de mentira. Nós não achamos que o silêncio ou as palavras não ditas sejam mentira, porque simplesmente não são palavras. Para configurar uma mentira, você precisa proferir palavras falsas, Hyoga. Bem, de qualquer forma, quero que tente se aproximar desse humano. Não precisa mentir para que ele acredite que é nosso inimigo, aliás, não deve. Depois me conte tudo. Afinal, são poucos os homofalcos que falam russo.”

“Entendi. Sob as ordens de Athena, jurei que obedeceria ao líder dos homofalcos enquanto fosse o guardião do povo. Não tenho o direito de recusar essa tarefa.”

“Não precisa ter pressa para começar. Pedi a Evan que o dispensasse do treino até que retornasse e recuperasse-se apropriadamente. Descanse da viagem antes.”

“Obrigado. Quero aproveitar esta tarde para treinar Charis; provavelmente ela ficou aborrecida por ter as aulas interrompidas. Além disso, estou um pouco frustrado, pois preciso do meu cosmos para ensinar-lhe as técnicas de gelo que domino. Será que posso ter a permissão para utilizar o meu cosmos durante os treinos de Charis?”

“Vejamos o que o cristal nos diz a respeito.”

Hyoga já esperava por aquela resposta. Silenciosamente, torceu para que recebesse um sim, pois os ensinamentos de Camus estavam em jogo. A primeira resposta foi um vermelho que lhe derrubou o ânimo. Sem desistir, no entanto, Ájax insistiu.

“Toque mais uma vez.”

Hyoga o fez e conseguiu receber uma resposta azul. Curioso, perguntou-se por que Ájax teria se dado ao trabalho de insistir naquele pedido.

“Que pergunta fez?”

“Você pode durante uma hora por dia. É realmente uma resposta intrigante.”

“Por quê?”

“Porque acho que acabo de descobrir o motivo de não poder tirar a corrente de Prometeu.”

O olhar de dúvida de Hyoga arrancou um sorriso líder dos homofalcos, que guardava o cristal com cuidado.

“Ainda não contei a você sobre um segundo poder da corrente de Prometeu.”

“Há algo mais que ela faz com quem é preso?”

“Sim. Imagine você, Hyoga, um renomado cavaleiro de Athena. Seu cosmos é tão imenso que pode derrotar até mesmo cavaleiros de ouro. Sabia que se a corrente simplesmente bloqueasse o seu cosmos, você já teria explodido?”

“Como assim?”

“O cosmos é uma energia que nos envolve e nos protege, certo? Mesmo aqueles que não o dominam, possuem um poder latente dentro de si. Essa energia precisa ser dispersada de certa forma, algo que acontece involuntariamente.”

“Mas um cavaleiro pode esconder o cosmos de outros, é algo que fiz por mais de um ano aqui, com vocês.”

“Essa é uma técnica de neutralização do cosmos, não sabia?”

“Não, nunca me disseram isso.”

A expressão de surpresa do rapaz trouxe um prazer inigualável a Ájax, que se via na possibilidade de ensinar algo novo a um especialista sobre cosmos. Era uma situação tão adversa que quis caprichar em seu momento de sabedoria.

“A técnica de neutralização do cosmos não impede que ele se dissipe pelo ar. Você simplesmente inibe sua percepção às outras pessoas, mas continua a expulsá-lo do corpo. É como o ar que expiramos, não podemos ficar nem um minuto sem liberá-lo.”

“Jamais ouvi falar sobre isso, Ájax.”

“Mas é a verdade. Sei disso, porque há uma técnica mortal que a corrente de Prometeu carrega, que utiliza essa necessidade do cosmos de dissipar do corpo de seu portador. Agora, neste momento, o seu cosmos está bloqueado pelo poder da corrente, mas você não está morto. Isso porque ela está absorvendo o seu poder.”

“Ela absorve o cosmos do prisioneiro?”

“Sim. Ela tem uma capacidade de armazenamento infinito, Hyoga, pois absorve o cosmos um deus, bloqueando-lhe os poderes. Para que ele não morra, no entanto, todo o cosmos que ele precisa dissipar naturalmente é absorvido pelos elos, que servem de armazém. Dessa forma, a corrente também pode utilizar esse cosmos acumulado para atacar um inimigo e matá-lo em segundos, dependendo da quantidade que possui.”

“Impressionante… E ela também pode bloquear sem absorver o cosmos?”

“Pode. É uma forma cruel de matar inimigos, pois, quanto mais poderosa é a vítima, mais rápido ela morrerá. Não sei se um deus pode morrer com isso, mas para um cavaleiro é mortal.”

“E o que isso tem a ver com o fato de não poder retirar a corrente? Tem relação com o meu cosmos acumulado nela?”

Ájax sorriu, chegando ao ponto que desejava.

“É exatamente a observação que eu esperava ouvir de você, Hyoga. Você já provou que não deseja qualquer mal aos homofalcos, o cristal confirma cada vez que faço essa pergunta. Todos confiam mais e mais em você. Então por que a corrente é necessária? Desconfio que o cosmos acumulado na corrente de Prometeu venha a ser útil um dia. Atualmente, um dos cavaleiros mais poderosos de Athena está usando-a. Faz um ano, absorvendo puro sétimo sentido. Imagine quanto poder já deve ter acumulado.”

“E um dia meu cosmos será útil dessa forma aos homofalcos.”

“Exatamente. A orientação do cristal é armazenar o seu cosmos porque um dia ele será útil. Foi por isso que testei com o período de uma hora por dia. Minhas suspeitas estavam corretas, você não está preso por falta de confiança. Poderia caminhar sem as correntes que todos não se importariam, nem mesmo Evan lhe faria qualquer mal.”

Tal revelação fora tão reconfortante a Hyoga que ele sorriu. Se o que Ájax dizia era verdade, a corrente não era sinal de que algum homofalco desconfiava de sua conduta a ponto de atacá-lo. Simplesmente estava armazenando um cosmos que seria útil para a proteção dos homofalcos um dia. Se era uma energia que seria desperdiçada de qualquer jeito, ser confinado à corrente de Prometeu era um bom negócio pelo bem de todos os homofalcos.

“Se isso é verdade… Fico feliz por poder doar o meu poder à proteção de vocês.”

“Só temo que não possa usá-lo no treino de soldado, que dura a tarde toda.”

“Tudo bem. Eu preciso utilizar o máximo desse tempo para treinar Charis. O resto, deixo na corrente de bom grado para que possa ser útil aos homofalcos.”

“Pensar que aceita tanto pelos homofalcos. Hyoga, estou em débito com você.”

“Então aceite a missão de Athena como sua e ajude-me a resolver o problema da Aure.”

“Pode contar com o meu apoio.”

Terminando a reunião, Hyoga levantou-se e partiu, dizendo que deveria reiniciar o treinamento de Charis. Ájax disse-lhe que em breve liberaria o seu cosmos para treiná-la de uma forma totalmente nova, o que lhe trouxe extrema satisfação. Charis treinava golpes no ar quando ele se aproximou. Imediatamente, a discípula posicionou-se à sua frente, disciplinada, e sorriu-lhe.

“Estou pronta para treinar quando quiser começar, mestre.”

“Entendo sua ansiedade, Charis. Passei muito tempo fora, não é mesmo?”

“Sei que estava numa missão, não é direito meu reclamar.”
Hyoga sorriu e posicionou-se para lutar.

“Vou recompensá-la hoje por sua paciência desses dias, discípula.”

“Como, mestre? Mesmo sendo mais poderoso, a corrente de Prometeu bloqueia o seu cosmos. Não posso lutar abertamente contra você.”

“Vai poder… Espere só mais um pouco e verá o que quero dizer. Enquanto isso, vá pensando em como atacar-me, pois, depois de começarmos, não terá tempo pra mais nada.”

O sorriso maroto de Hyoga, como quem estava prestes a pregar uma peça em alguém, deixava Charis levemente apreensiva. Entretanto, a alegria que ele transmitia pela expressão do rosto dizia-lhe que não era por maldade. Subitamente, seu cosmos aflorou vigorosamente, espalhando-se por toda a região. Chocada com o imenso poder do mestre, Charis ainda deu alguns passos atrás.

“O que foi, Charis? Está com medo?”, provocou.

De fato, ela estava com medo. Jamais imaginara que o cosmos de Hyoga fosse tão forte e grandioso. Já sentira os cosmos dos soldados e dos guerreiros mais fortes entre os homofalcos, mas nenhum se comparava com aquele à sua frente. Sabia que não tinha como um cosmos recém-despertado como o dela vencê-lo.

“Mestre… É só que… Nunca o vencerei, serei esmagada com um só golpe!”

“Vou dar-lhe uma lição extra: Nunca pense que vai perder, por mais forte que seja o seu inimigo. Prepare-se!”

Hyoga não hesitou; avançou com velocidade e aplicou-lhe um golpe tão forte que Charis foi arremessada longe, chocando-se contra uma pedra.

“Vamos, nem está reagindo! Lute com todas as suas forças! Tente superar o meu cosmos!”

Ainda chocada, Charis ficou nervosa com tamanho poder. Queimou o cosmos, mas logo foi atingida novamente.

“Está perdendo tempo demais, Charis! Já teria morrido se fosse um combate de verdade! Nunca se surpreenda, deve enfrentar, lutar, superar. Lembre-se de que sempre haverá alguém mais forte! Vamos, ataque-me!”

Mais cuidadosa, Charis queimou o seu cosmos e manteve-se alerta. Conseguiu desviar de um golpe de Hyoga, que continuou a atacá-la, impiedosamente. Agüentava a dor como fora treinada e defendia-se como podia dos ataques, machucando-se freqüentemente com os violentos ataques do mestre.

Concentrando todo o seu poder no punho, Charis avançou quando Hyoga movimentava-se para o lado, tentando acertar-lhe um golpe de cosmos. Sem esforço, ele desviou-se e respondeu com um soco gelado, que espalhou gelo no abdome de Charis. Surpresa, ela levantou-se atordoada, tentando livrar-se das camadas de gelo sobre a roupa.

“Mas… O que é isto?”

“É minha especialidade, aquilo que me diferencia dos demais guerreiros. Você sabe, fui discípulo do cavaleiro de ouro de Aquário, Camus, também conhecido como o mestre do gelo. Isso porque ele foi o melhor cavaleiro de gelo da minha época. Meu dever é honrar seu poder, seus ensinamentos e sua memória. Tudo o que aprendi deve ser passado adiante e usado apenas à justiça.”

Voltando a concentrar-se, Charis reuniu novamente o seu cosmos. Não sabia se podia superar tamanho poder, mas aquela era a tarefa que seu mestre lhe passava. Saltou repentinamente e atirou um golpe, que Hyoga bloqueou facilmente com o seu próprio cosmos.

“Vai precisar de mais cosmos e velocidade para superar-me! Quer ser a melhor líder aos homofalcos? Quer protegê-los? Quer o mesmo poder que possuo? Terá de lutar para merecer, garota!”

Hyoga avançou, atacando-a com tanta velocidade que Charis mal conseguia defender-se. Mantinha o ritmo de luta bem acima do normal, utilizando o cosmos em cada soco e chute, como nas lutas dos cavaleiros. Sabia que ela precisava acostumar-se àquele tipo de batalha, se quisesse lutar contra qualquer guerreiro de Prometeu.

Aos poucos, sentiu que Charis empenhava-se cada vez mais no combate, ajustando-se melhor à velocidade e ao ritmo dos ataques. Satisfeito com o desempenho da discípula, aumentou mais a velocidade, aplicando-lhe mais golpes. Não estava disposto a dar-lhe folga, queria que ela crescesse o máximo possível naquela hora que lhe tinha sido concedida por Ájax.

Mesmo machucada com os ataques, Charis recusava-se a desistir e continuava a lutar, atacando de todas as formas e tentando aumentar ainda mais o seu cosmos, desesperada. Animado, Hyoga correspondia ao seu esforço com mais dificuldade, pressionando-a a tal ponto que atraía olhares de todos à volta com o magnífico combate.

O tempo passou sem que ele percebesse, tamanha era a sua empolgação. Quando o tempo limite de uma hora cessou, repentinamente a corrente bloqueou-lhe o cosmos, impedindo-o de defender-se de um golpe de Charis, que o atirou longe. Sentindo o sumiço do cosmos do mestre, ela parou e correu em seu auxílio.

“Mestre! Você está bem?”

Embora estivesse atordoado, Hyoga conseguiu sentar-se no chão e sorrir-lhe.

“Nunca estive melhor. Como queria treiná-la assim, Charis…”

“Tomarei cuidado na próxima vez que lutarmos para não machucá-lo ao final do treino, mestre.”

“É bom. Ou poderei machucar-me de verdade na próxima. Seu cosmos está crescendo a cada dia.”

“Fico contente em ouvir isso, mestre.”

“Mas não se esqueça de manter suas convicções e objetivos em cada golpe que aplica. São eles que a levarão cada vez mais alto, independente do inimigo à sua frente. Não importa o quão poderoso seja o seu adversário, você tem uma missão a cumprir.”

“Sim, mestre. Devo proteger o meu povo, não importa o que aconteça.”

“Mesmo que lute contra os próprios deuses, deve honrar sua palavra.”

“Entendo.”

Ainda atordoado, Hyoga levantou-se. Só então notou a quantidade de homofalcos que o observavam, curiosos com a demonstração de força. Nenhum deles sentia-se ameaçado com seu cosmos; simplesmente observaram a luta por se tratar de um treino relativamente incomum naquela terra. Logo notou que alguns colegas de treino seus também o observavam, abismados.

“Ei, Hyoga, por que nunca usou esse cosmos no treino?”, perguntou um, boquiaberto.

‘Devo dizer a verdade, ou eles acharão que os enganei esse tempo todo’, pensou. Mas antes que pudesse dirigir-lhes a palavra, Ájax aproximou-se, cortando qualquer questionabilidade sobre as atitudes do cavaleiro.

“Porque ele não pôde. A corrente de Prometeu bloqueia o uso de seu cosmos, dentro de nossos domínios. Ele só pôde lutar dessa forma agora porque eu o liberei por uma hora. Hyoga jamais foi falso com vocês no treinamento de soldado.”

As palavras de Ájax não deixaram suspeitas sobre ele, apenas o espanto com a quantidade de cosmos que possuía. Notou, entre a multidão, a presença de Evan, que o fitava nervosamente. Não sabia se era por ter faltado ao treino ou se tinha inveja de seu cosmos. Mesmo assim, procurou não fitá-lo e voltou-se ao treino de Charis.

“Charis, como você está?”

A garota mostrava-se visivelmente cansada, não apenas fisicamente. O uso constante do cosmos, ao qual ainda não estava acostumada, drenara-lhe toda a capacidade mental para o treino. Estava ajoelhada, ofegante após o exercício, e Hyoga achou justo um breve descanso antes de continuar.

“Tire a tarde de folga. À noite, vou prendê-la à montanha de gelo para que fortaleça ainda mais o seu cosmos.”

Entrou em casa e desapareceu à vista de todos, fugindo da comoção que o treino causara.

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