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[Saint Seiya] Prisão das Asas - Parte 5, escrita por Nemui

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Autora: Nemui
Fandom: Saint Seiya
Gênero: drama, aventura
Classificação: 16 anos
Status: Completa
Resumo: A vida de Hyoga se transforma quando entra em contato com um mundo completamente diferente do seu.




As pessoas reuniram-se à tarde na casa de Eleni, conversando e falando sobre o bebê. Muitas eram companheiras de trabalho de Hyoga, que as cumprimentava normalmente. Ájax já partira de manhã com um grupo de homofalcos para verificar o terreno que Hyoga apontara como suspeito, munidos de pás para investigar. Hyoga desejava ir junto, mas sabia que não podia recusar o convite de Eleni para a festa.

A idéia de permanecer entre dezenas de pessoas que o idolatravam era incômoda e até assustadora, depois de Ájax comentar sobre ceder a todos os pedidos do povo. Perguntou-se rapidamente o que seus amigos fariam numa situação como aquela. Shun provavelmente acabaria cedendo. Shiryu e Seiya já não fariam isso. Ele achava que não cederia, mas agora se encontrava em dúvida.

“Hyoga! Que bom que veio. Venha, sinta-se à vontade.”

A casa de Myles e Eleni passara recentemente por uma ampliação para comportar o novo membro da família, tendo espaço suficiente àquela festa. Eleni ofereceu-lhe vinho, e Myles ocupava-o com o diálogo.

“Soube que Ájax expandiu sua área, Hyoga. Acho que logo poderá caminhar entre nós sem corrente.”

“Isso ainda não é possível”, respondeu, olhando aos negros e brilhantes elos. “Não são todos que me aceitam ainda. Afinal, sou um humano.”

“Os guerreiros em geral não; mas as mulheres até sonham com você. Tem sorte, a maioria está trabalhando com Ájax, numa espécie de caça ao tesouro.”

“Estão procurando por Aure. Nem cheguei a conhecê-la, mas isso já é quase um mito.”

A expressão de Myles alterou-se para um semblante sério.

“Aure, minha querida irmã… Já está desaparecida por tempo demais. Provavelmente já… a perdemos.”

“Talvez não. A partir de agora, não quero mais ficar parado. Achava que precisava apenas permanecer aqui e lutar quando fosse preciso, mas… Eleni contou-me sobre os guerreiros de Prometeu, que eles atacam a cidade constantemente.”

“É… Fazem às escondidas, sabe? Matam um aqui, atacam outro ali. Eles não querem que tenhamos filhos.”

“Por quê?”

“Não sei. Atualmente somos três mil homofalcos, mais ou menos. Esse é o nosso limite. Quando extrapolamos essa marca, os guerreiros de Prometeu vêm e matam-nos até restabelecerem a quantidade desejada. Eles têm nosso controle demográfico como se fôssemos escravos.”

“Ou seja: Prometeu admite a existência de vocês, mas não o crescimento. Por quê?”

“Eu também gostaria de saber. Prometeu sabe que a extinção dos homofalcos provocaria uma guerra total entre ele, Athena e Ártemis. Sua deusa também se mostra complacente com esse controle que ele faz, de forma silenciosa. Contudo, a tensão nos últimos meses tem aumentado, depois que Athena assumiu o posto no Santuário. Cada vez mais envia ajuda a nós, e cada vez mais a pressão que Prometeu faz também aumenta. O melhor que podemos fazer é tentar nos defender com o que temos, com nossos guerreiros. Mas é pouco para enfrentar Prometeu.”

“Um choque entre humanos e homofalcos seria desastroso. Em parte, vejo que Prometeu deseja priorizar os humanos, que são sua criação. O controle populacional é vantajoso para Athena, também.”

“Como assim?”

“Mantendo os homofalcos sob esse controle, não haverá choque de armas entre os homofalcos e os humanos.”

A estupefação de Myles fez com que Hyoga tentasse colocar a situação de uma forma mais delicada.

“Se houvesse uma guerra entre humanos e homofalcos… Vocês seriam esmagados pelos humanos. E sendo os invasores, eu seria inimigo dos homofalcos. Numa comparação de vantagens e desvantagens… É melhor manter o controle demográfico dos homofalcos para não haver conseqüências piores, para os dois lados.”

“Mas Prometeu quer nos exterminar agora, Hyoga. Ele tem matado cada vez mais homofalcos, está cada vez mais cruel na maneira de exterminá-los. Seus guerreiros são verdadeiros monstros, torturam-nos como se fôssemos lixo.”

“Pode ser, pois nas últimas batalhas Athena tem provocado a ira dos deuses. Acho que ela me manteve aqui para fortalecer a defesa dos homofalcos. Além do mais… Concordo que deveria haver uma forma de evitar o conflito entre humanos e homofalcos… Sei que os humanos não estão preparados para conviver com os homofalcos e vice-versa, mas acho injusto esse tipo de repressão. Talvez seja o caso de Athena negociar com Prometeu oficialmente para encontrarmos um acordo justo.”

“Sua idéia parece-me ótima, Hyoga, mas não é tão simples assim…”

Hyoga bebia uma taça de vinho, que foi subitamente arrancada de sua mão. Era Evan.

“Cavaleiro, Ájax exige a sua presença nas buscas.”

“Encontraram algo?”

“Por que não dá o fora desta casa, já que não merece ficar entre nós, e obedece ao nosso líder sem questionar?”

A fúria da resposta de Evan cortou-lhe qualquer possibilidade de diálogo. Sabendo que seria melhor para ele manter-se afastado de Evan, fitou Myles.

“Perdoe-me, Myles, terei de sair antes para ajudar Ájax.”

“Sem problemas. Obrigado por ter vindo, Hyoga.”

Hyoga saiu apressado, com a atenção voltada ao que Ájax poderia ter encontrado naquele pedaço de terra. Através do olhar reprovador, Myles viu Evan beber o resto do vinho à sua frente.

“Não deve falar nesse tom com o meu convidado.”

“Ele não é um convidado. É um prisioneiro.”

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Ájax aguardava-o próximo ao buraco que os homofalcos cavavam. Hyoga aproximou-se e notou que havia uma construção de pedras por baixo de dois metros de terra, como se uma cabana tivesse sido enterrada ali.

“O que é isto?”

“Suas suspeitas, caro amigo. É incrível como nenhum de nós percebeu. Ainda não sabemos o que há por baixo deste teto, mas é possível que haja inimigos. Prefiro que esteja conosco. Caso aconteça algo, liberarei o seu cosmos.”

“Passe uma pá. Eu ajudo.”

Ainda havia um longo trabalho de escavação pela frente, mas Ájax não hesitara chamá-lo. De fato, em todas as tarefas, Ájax demonstrava excessiva cautela, muitas vezes irritando Evan. Talvez aquela fosse a razão de tão enfurecida investida do homofalco na casa de Myles. Enquanto trabalhava, Ájax comentou, observando a estrutura que começava a revelar-se.

“Eu sou um idiota, Hyoga. Durante todo esse tempo, nem sequer pensei em verificar desta forma. Você chega e resolve tão facilmente, até me faz parecer um imbecil da frente de meu povo.”

“Isso seria péssimo para nós dois. Mas fomos nós dois que descobrimos, não eu.”

“Mesmo assim, isso ainda fica na minha cabeça.”

Ájax voltou-se ao outro lado, onde conseguiam descobrir uma parede. Decidiu que era melhor concentrar as duas frentes num só lado da casa, esperando encontrar alguma porta. Pela disposição das paredes, supôs o local onde colocaria uma abertura e mandou que cavassem ali.

À medida que avançavam, mais conseguiam ver daquela construção. Era uma cabana de pedra, com uma cobertura fortemente estruturada de madeira. Por ser anormal e feita para suportar grandes pesos, não tiveram dúvidas: fora construída para permanecer no subterrâneo. Passaram a concentrar-se então nas paredes, e logo um homofalco chamou a atenção de todos.

“Achei uma coisa!”

Havia uma espécie de túnel que levava à superfície, reafirmando que a casa fora feita para permanecer soterrada. Ájax cavou com as mãos no local em que seria a abertura da casa e encontrou um alçapão branco forrado de neve falsa.

“Desapareceram por aqui, então? Fiquem a postos, eu vou abrir.”

A tensão era evidente no grupo de homofalcos. Ájax destrancou a porta e abriu-a lentamente. Quando foi entrar, no entanto, um repentino golpe de cosmos atingiu-o, assustando todos. Ferido, o líder caiu desfalecido na neve e permitiu a saída do inimigo. Um guerreiro surgiu de dentro, distribuindo golpes em todos os homofalcos em volta. Hyoga aproximou-se de Ájax, tentando despertá-lo.

“Ájax! Acorde, Ájax, solte-me!”

Mas o líder não aparentava recobrar os sentidos. Desesperado, Hyoga levantou-se com a pá, sentindo-se um idiota. O inimigo nocauteara todos com simples golpes de cosmos e podia muito bem matá-lo com um só golpe naquele estado. O desconhecido riu, achando divertido, e aproximou-se segurando uma espada.

“Então você é o prisioneiro dos homofalcos. Não quer ser meu escravo? Sou Éolo, servo de Prometeu. Eu conheço o segredo para tirar a corrente de Prometeu que está usando.”

Hyoga não estava disposto a render-se a um inimigo, mas sabia que poderia morrer se não o fizesse. Continuou a segurar a pá com força, mesmo sabendo que de nada adiantaria. Éolo riu mais uma vez e atirou um pequeno golpe de cosmos, que destruiu a pá. Desarmado, não havia como fugir. Pensou em recuar, mas Ájax estava aos seus pés e não sabia se poderia ser atacado.

“Você sabia, rapaz? Que se deixar que eu mate o líder dos homofalcos, ficará livre de sua corrente? Eu juro.”

Ele já sabia daquilo. Mas também sabia que prometera ser fiel aos homofalcos, mesmo que isso o levasse a morte. Permaneceu parado, e Éolo riu novamente.

“Que divertido.”

Um novo golpe atirou-o para trás. Hyoga caiu atordoado e tentou levantar-se, mas levou um chute que o atirou para longe novamente. Em seguida, foi pisado nas costas e mantido imóvel no chão.

“Que verme é você. Que verme!”

A pressão era tanta que Hyoga teve a impressão de ter os ossos esmagados, sem que pudesse revidar. Sem agüentar mais, gemeu de dor, dando mais prazer ao seu inimigo. Pudera utilizar o cosmos para defender-se! Éolo agarrou-o pelo pescoço e ergueu-o sobre o chão, tentando enforcá-lo. Mesmo tentando livrar-se com o pouco de força, não era páreo à força sobre-humana, restando-lhe apenas aguardar a morte.

Quando constatou que seus sentidos abandonavam-no, Éolo atirou-o contra uma árvore, e Hyoga caiu tossindo, tentando recuperar o ar. Estava condenado, sabia disso, e a demora só o deixava mais desesperado. O servo de Prometeu levava na cintura uma pequena adaga adornada a ouro, presente de seu deus. Num rápido movimento, transpassou-a pelo braço direito de Hyoga, cobrindo-se de seu sangue. Logo em seguida fez o mesmo no tronco, fincando a lâmina na carne das costas.

E a única coisa que Hyoga podia fazer era gritar de dor. A lâmina encostou-se em seu pescoço ameaçadoramente, mas Éolo logo mudou de idéia. Percorreu a adaga por seu rosto, cortando-o profundamente até chegar próximo ao olho. Fizera tal movimento apenas para que Hyoga esticasse o pescoço em reflexo, deixando-o à mostra. Quando se preparava para dar o golpe de misericórdia, seu cosmos protegeu-se de um golpe que viera por trás. Era Evan.

“Que covarde é você, Éolo, bem como os humanos. Torturar um homem indefeso só é justo quando é seu direito.”

Éolo riu e cravou a adaga no ombro de Hyoga, que gritou de dor, como se a guardasse num pedaço de madeira. Levantou-se, queimando o seu cosmos.

“Se bem me lembro, seu nome é Evan. Não me diga que está com pena deste verme infeliz. Não me diga que é amigo dele.”

“Para ser sincero, adoraria torturá-lo. Mas sou diferente de vocês, humanos. Sou um homofalco e prezo minha honra! Esse humano é nosso prisioneiro; portanto apenas nós temos o direito de matá-lo.”

O cosmos de Evan explodiu abundantemente, espalhando-se por toda a região. Abriu as asas e tirou sua espada, dando um comando de ataque. Junto dele, viera um exército de homofalcos. Hyoga ainda pôde ver o início da luta, antes de desmaiar.

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Hyoga acordou desnorteado, sem lembrar ao certo o que ocorrera. Tentou mover-se, mas a dor irradiou por todo o corpo, como se tivesse sido surrado em todos os lugares. Olhando em volta, notou que não estava em casa. Era o quarto extra da casa de Myles, que supostamente deveria ser de Tibalt.

Uma homofalca observava-o à distância em silêncio. Ao notar que despertara, saiu do quarto para avisar Eleni, que logo retornou com uma bandeja.

“Hyoga, que aperto… Você esteve muito próximo de morrer desta vez.”

Não havia sorriso em seu rosto. De fato, estivera preocupada demais para sorrir-lhe, apesar do nascimento de seu filho. Hyoga ainda tentou encontrar uma posição mais confortável na cama, mas notou que estava completamente imobilizado pela corrente de Prometeu, que dava voltas na cama.

“O que é isto?”

“Você não deve mover-se até que os ferimentos se cicatrizem.”

Myles aproximou-se carregando o filho nos braços. Mesmo que fosse apenas a primeira impressão, Hyoga sentia que o clima era de morbidez.

“O que aconteceu lá? O que houve depois que Evan apareceu?”

“Ele conseguiu expulsar Éolo com um ataque, dois dos nossos morreram na perseguição. Encontramos Aure… Ela está se recuperando ainda, mas está bem.”

“Então, as notícias são boas.”

“Todos estão falando que você estava sendo humilhado e torturado por Éolo quando Evan chegou.”

“É verdade. Ájax foi o primeiro a ser nocauteado e não liberou o meu cosmos para que eu pudesse lutar. Estava completamente indefeso diante de meu inimigo.”

“Muitos perderam a fé em você, Hyoga.”

Por um momento, Hyoga perguntou-se se aquilo era bom ou ruim. Os homofalcos precisavam entender que ele sozinho poderia não dar conta de todos os seguidores de Prometeu. Por outro lado, não era bom que o povo caísse em desespero.

“Vocês também?”

Eleni sorriu e passou-lhe a mão na cabeça, carinhosa.

“É claro que não, Hyoga. Estamos ansiosos para que ensine o nosso pequeno Tibalt.”

“Mas… Escolheram-me porque souberam que eu era um cavaleiro, não é?”

Myles aproximou-se, sorrindo.

“Achava que era isso? Hyoga, sabe que homofalcos sempre honram a palavra e que nunca descumprimos nossas promessas. Pois eu juro a você aqui, neste instante, que não o escolhemos como mentor de Tibalt por ser um guerreiro de renome. Evan é considerado um herói entre os nossos, mas é louco. Ele deseja matar humanos. Ájax também só está interessado em formar guerreiros que protejam os homofalcos. Mas nós não queríamos isso ao nosso filho.”

“Nossa amizade por você sempre foi verdadeira, Hyoga, em todos os aspectos. Queríamos que fosse o mestre de Tibalt porque queríamos um homem de caráter quando crescesse, que não fizesse distinção entre raças ou agisse apenas em nome de um grupo de pessoas. A melhor pessoa para treinar o nosso filho era Myles, pensava eu, mas nossa tradição mandava que fosse um homem diferente. Achamos que você é o homem certo para isso. Nós nunca deixamos de confiar em você e não decidimos pensando em seu renome como cavaleiro.”

Ouvindo a explicação, Hyoga sentiu-se envergonhado por pensar que agissem apenas de acordo com as expectativas do povo. Eleni nunca lhe parecera uma pessoa romântica dessa forma.

“Desculpe por pensar de outra forma, Eleni e Myles… Agora entendo por que me escolheram…”

“Nós entendemos. Nas estufas, muitas ficavam discutindo se haveria melhor retorno confiar o filho a Evan ou a você. Elas só pensavam no fato de você ser um cavaleiro. Muitas são assim mesmo.”

“Mesmo assim… Não devia ter aplicado o mesmo pensamento a vocês… Desculpem. Prometo que serei um bom mestre ao Tibalt.”

“Então sobreviva até lá, rapaz!” riu Myles. “Você parece ter sido esmagado por uma pedra, sabia? Veja!”

Myles deu um leve soco no ombro ferido, e Hyoga gemeu em resposta, sentindo a dor do corte. Ferido daquele jeito, não poderia iniciar o treinamento de Charis devidamente.

“Não faça isso, querido, não é em você que dói!”

O marido gargalhou e afastou-se com o bebê.

“Ora, se ele não morreu com tudo isso, é porque não morre mais!”

“Desculpe, Hyoga…”

“Tudo bem, eu agüento. Ele tem razão, agüentei tantos golpes, um toque não fará a menor diferença.”

“Você dormiu um dia inteiro… deve estar faminto.”

Servindo-lhe a comida como se tratasse de um bebê, Eleni assemelhava-se à sua mãe quando se sentava ao lado de sua cama, antes de dormir. Hyoga sabia que devia evitar aquele tipo de pensamento, mas era inevitável diante da imagem de Eleni, tão semelhante à Natássia.

“Eu sempre dei trabalho a você, não é? Até mesmo quando nos conhecemos.”

“Não faz muito tempo. Tive de tirá-lo do meio da neve só porque ficou se sentindo culpado.”

“Meus amigos comentam que sempre tive complexo de culpa.”

Permaneceram alguns minutos em silêncio, enquanto se alimentava. Quando a tigela estava no último quarto, Eleni comentou, preocupada:

“Agora que estou com Tibalt, não terei tanto tempo para cuidar de seus ferimentos, Hyoga.”

“Tudo bem, eu posso me virar.”

“Se acontecer algo grave, não poderá. Escute, já faz mais de um ano que chegou à terra dos homofalcos, Hyoga. Você vai passar o resto da vida aqui. Não deseja fixar a sua situação?”

“Quer dizer, casar-me?”

“Isso. Parece que ainda existe algo que o segura, apesar de dar-se bem com a maioria dos homofalcos. O que é?”

Hyoga contemplou a questão. Mesmo em Kohotek, preferia não desenvolver relacionamentos familiares, por ser um cavaleiro. Na terra dos homofalcos, podia viver como um morador qualquer, mas ainda estava sob o comando da deusa.

“É que sou um cavaleiro de Athena, Eleni. Não posso criar uma família, ter uma mulher e filhos… Quando posso ser morto numa batalha e abandoná-los à própria sorte. Não me é proibido ter esse tipo de relação… Mas geralmente cavaleiros preferem afastar-se das pessoas por esse motivo. Para que ninguém chore sua morte.”

“Que jeito triste de encarar a vida. Mas sabe? Se morrer, eu chorarei a sua morte. Charis também. De qualquer forma, sempre haverá alguém que sofrerá e virá pôr flores em seu túmulo. Pense nisso.”

“Pensarei. Mas dificilmente mudarei minha opinião. Por falar em Charis… Coitada, ainda nem comecei o treinamento dela.”

“Não se preocupe. Myles já está passando uns exercícios básicos para ela. Quando sarar, ela já terá noção de algo.”

“É bom. Porque o treinamento que receberá será bem rigoroso.”

Quanto ao treinamento de Charis, Hyoga decidira o que formaria. Seria uma guerreira, no sentido total da palavra, uma especialista em combates. Se ela seria uma protetora dos homofalcos ou de Athena, deixaria que escolhesse. Com o tempo, haveria de encontrar o próprio caminho. Não tinha certeza se aquele era o raciocínio correto naquela situação, mas era o que agarrara com toda a alma.

Eleni começou a limpar-lhe os ferimentos da corrente, enquanto ele a observava quieto. De certa forma, ainda se sentia um estranho naquele lugar, como se o seu lar ainda fosse Kohotek. Olhava para o lado enquanto ela limpava-lhe a nuca, quando viu Ájax entrar no quarto.

“Hyoga, como está?”

“Ele está vivo”, respondeu Eleni, secamente.

A mudança de comportamento da homofalca devia principalmente ao fato de Hyoga ter quase morrido por culpa de Ájax, que não liberou o seu cosmos para que pudesse defender-se.

“Desculpem”, disse ele, de imediato. “Desculpe, Hyoga. Devia ter liberado seu cosmos antes de abrir aquela porta. Não imaginei que seria nocauteado tão fácil.”

“Se quisesse a minha morte, já teria me matado. Está desculpado, contanto que tome mais cuidado de agora em diante.”

“Eu vou, prometo. Sinto muito, Eleni… Se pudesse, deixaria que usasse o cosmos em tempo integral.”

“Se usasse, causaria um tremendo tumulto entre os guerreiros que não são a favor de mim. Eles com certeza se sentiriam ameaçados. E mais, é provável tentarem me matar sem razão nenhuma.”

“Andei pensando sobre isso e acho que precisamos resolver este assunto de uma vez por todas.”

“Como, Ájax?”

“Ainda não vou falar. Quero mais tempo para decidir, e você está ferido demais para fazer qualquer coisa. Por enquanto, só quero que descanse e se recupere.”

“Enquanto houver intrigas e rivalidades entre nós, não conseguiremos agir. A minha sorte é que Evan respeita a honra acima do ódio que tem por mim, ou já estaria morto.”

“Você acaba de citar uma das melhores qualidades dele.”

“Mesmo assim… Aquele Éolo não era fraco. Não pude sentir o cosmos dele por não poder usar o meu, mas notei que não era um guerreiro comum. Como Evan conseguiu expulsá-lo? É tão poderoso assim?”

“Não. Éolo retirou-se por vontade própria. Mas disse que pegaria um substituto para Aure… Eu não sei por que demoram tanto a atacar. Eles pegam mulheres ou crianças e passam meses com elas. Depois, trazem de volta ameaçando matá-las se não entregarmos um determinado número de sacrifícios. Geralmente nossos homofalcos mais nobres… morrem desse jeito.”

“Elas não falam o que acontece?”

“Nunca. Sentem medo, ficam nervosas, até agressivas quando tocamos no assunto.”

“Isso é ruim… Seria bom se pudéssemos saber.”

“Talvez você saiba. Contei para Aure que um homem a salvou. Ela tem curiosidade por você, Hyoga.”

“Não sei se é uma boa idéia.”

“Também não sei. Mas veremos. Por enquanto… Esqueça tudo e melhore. Mandei que trouxessem roupas novas, você terá ajuda enquanto estiver assim. Eu… Sinto muito mesmo, amigo.”

Ájax saiu, deixando-os. Eleni ainda estava ressentida pelo que houve com Hyoga, mas não ousou reclamar mais, por respeito ao seu líder.

“Ele está mesmo arrependido, Eleni.”

“Se estivesse morto, teria perdoado?”

“Só se conseguisse proteger os homofalcos em meu lugar. Mas ainda estou vivo, Eleni, posso lutar. Quando os meus ferimentos cicatrizarem, vou lutar para protegê-los.”

“Você estava coberto de sangue quando veio, Hyoga. Conseguimos salvá-lo por um milagre… Não faça mais isso comigo, por favor.”

Vendo que a expressão de sofrimento de Eleni não era mentira, Hyoga aquietou-se.

“Vou tentar…”

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Charis entrou no quarto visivelmente irritada e aproximou-se de Hyoga como se quisesse arrancá-lo de lá à força. Fazia uma semana desde que ele fora atacado por Éolo e já conseguia sentar-se e caminhar pequenas distâncias apoiado em Eleni. Brincava com Tibalt, que estava deitado na cama ao lado dele, quando ela lhe chamou a atenção.

“Hyoga, quando vai começar o treinamento?”

“Charis…”

“Myles disse que já estou pronta para receber o treinamento, mas você fica o dia inteiro deitado nessa cama!”

Eleni, que voltava da cozinha, tentou acalmá-la.

“Charis, Hyoga quase morreu no ataque. Não deve pressioná-lo, ele nem consegue andar direito. Viu como ele voltou coberto de ferimentos?”

Hyoga já esperava pela reclamação. Sabia que não estava em condições de dar o treino, mas os últimos dias tinham sido extremamente tensos para ele. Evan era considerado novamente um herói, enquanto muitos ridicularizavam o cavaleiro que fora manipulado feito um boneco nas mãos de Éolo. Toda aquela pressão com certeza machucava Charis, que o escolhera especialmente ao treino.

“Tudo bem, Eleni. Charis quer dizer que se eu não me levantar daqui agora mesmo e dar-lhe o treino, serei um fraco.”

“Mas Hyoga, você está fraco. Seus ferimentos ainda estão sangrando, veja como o braço e o rosto estão inchados. Além do mais, mal pode mexer os braços, a facada que levou nas costas ainda está aberta… Não, não pode dar aulas ainda!”

“Talvez… Mas preciso dar mesmo assim. Não se preocupe, posso passar as primeiras lições aqui mesmo.”

“O que devo fazer, mestre?”

“Duzentas voltas. Corra duzentas voltas a pé em torno da cidade. Passe pela estrada principal das estufas, dê a volta por trás da fonte, atravesse o ponto de pesca. Não pare, não coma, não descanse. Vá.”

Sem responder ou sorrir, Charis deu meia volta e saiu para fazer o exercício, deixando-os. Chocada, Eleni voltou-se ao cavaleiro.

“Não pode fazer isso com ela!”

“Claro que posso, é minha discípula. E ainda comecei devagar, pois meu mestre mandava dar quinhentas na neve, em pleno inverno. Mas pro começo, já está bom. Se ela morrer no meio do treinamento, Ájax me matará.”

“Fará isso com o nosso pequeno Tibalt também?”

“Vocês não queriam um guerreiro de verdade? Pode ter certeza de que o terão.”

“Eu não acredito… Passou mesmo por um treinamento desses, Hyoga?”

“Sim. Geralmente os candidatos a cavaleiro desistem no meio do treino por ser rigoroso demais. Há aqueles que morrem também, é inevitável. Como não posso matar Charis, terei de maneirar na dose dos exercícios, mas não vou amolecer só por causa disso.”

Como se não ligasse se Charis estava conseguindo ou não, Hyoga continuou a brincar com o Tibalt, sob o olhar reprovador de Eleni. Talvez soasse rigoroso demais pelo choque de culturas. O treino dos homofalcos era pesado, mas não era tão rigoroso quando o dos cavaleiros de Athena. Mesmo que Charis não desejasse ser uma amazona de Athena no futuro, daria a ela um treino que a tornaria tão forte quanto um cavaleiro.

A tarde seguiu-se de forma tranqüila para ele, que não podia fazer nada além de distrair-se com o que havia em volta. Ora pegava um livro para ler, ora dava atenção ao seu futuro discípulo. Quando notou que a noite chegava, chamou Eleni.

“Pode fazer um enorme favor para mim, Eleni?”

“Claro, Hyoga. O que é?”

“Procure Charis. A esta hora, ela deve ter ou terminado, ou caído de cansaço. Se ainda estiver correndo, deixe-a terminar. Mas se não, traga-a até aqui.”

“Coitadinha. Ela deve estar morta de cansaço…”

“Logo ela se acostuma ao ritmo de treino. Obrigado, Eleni.”

Após meia hora, a homofalca retornou, trazendo Charis inconsciente nos braços. Suja dos tombos que levara de cansaço, a garota estava pálida e sofrendo os primeiros sinais de hipotermia. Colocou-a sobre a cama e Hyoga deu alguns leves tapas no rosto para acordá-la.

“Charis. Acorde. Acorde.”

Molemente, a garota abriu os olhos cansados.

“Hyoga…”

“Mestre. Para você eu sou mestre.”

“Sim… Mestre…”

“Conseguiu terminar a tarefa que lhe passei?”

“Não… Fui até a volta…”

Antes que ela falasse, Hyoga tapou-lhe a boca, com o olhar frio.

“Não quero saber até onde foi. Fracasso é fracasso. Você fará o seguinte agora: volte para casa, descanse. Amanhã de manhã quero que dê as duzentas voltas. E se não conseguir, descanse uma hora e tente de novo. Se ainda assim não der certo, terei de aumentar a dose para trezentas voltas, entendeu? Não pare, não desista. Um guerreiro jamais deve sucumbir, por mais cansado ou ferido, ele deve ser persistente. Agora se levante e volte para casa.”

“Sim… mestre.”

Charis levantou-se cambaleante, quase caindo a cada passo que dava. Sorriu debilmente para Eleni, antes de sair da casa.

“Obrigada por me ajudar, Eleni…”

Desta vez, o olhar de Eleni foi ríspido.

“Não acha que está sendo muito duro com ela?”

“Acho. Mas preciso ser. Charis precisa pegar o ritmo de treino o quanto antes.”

“Você é um monstro!”

“Às vezes, pensava o mesmo de meu mestre. Mas tudo que ele fez tinha fundamento, assim como agora faço com Charis, Eleni. Em primeiro lugar, ela precisa desenvolver resistência física para agüentar longos períodos de batalha. Depois, deve aprender a nunca desistir, por mais difícil que seja. Atingir um objetivo é uma questão de sim ou não, não existe quase. Quando aprender essas coisas, poderei ensinar-lhe o conceito de cosmos e iniciar o treino de luta.”

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Charis entrou no quarto cansada e cambaleante, mas com uma expressão de alegria no rosto. Aproximou-se de Hyoga, que limpava ele mesmo o ferimento das algemas.

“Mestre! Eu consegui dar as duzentas voltas.”

“Muito bem. Pronta para o próximo exercício?”

“Sim, mestre!”

“Seiscentas flexões de braço. Agora.”

Charis jogou-se no chão e começou o exercício, decidida a ir até o fim. Como podia acompanhá-la, Hyoga guardou o ungüento e pôs-se a contar cuidadosamente. Sabia que Charis, por ser filha de Ájax, tinha sido educada para jamais faltar com a palavra. Contudo, a atenção que lhe dava era uma forma de estimulá-la a continuar, pois não bastava passar os exercícios aos discípulos para ser um bom mestre.

No meio da tarde, quando Charis estava perto de trezentas flexões, já esgotada, Ájax entrou no quarto, curioso.

“Você está tentando matar a minha filha, Hyoga?”

“Talvez.”

Charis perdeu a concentração e caiu, ofegante. Sem perder a postura, Hyoga incentivou-a a continuar.

“Vamos, Charis, continue. Só falta metade. Você quer ser forte, não quer?”

Reunindo as forças, ela voltou a exercitar-se. Hyoga continuou contando, acompanhando-a com olhos atentos. Ájax não sabia se o socava por maltratar a filha ou se perguntava por mais detalhes daquele treinamento.

“Não vai matá-la, vai?”

“Não. Estou maneirando nos exercícios. Se fosse um treinamento de cavaleiro como o que o Santuário aplica, ela não agüentaria.”

“Mestre!”

“O que houve, Charis?”

“Pode ser mais rigoroso!”

Hyoga sorriu-lhe e pensou em dizer-lhe que já era o suficiente. No entanto, achou que a confiança que Charis tinha nele devia ser respeitada também.

“Então faça oitocentos em vez de seiscentos.”

“Sim!”

“Você tem algum assunto a tratar comigo, Ájax?”

“Sim… Queria saber se você não está interessado a voltar aos dias de treino.”

“Como assim?”

“Se você tem uma altíssima aprovação popular feminina, a masculina está no fundo do poço. Com isso, não poderá conviver com os nossos soldados em harmonia.”

“E qual é a sua sugestão para resolvermos isso?”

“Quero que seja um discípulo de Evan.”

“O quê?!”

A surpresa foi tanta que até Charis parou de fazer as flexões. Mas vendo que Hyoga não deixara de contar seus exercícios, continuou, sem dizer nada.

“Não é uma idéia tão absurda assim, Hyoga. Evan controla toda a força militar dos homofalcos. Ele não só treina os discípulos de direito, como todos os homens com força de luta. Desta forma, nosso grupo militar é bastante unido, mas vulnerável à influência dele.”

“E você quer que eu entre e seja massacrado.”

“Outro dia, você estava reclamando que as pessoas davam-lhe créditos inexistentes. Eu pergunto: o que fez de digno de respeito pelo nosso exército? Nada! Eles não o respeitam porque você nunca os ajudou ou participou do meio em que vivem. Pensei em dividi-lo na tarefa de treiná-los junto com Evan, mas isso só atrairia mais a raiva dele.”

“Então devo ser um soldado normal.”

“Isso. Deve treinar como todos os outros, da posição mais baixa. Não quero que se sinta inferiorizado com isso, só estou sugerindo uma possibilidade, entenda.”

“Eu entendo.”

“Se conquistar o respeito deles, desde o soldado mais fraco até o grande Evan… Terá o exército em mãos e poderá agir como bem entender. Acho que, se isso acontecer, o cristal responderá azul à retirada da corrente. Se não, ao menos à liberação de seu cosmos entre nós.”

“Em outras palavras, devo refazer o treinamento de luta, mas ao modo dos homofalcos. Se aprender o modo de luta deles, seus valores e virtudes… Se conseguir o respeito dos colegas…”

“Sim. Você poderá agir com mais liberdade nesta causa. Pensei nisso por muito tempo, imaginando se… Não seria ofensivo a um cavaleiro de Athena…”

“E é. Imagino como um cavaleiro de ouro acharia essa proposta absurda. Geralmente conquistamos através de força, não de submissão. Mas aqui é diferente. Ninguém duvida do meu poder, tanto que me querem com a corrente. Mas eles duvidam de meu caráter.”

“É por isso que precisa começar de baixo. Para provar que não é apenas o seu poder, mas a sua honra. Está disposto a participar deste plano?”

“Estou. Se Evan concordar em aceitar-me, farei o treinamento militar dos homofalcos, como qualquer soldado, Ájax.”

“Muito bem. Não precisa ter pressa para começar, Hyoga. É bom que seu corpo esteja em perfeitas condições quando começar o treino.”

Ájax saiu e Hyoga fitou Charis, que diminuíra o ritmo devido ao cansaço.

“356, certo? Estou contando.”

Surpresa por ver como Hyoga acertara o número da flexão, Charis imaginou se conseguiria prestar atenção numa pessoa com quem estivesse conversando e contar as flexões do outro lado do quarto. Era como se Hyoga tivesse duas visões ou o controle total do que ocorria em volta.

“Mestre, vai mesmo virar um discípulo de Evan? Você já é um cavaleiro de Athena, é até mais poderoso que Evan…”

“É verdade. Mas preciso conquistar o respeito do povo homofalco, Charis. Além disso, podemos aprender coisas novas com pessoas mais fracas que nós, sabia? Uma técnica nova, uma lição de vida. Portanto, mesmo que se torne tão forte quanto um cavaleiro, Charis, entenda que experiências novas não se situam apenas no topo da pirâmide. Você pode encontrar uma maneira de salvar-se até com um servo. Portanto… Nunca menospreze as pessoas, por mais fracas que sejam.”

“Sim, mestre. Mas agora temo por você. Evan não o deseja em seu exército, mesmo como discípulo. Ele fará de tudo para expulsá-lo.”

“Eu sei. Mas tudo bem. Será um treino rigoroso por causa disso. E não é uma coisa boa?”

Charis sorriu, sem parar com as flexões.

“É sim, mestre.”

—————————————————————

Depois de curar-se consideravelmente, Hyoga retornou para casa, liberando o quarto de Tibalt. Contudo, Eleni vinha todos os dias para tratar seus ferimentos, ainda não totalmente cicatrizados. Mesmo assim, Hyoga decidira que já estava na hora de trabalhar na confiança com os soldados. Reservara o período da manhã para ensinar Charis, que já se acostumara ao ritmo de treino, e partiria naquela tarde à sua primeira sessão sob o comando de Evan. Hyoga ainda se perguntava como Ájax conseguira convencê-lo a aceitar tal proposta, mas preferia deixar os detalhes de lado e concentrar-se em seu trabalho.

Eleni reforçava o curativo das costas, para que não se soltasse durante o treino, preocupada.

“Hyoga, ainda acho que você não está pronto para isso.”

“Está tudo bem, Eleni. Não precisa preocupar-se tanto com o corte, pois o machucado acaba sujando mesmo no treino. Mais tarde, peço a Charis para fazer um novo. Essa é a vantagem de ter um discípulo em tempo integral.”

“Evan vai trucidá-lo, Hyoga. Ele acha que você não merece participar das lutas.”

“É por isso que preciso entrar nessa. Como Ájax diz, respeito é algo a ser conquistado.”

Hyoga vestiu a túnica e girou os braços, que outrora foram feridos pela adaga de Éolo.

“Já estão bem melhor. Já estou em condições de treino, sei melhor do que ninguém. E está na hora de ir.”

“Como vai treinar com a corrente, Hyoga? Você não consegue fazer muitos movimentos com a corrente e nem pode usar o cosmos. Está em desvantagem.”

“Eu sei. Vejo na hora como farei. Obrigado, Eleni.”

Tranqüilo, saiu de casa e dirigiu-se ao local de treino de Evan, uma vasta área ao pé de uma montanha, onde havia várias armas guardadas e crateras, resultados dos golpes de cosmos. Os homofalcos já se reuniam para o treino e ficaram surpresos ao verem Hyoga aproximar-se. Muitos lhe dirigiram olhares hostis, que ele precisava destruir com o tempo.

Evan chegou logo depois, e todos se colocaram em formação, como um batalhão. Ainda sem compreender como seria o primeiro dia, Hyoga optou por imitá-los e obedecer às ordens como pudesse. Evan, com uma expressão de repugnância, viu-o no meio, mas não comentou nada.

Dos treinos aos quais assistira, lembrava-se da rigidez da postura dos homofalcos, bem mais intensa que a do Santuário. Procurou inserir-se naquele ambiente, embora se sentisse um estranho.

“Há alguns que estão começando o treino hoje. Mas eu não ligo. Aqueles que não se acostumam com o treino são fracos e merecem sair.”

Até então, Hyoga conhecia aquele discurso. No começo de cada mês, Evan inseria um grupo de aspirantes na turma menos habilidosa para treiná-los pela primeira vez. Homofalcos que eram considerados fracos logo acabavam desistindo e voltando para a pesca.

“Corram em volta da montanha até que eu os mande parar. Comecem!”

O começo era como o primeiro dia de treino com Camus, só que mais leve. Não dava para comparar a rigorosidade do treino dos cavaleiros com o dos homofalcos, mas não era isso o que estava em jogo naquele momento. Hyoga obedeceu tranqüilamente e pôs-se a correr num ritmo nem muito rápido, nem muito lento. Preferia manter o mesmo da maioria para não destacar-se demais.

Evan voava atrás dos últimos com um bastão, golpeando-os nas costas. Mesmo que o grupo inteiro corresse mais depressa, ele não pararia de infernizar os que tinham dificuldade de acompanhar o resto, aumentando o ritmo da corrida, cada vez mais. Para Hyoga, não era problema aumentar o ritmo, só se perguntava como aquilo poderia melhorar a imagem dele entre os homens.

Ao final de mais de trinta voltas, um dos rapazes caiu, ficando para trás. Irritado, Evan golpeou-o impiedosamente, até que ele não pudesse mais continuar. Mandou que parassem e arrastou o retardatário ao centro da área, levando o mesmo chicote que punira Hyoga na ocasião em que conhecera Eleni. Deu-lhe dez golpes nas costas e empurrou-o de volta ao grupo. Em seguida, ordenou que voltassem à formação.

“É bom que aprendam a lutar logo. Peguem o companheiro do lado. Ele será o seu companheiro de luta até o final do treino de hoje. A cada vez que for imobilizado pelo companheiro, receberá um golpe. Transfiram cada golpe que levarem aos seus familiares e entes queridos. Cada golpe que leva é a cabeça de um amigo morto! Quanto às demais instruções, passarei individualmente.”

Havia sempre por perto alguns soldados veteranos com chicotes em mãos. Evan deu-lhes permissão para aproximarem-se dos rapazes e aplicar os castigos para cada derrubada. Olhando em volta, o cavaleiro percebeu como aquela era uma prática corriqueira no treino dos soldados homofalcos.

“Comecem!”

Todos se voltaram de forma padronizada, como se já tivessem sido instruídos. Hyoga imitou-os e fitou aquele que seria seu parceiro do dia. Notou rapidamente que suas costas apresentavam mais chicotadas que o normal. Enquanto que ele não se importava com quem lutaria, seu oponente mostrava um claro temor por enfrentar justo o cavaleiro de Athena.

Mesmo sabendo que o garoto podia fugir de medo a qualquer instante, Hyoga avançou e atacou-o rapidamente, sem, no entanto, derrubá-lo. O chute atingiu-o no peito, afastando-o habilmente. Moveram-se lateralmente e logo um novo ataque foi feito do cavaleiro, atingindo-o no braço. Não queria que seu parceiro fosse fustigado a cada investida sua e por isso aplicava golpes leves.

Surpreso, Hyoga notou que ele tremia de medo. Parou e esperou que o atacasse. Tomando uma tímida coragem, o homofalco avançou e deu-lhe um soco no rosto do qual Hyoga não se defendeu. Deixou-se machucar e sorriu-lhe sutilmente, tentando acalmá-lo. Não havia espaço para diálogos naquele campo de batalha, não havia como dizer que não precisava ficar nervoso, a não ser pelos movimentos do corpo.

Rapidamente, Hyoga avançou e deu-lhe outro golpe, veloz e leve, seguido de outro, mais pesado. Aos poucos, tentava impor um ritmo de luta ao qual o homofalco não estava acostumado. Mesmo assim, por colocar-se como guia daquele combate, evitava derrubá-lo e causar-lhe uma punição.

Evan aproximou-se, observando cada dupla, diligentemente. Sabendo que a encenação resultaria numa possível punição, Hyoga não teve escolha a não ser derrubar seu oponente com um movimento rápido, imobilizando-o no chão. Logo um dos soldados se aproximou e aplicou uma chicotada no oponente.

Assim que se levantou, Hyoga avançou com mais golpes, forçando seu oponente a lutar mais rápido e deixando Evan satisfeito. Ao vê-lo partir, puderam diminuir o ritmo novamente. Enquanto treinavam, Hyoga repetia os mesmos golpes que ele tentava aplicar-lhe, de forma clara, mostrando-lhe o correto em silêncio. Percebendo a sua intenção, o homofalco realizava os mesmo movimentos, na tentativa de melhorá-los. Quando conseguiu aperfeiçoá-los, Hyoga deixou que o atingisse, mesmo que isso o levasse ao chão. Imediatamente veio um dos soldados, e Hyoga permitiu que lhe desse o golpe nas costas. Da mesma forma, lançou alguns socos que também derrubaram seu inimigo de tempos em tempos, já que quase todos saíam machucados daquele treino.

Sabia que não podia machucar-se por causa da facada que levara de Éolo. Mas não podia passar por tudo aquilo sem trabalhar na confiança com os soldados com quem treinava, mesmo que saísse com as costas marcadas.

Evan parava de tempos em tempos, para corrigir movimentos errados dos homofalcos. Interrompia a luta e mostrava o modo correto de fazer, forçando o soldado em questão a repetir até conseguir. Por algum motivo, recusava-se a interromper a luta de Hyoga, preferindo observá-la de longe. Este também não se importava, pois estava mais interessado em ajudar o seu parceiro. Continuou a combatê-lo pacientemente, até que o final do treino chegasse, já de noite.

“Muito bem. Por hoje é só! Amanhã faremos treino com lanças, estejam prontos!”

Os homofalcos dispersaram-se, atordoados com os golpes, e Hyoga pegou a túnica que tirara para realizar o treino da luta, mas não o vestiu de volta. Caso não a tivesse tirado, acabaria com a roupa rasgada, já que os soldados de chicote não esperavam. Caminhava para casa, quando o rapaz com que treinara se aproximou e iniciou um diálogo.

“Ei, cavaleiro!”

Hyoga esperou que ele se aproximasse e continuou a andar em direção à cidade.

“É Hyoga. Pode me chamar pelo nome.”

“Hyoga. Eu sou Otis.”

“Prazer. Hoje é o meu primeiro dia, não conheço nenhum soldado.”

“Mas precisa? Você é um guerreiro já formado, muitos dizem que pode lutar contra Evan. Não entendo porque quer treinar como um soldado de categoria baixa.”

“Eu tenho os meus motivos. Mesmo sendo um cavaleiro, sou só um prisioneiro dos homofalcos. Não estou em posição de colocar-me superior a ninguém.”

“Mas você é muito mais experiente.”

“Sempre há coisas novas a aprender com outros povos, Otis. Em troca, também quero dar algo. Tenho certeza de que aprenderei novas técnicas de luta com os homofalcos.”

“E resolveu treinar só para isso?”

“Também. Mas mais para conhecer os soldados, seu treino, suas motivações. Achei que participar fosse o melhor meio.”

O rapaz riu, e Hyoga ficou satisfeito por saber que conquistara o respeito de um soldado. Já era um começo.

“Até levar chicotada de graça, nem acreditei quando vi!”

“E por que não? Não acho justo que só alguns levem, se todos possuem fraquezas. Suportar a dor também faz parte do treino.”

“É verdade. Só que pela primeira vez, encontrei um oponente que se preocupava comigo. Você não avançou com tudo; se pudesse poderia ter me derrubado mais de cem vezes! E ainda me ajudou a melhorar.”

“É claro. Se você melhora, o nosso exército fica mais forte. Se ficamos mais fortes, mais chances temos de derrubar nossos inimigos. Faltava em você um pouco de coragem para avançar mais e mais. Não é questão de evitar as chicotadas, Otis, mas de suportá-las, persistir e continuar, não importando os obstáculos. O método e a filosofia de luta ensinada por Evan é típica da antiga Esparta. Esse é o segredo da verdadeira força de um guerreiro. Não pode ter medo de atacar-me.”

“Então queria apenas me deixar à vontade quando lutava com você?”

“É… Pode-se dizer que sim. Mas na próxima vez que treinarmos, não serei tão gentil. Você tem potencial, Otis, queria que o usasse com paixão e coragem contra mim.”

“Obrigado por isso. Estou vendo que não é o que os outros diziam.”

“O que os outros dizem?”

“Que é um fracote, uma desculpa esfarrapada do Santuário.”

“Heh. Vejo você amanhã.”

Hyoga separou-se e seguiu de volta para casa, satisfeito. Era mais fácil conquistar o respeito dos homofalcos por meio da luta do que pelas estufas. Além disso, o treino possibilitaria a manutenção da forma física, estando pronto para qualquer emergência.

Ao chegar a casa, viu Charis à porta, sorrindo-lhe.

“Bem vindo de volta, mestre. Como foi o treino?”

“Foi bom, Charis. Tudo ocorreu normalmente. E o seu, como está se saindo?”

“Terminei tudo que me mandou fazer, mestre.”

A imagem de Charis, depois de começar a treinar, mudara tanto que surpreendia Hyoga. Era difícil acreditar que aquela menina tímida e medrosa já fora carregada em suas costas como uma irmãzinha, tratada com o maior esmero. Estava suja, vestindo roupas simples, típicas de aprendizes a cavaleiros. Os ferimentos decorrentes do treino cobriam-lhe o corpo, mas ela não parecia mais se importar.

“Muito bem. Amanhã de manhã, vamos lutar. Quero ver se melhorou suas técnicas treinando hoje à tarde.”

“Sim, mestre!”

Hyoga sentou-se na cadeira, e Charis observou o corte do chicote, impressionada. Imediatamente, correu até a o armário onde ele guardava o remédio para lavar os machucados e trouxe uma vasilha de água. Durante o tempo como aprendizes, discípulos auxiliavam seus mestres em troca dos ensinamentos e de proteção. Mesmo sem saber direito como tratar daquele ferimento, sabia que Hyoga contava com ela para ajudá-lo naquela época.

Enquanto passava o pano, Hyoga pouco se movia; esperava calmamente pelo final do tratamento, como se não sentisse nenhuma dor. Via por baixo inúmeras cicatrizes, resultados de batalhas anteriores que se mostravam bem mais abundantes do que em outros homens. A facada que levara também deixara uma cicatriz bem marcante, indicando sua gravidade. Charis sabia que, como era cavaleiro, Hyoga possuía muito mais experiência que eles por dedicar-se à luta em tempo integral, tendo, conseqüentemente, mais cicatrizes.

Quando ia pegar gaze para cobrir o machucado, ele a interrompeu.

“Já está bom, Charis, obrigado. É possível que leve mais golpes amanhã; por isso, deixe como está.”

“Pois não, mestre…”

“Volte para casa e descanse, já está tarde. O treino será pesado amanhã.”

Charis obedeceu e saiu da casa, em silêncio. Exausto, Hyoga deitou-se de bruços na cama e relaxou por alguns minutos, recuperando as forças. Não se podia dizer que o treino de Evan era rigoroso para um cavaleiro, pois a resistência física, Hyoga já possuía. O que lhe drenava as forças era o cuidado que precisava tomar a cada momento do treino, a tensão, a dúvida de não saber se seria aceito naquele meio.

Olhou para o peixe meio congelado sobre a mesa e teve preguiça de cozinhá-lo. Era mais cômodo para ele dormir sem comer nada e deixar a refeição ao dia seguinte. Mas sabendo que não resistiria aos exercícios físicos sem alimentar-se devidamente, levantou-se e colocou mais lenha no forno, que já deixara pré-aquecido. Fazendo uma breve comparação à vida nas cidades, notou que podia muito bem ficar mais estressado naquele pacato povoado.

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Charis progredia rapidamente nos treinos, permitindo a Hyoga dosar os exercícios de forma mais intensiva, quase chegando ao mesmo ritmo que o treinamento para cavaleiro de fato. Ele tinha acabado de dar-lhe um chute, que a mandara para longe, num contra-ataque básico. Apesar de ser apenas o começo, não dava trégua à discípula nos combates, atacando-a e incitando-a a continuar lutando, mesmo quando não havia mais forças.

“O que houve, Charis? Por que não me aplica um golpe? Não disse que queria ser forte?”

Ofegante, ela ergueu o corpo sobre os dois braços com o restante das forças.

“Por que não se defende? Já lhe ensinei como bloquear esses ataques. Quando atacar, pense nos contra-ataques que seu oponente pode dar, pense no ritmo de luta que ele tem para encontrar a melhor estratégia. Não basta usar força física.”

Ájax aproximou-se e pôs-se a observá-los em silêncio. No começo, achava que Hyoga era um professor demasiado rigoroso à sua garotinha, mas seus comentários eram simplesmente ignorados pelo cavaleiro. Vendo a velocidade do progresso de Charis, no entanto, aquietou-se e preferiu acompanhar o treino de perto, curioso para saber como tais resultados podiam ser alcançados.

“Observe a minha postura de defesa. Pense nos movimentos mais difíceis para mim, tente encontrar uma brecha. Vamos, levante-se.”

Obedecendo, Charis assumiu postura de defesa e observou-o atentamente, tentando seguir seus conselhos. Em seguida correu à volta e tentou atacá-lo de lado. A resposta de Hyoga foi rápida, com um soco que a atirou contra o chão violentamente.

“Não foi desta vez. Faltou equilíbrio seu na hora de aplicar o golpe, ficou vulnerável.”

Segurando o local em que fora atingida, Charis levantou-se novamente, agüentando a dor e evitando gemer. Já passara da hora do término do treino, mas ainda não queria desistir. Hyoga dava-lhe o tempo em consideração à tarde que perdia sob o comande de Evan, procurando ensinar o máximo possível.

Determinada, Charis avançou novamente, num movimento circular semelhante ao primeiro. Mas quando chegou ao ponto em que perderia o equilíbrio, apoiou uma das mãos no chão e deu um chute na perna de Hyoga, finalmente conseguindo atingi-lo. Apesar de a velocidade de Charis não ser comparável à dele, Hyoga colocava-se ao mesmo nível de luta e procurava ensinar principalmente estratégias de ataque e de defesa. Sabia que a velocidade e a força aumentariam gradativamente com os exercícios físicos que passava.

“Isso mesmo, Charis. Essa é uma das maneiras. Outra seria atacar por cima, o que seria complicado se o seu oponente fosse muito mais alto ou mais baixo que você. Mas nada impede que haja outras, dependendo de como o seu oponente é obrigado a mover-se.”

“Eu poderia atacar por cima, se utilizasse as asas.”

“Não. Ainda não quero que utilize as asas. É verdade que elas lhe dão uma ótima vantagem no combate, mas quero que aprenda a lutar no chão primeiro.”

“Por que, mestre?”

“Se um dia não puder utilizá-las, terá de lutar só com os pés no chão. Seria o seu pior ponto fraco.”

“Entendi.”

“Bem, já chega de luta por enquanto. Descanse um pouco para continuar com os exercícios depois. Treine golpes por duas horas, pense no que lhe ensinei hoje, tente aplicá-lo, imaginando a luta na mente. Depois corra, alternando com cem flexões cada volta. Faça isso até a hora em que meu treino termina. Conversaremos depois.”

“Certo, mestre.”

Embora estivesse cansada, Charis dirigiu-se a casa sem demonstrar fraqueza, inundada de vontade de continuar. Ájax aproximou-se e acompanhou Hyoga até seu quarto, onde já havia o almoço pronto.

“Seu treino é completamente diferente do nosso. Geralmente nossos homofalcos são treinados com técnicas de grupo, mas você a está treinando para lutar individualmente. É o treino dos cavaleiros?”

“É, numa escala menor. Geralmente é mais rigoroso, mas estou aumentando o ritmo para Charis. Ela está se acostumando bem ao treino, acho que logo a farei treinar exatamente como os cavaleiros.”

“Está querendo formar uma amazona de Athena?”

“Não. Estou ensinando a ela o que sei, Ájax. Se fosse para ser uma amazona de Athena, Charis teria de usar uma máscara para ocultar o rosto, pois essa é a lei do Santuário. Por enquanto, estou apenas sendo o que disse que seria. Um mestre de combate. No futuro, Charis será uma grande guerreira dos homofalcos ou uma amazona de Athena. E essa decisão depende unicamente dela.”

“Entendo. Deixará por conta dela.”

“Se ela quiser servir Athena no futuro, nada a impedirá. Como mestre, tenho a obrigação de dar-lhe meu total apoio.”

“Você tem sido bom para ela. Charis está animada com a possibilidade de ser mais forte. Ela sempre foi muito traumatizada com a morte da mãe.”

“Essa é uma lição que será mais complicada de ensinar. Mas… Por enquanto, ainda não é tempo de cuidarmos disso. Preciso comer agora, Ájax, tenho o meu treino também.”

“Eu sei. Não se importe comigo, vá em frente. Queria saber uma coisa de você. O que achou do treino de ontem?”

“Bem, é a primeira vez que fiz algo do tipo. Não sei se estou fazendo o que é certo para conquistar a confiança dos soldados, mas espero sinceramente que dê certo.”

“Nenhum comentário adicional a fazer?”

“Não.”

Ájax pareceu um pouco decepcionado, mas sorriu e não pressionou mais.

“Está bem. Deixarei que coma em paz.”

Deixado sozinho, Hyoga estava mais interessado em conhecer outros homofalcos que analisar seus problemas e virtudes durante a guerra. Podia observá-los claramente durante o treino, reservando os comentários para quando fosse necessário. Ájax, por sua vez, queria saber dos comentários profissionais que Hyoga teria para tornar seus homens mais fortes.

Ao terminar de comer, levantou-se e quitou a túnica, apesar do frio. Sabia que levaria mais golpes naquele dia, pois o chicote era a forma de repressão favorita de Evan. Tal método podia incitar os jovens a esforçarem-se mais para não se machucarem, mas era desaconselhável em sua opinião. Até então não precisou de um chicote para forçar Charis a treinar; bastava ensinar-lhe a ser perseverante. Mesmo assim, compreendia que aquele método era o escolhido por seu atual tutor e que não podia discutir ou recusar.

Saiu de casa e dirigiu-se ao campo de treino, onde todos se reuniam novamente. Ainda atraía olhares por ser novo, mas não pareciam ser tão reprovadores quanto no primeiro. Viu Otis no meio dos soldados, parecia mais animado que o dia anterior.

Evan chegou acompanhado de seus auxiliares, com o mesmo olhar ríspido de antes. Todos entraram rapidamente em formação, como se partissem para uma guerra.

“Deitem e esperem.”

Imediatamente, todos se deitaram de bruços, com os rostos próximos ao chão. Hyoga imitou-os, ainda sem compreender o propósito do exercício. No canto da visão, viu que os soldados voavam, carregando dezenas de pedras com cerca de cinqüenta centímetros de diâmetro. ‘Espero que não atirem essas coisas aqui embaixo’, pensou brevemente.

Contudo, os soldados desceram e pousaram em diversos pontos do campo. Hyoga tinha uma vontade enorme de levantar-se e aliviar o gelo que cobria o seu peito, que estava completamente desprotegido. Suas mãos, afundadas na neve, também começavam a doer.

Um dos homofalcos parou ao seu lado e depositou a pedra sobre suas costas, pressionando-o contra o chão. Logo ele compreendeu que o exercício seria fazer flexões suportando aquele peso. Para um guerreiro com cosmos, um exercício leve. Para alguém que não podia mais contar com seu poder sobre-humano, uma tarefa fatigante.

“Flexões. Até que eu mande parar. Já sabem que não aceitamos guerreiros que não sabem controlar seus cosmos. Queremos concentração e poder. Aqueles que não conseguirem, acabarão feridos. Comecem!”

Por ter uma resistência física avantajada, Hyoga conseguia manter o ritmo de suas flexões de forma satisfatória no começo. No entanto, a falta de cosmos que lhe desse a força necessária para manter o corpo firme logo o desgastou. Quando olhava para os lados, notava que muitos homofalcos que ainda não tinham despertado o cosmos falhavam, de forma que recebiam alguma punição que ele não conseguia ver.

À medida que se exercitava, notou que mais e mais homofalcos se cansavam, já que eram de baixo nível. Mesmo ele já não conseguia manter o ritmo que Evan queria impor. Logo, um dos soldados aproximou-se e adicionou mais um peso nas costas, piorando seu suplício. Para completar, quando Hyoga ergueu-se sobre os braços, uma pá de brasas foi jogada embaixo, de modo que ele se queimaria no peito e na barriga se cansasse.

“Não parem!”, gritou Evan. “Não quero ver essa moleza na frente de nossos inimigos! Querem que sua família morra por sua fraqueza?”

Apesar de rigoroso, aquele era um exercício eficiente para despertar o cosmos dos discípulos. Quando treinava com Camus, Hyoga era largado na neve, obrigado a suportar o frio siberiano apenas com o calor de seu cosmos. Comparado com aquilo, o exercício de Evan não chegava a ser tão perigoso. Seu dilema, no entanto, era ter o cosmos bloqueado pela corrente de Prometeu, exigindo-lhe o impossível.

Juntando toda a força restante, conseguiu suportar por mais um tempo, enquanto os que ainda não tinham despertado o cosmos desistiam e se queimavam. Mesmo com toda a resistência, próximo ao fim do exercício, seus braços falharam e ele caiu sobre a brasa, queimando-se tanto que o carvão grudou-lhe na carne. Desesperado, rolou na neve e livrou-se das brasas. Mal recuperou o fôlego do susto e os soldados arrancaram-no do chão, arrastando-o para uma área onde os que falhavam eram castigados.

Evan sorriu-lhe quando ajoelhou na neve para levar as chicotadas, como se alcançasse uma vitória. Por um momento, Hyoga achou que ele comentaria algo, mas apenas o observou, satisfeito. A cada golpe, o homofalco olhava-o como se fosse explodir numa ruidosa gargalhada, que afinal não saiu. Ao terminarem os dez golpes estipulados, agarraram-no pela corrente e jogaram-no num canto onde os demais se encontravam caídos.

Enquanto se recuperava da dor, Hyoga notou que os homofalcos mais próximos observavam-no curiosos, talvez se perguntando como um cavaleiro não resistira a tal exercício. Conferindo a expressão de alegria de Evan, sentiu que aquele treino fora feito especialmente para que ele se desse mal, pois o homofalco sabia que ele não podia utilizar o cosmos.

Ao anunciar o final do exercício, Evan separou a turma entre os que falharam e os que lograram, distribuindo lanças com pontas cegas para todos.

“Agora esses incompetentes terão de atacar o grupo dos vencedores. Terão de trabalhar juntos, de forma que pelo menos um deles consiga chegar ao lado oposto, tocando a parede de gelo. Precisam aprender a lutar contra inimigos mais fortes, imbecis. Quem falhar levará mais punição! O uso do cosmos está liberado! Vão!”

Um grito de guerra foi proferido, ao mesmo tempo em que as lanças foram brandidas. Na confusão de armas, Hyoga chocou-se contra os inimigos, distribuindo golpes certeiros e detendo o seu avanço. Mesmo assim, notou que a desorganização do grupo impedia a vitória e que alguém precisava assumir o controle da situação. Ainda não possuía o respeito dos colegas e sabia que qualquer ordem sua seria facilmente ignorada.

Talvez não conseguisse lograr naquele exercício, mas realmente desejava fazer alguma diferença. Decidiu então impor o respeito por sua força e pôs-se a lutar com tanta fúria que logo conseguiu avançar sobre os inimigos, apesar da falta de cosmos. Embora seus inimigos possuíssem um pouco de cosmos, ele tinha a experiência que os anos de luta tinham lhe proporcionado.

Quando os outros perceberam como ele conseguia avançar, seguiram-no, iniciando uma investida furiosa e que lentamente se aproximava do centro do grupo inimigo. Percebendo que seriam engolidos daquela forma, Hyoga começou a atacar os que estavam do lado, abrindo o campo de seu time. Contudo, os homofalcos iniciaram ataques de cosmos, que logo se mostraram superiores aos seus companheiros.

O movimento da batalha inverteu-se, e logo eles passaram à defensiva. Obviamente que não conseguiriam vencer. Os golpes de cosmos, aliados às lanças, arrancavam sangue dos mais fracos, que não tinham como evitar os furiosos golpes. Quando mais de um terço já não tinha mais forças para combater, Hyoga decidiu que ao menos cairia protegendo-os. Passou a combater com o intuito de desarmar os inimigos e defender seus colegas, evitando vários golpes por toda a linha de frente.

Ao mesmo tempo em que os protegia, não podia evitar os ataques que ora o acertavam e o machucavam tanto que logo estava coberto de ferimentos. Seus esforços, no entanto, mostravam resultado, incentivando-os a resistir o ataque. Irritados com sua resistência, muitos homofalcos passaram a concentrar os ataques nele, ferindo-o mais ainda. Contudo, gratos por sua defesa, os homofalcos de seu time reagiram e lutaram para apoiá-lo.

Finalmente desenvolvera o espírito de equipe no time, e Hyoga pôde atacar novamente, sempre defendendo os companheiros. Por um momento, até acreditou que poderiam vencer daquela forma, mas a diferença de poder era demais para que ele pudesse chegar ao lado oposto. Com a queda do último aliado ao seu lado, a chuva de ataques derrubou-o violentamente.

‘Talvez eu seja um idiota’, pensou, enquanto agüentava os golpes, ‘mas um guerreiro precisa ir até o fim, mesmo sozinho’. Levantou-se, mesmo ferido, já sem sua lança, e continuou a combater com as mãos nuas, recebendo ataques por todos os lados. Seu esforço rendeu a queda de mais dez guerreiros, surpreendendo-os, antes de cair inconsciente.

—————————————————————

Um banho de água gelada despertou-o repentinamente, sob a voz irritada de Evan.

“Acorde logo, soldado!”

Desnorteado, viu-se cercado dos soldados. Seus companheiros já eram chicoteados num canto, gemendo.

“Você perdeu! Perdeu e manchou a honra de seu grupo. Como o último soldado, devia ter reunido o desejo de vencer de seu time e ter vencido! Inútil! Ajoelhe-se para levar o castigo. Quero o dobro nele!”

Hyoga obedeceu, mesmo atordoado, e deixou que o chicote estalasse continuamente sobre ele, suportando a dor sem emitir um único gemido. Os homofalcos observavam-no estarrecidos diante de tamanha força de vontade, pois eles mesmos não agüentavam tantas chicotadas em silêncio.

Todavia, os exercícios e os ferimentos tinham lhe drenado tudo. Quando Evan anunciou o término do treino, Hyoga caiu na neve, sem forças, com coberto de ferimentos. Não havia forças sequer para levantar-se. Achava que teria de esperar até mais tarde para conseguir voltar para casa, mas notou que muitos homofalcos que protegera no combate permaneceram ao seu lado. Otis, o amigo do dia anterior, sorria-lhe.

“Você é um sujeito impressionante, Hyoga. Eu estava no time adversário e cheguei a pensar que morreria com você liderando-os.”

“Você está bem? Precisa de ajuda para voltar?”

Hyoga ainda tentou levantar-se, mas caiu novamente, esgotado.

“Desculpem… Não posso mais levantar…”

Imediatamente, foi erguido gentilmente pelos companheiros, e Otis fez questão de servir-lhe de apoio.

“Sem problemas. Você nos ajudou, agora é a nossa vez. Vamos.”

Com a ajuda dos companheiros, o cavaleiro finalmente sentia que conquistava o seu objetivo aos poucos. O caminho até sua casa foi tranqüilo e Charis já o esperava na porta quando chegaram.

“Mas… O que aconteceu?!”

Otis sorriu-lhe.

“Não se preocupe, ele logo vai melhorar. Vamos deixá-lo na cama. Cuide do resto.”

Chocada, Charis fitou as costas fustigadas pelo chicote e os inúmeros ferimentos de seu mestre. Correu e pegou o remédio, perguntando-se se havia suficiente para tantos ferimentos. Hyoga gemeu baixo e fitou a discípula, envergonhado.

“Devo ser motivo de piada para você, sendo tão fraco.”

“É mais forte do que eu. Do que posso rir, mestre?”

Hyoga sorriu debilmente e fechou os olhos, cansado. Em menos de cinco minutos, dormia, sem se importar com Charis, que lhe limpava os ferimentos. Jamais esperava que a falta de cosmos o lançaria tão baixo na arte da guerra e o tornaria tão inútil. Por mais que se esforçasse, não estava à altura de um treinamento que o forçava a ter algo que lhe era proibido.

Condoída pelo estado do mestre, Charis desistiu de voltar para casa. Acendeu a lareira, cobriu-o com o cobertor e observou-o cuidadosamente. Àquela altura do treino, quando já estava aprendendo o conceito de cosmos, sabia que a corrente de Prometeu tornava Hyoga um homem comum sem poderes. No treinamento de Evan, somente aqueles com cosmos poderiam chegar ao final sem graves ferimentos, e seu mestre começava a descobrir como aquilo estava longe de seu alcance.

Nas ruas, ouvia falar que Hyoga era um fracasso como cavaleiro. Entre os amigos, Evan ainda era o senhor supremo das guerras na terra dos homofalcos; por vezes os ouvia ridicularizando o homem que lhe ensinava com tanto empenho. Ainda não sabia se o seu treino era melhor ou pior comparado ao dos demais, mas sentia que morreria se Hyoga lhe passasse mais exercícios.

Sentou-se no canto do quarto, no chão, ainda se perguntando por que sua decisão por Hyoga era tão desprezada. Até então, nenhum comentário falso fora-lhe dado, nenhum momento de desleixo. Provavelmente era um guerreiro mais experiente que Evan, por possuir mais cicatrizes de batalha.

Exausta do treino do dia, caiu para o lado e dormiu ali mesmo, confortada pelo calor da lareira.

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