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Autora: Nemui
Fandom: Saint Seiya
Gênero: drama, aventura
Classificação: 16 anos
Status: Completa
Resumo: A vida de Hyoga se transforma quando entra em contato com um mundo completamente diferente do seu.
Apesar do abalo da punição de Athena, Hyoga forçou-se a agir normalmente nos dias seguintes, na ajuda com o trabalho das estufas e na conquista gradual da confiança do povo. Retomou também a escrita do livro, que lhe proporcionava algumas horas de distração e o fazia esquecer-se momentaneamente de seu novo destino.
Como resposta à carta de Athena, não questionou sua punição. Sabia que não seria justo sair impune depois de desobedecer ao Santuário, mas expôs sua preocupação quanto aos ensinamentos de Camus e a possibilidade de não participar mais em missões a serviço de Athena. Com cuidado, pediu que ela o chamasse sempre que sua vida corresse perigo, ao invés de abstê-lo de suas obrigações como cavaleiro. Colocou ainda a possibilidade de treinar garotos homofalcos para serem cavaleiros e se aquela era uma saída válida. Por fim, pediu perdão pelos atos impensados e assegurou-lhe que protegeria a terra dos homofalcos até a última gota de sangue, sempre obedecendo às suas leis.
Ainda não sabia que tipo de resposta teria com aquela carta, mas escrevê-la afirmou em sua mente aquilo que seu coração teimava aceitar: nunca mais voltaria a Kohotek. A dor latente persistia, a despeito de sentir-se cada vez mais integrado à terra dos homofalcos.
Naquele dia, consertava parte da parede de uma das estufas, como um serviçal discreto cujo trabalho só faria diferença a alguém se não fosse feito. Já terminava, quando Charis veio correndo e agarrou-lhe o braço.
“Hyoga!”
“Algum problema, Charis?”
“Não… É que papai fica preocupado quando me aproximo de você. Queria aproveitar hoje que ele saiu para ajudar nas buscas de Aure.”
“Ele ainda não confia totalmente em mim. Quer falar sobre algo?”
“É verdade que decidiu morar aqui para sempre?”
“Sim… É verdade. Mesmo que o cristal fique azul, continuarei a morar aqui, com vocês. Gostei desta terra e decidi que era melhor ficar.”
“Que bom… Estou tão contente…”
Hyoga sorriu e continuou a martelar a madeira. Havia do lado uma grossa placa de vidro, que cuidadosamente encaixou no sulco que esculpira na tora. Em seguida, concluiu o trabalho ao pregar uma ripa que fixava o caixilho. Depois daquilo, restaria uma tarde de descanso, pois o ferimento causado pela corrente no pescoço sangrava e soltava pus.
“Charis, por que veio aqui?”
“Na verdade, queria conversar a sós com você. Pode vir comigo?”
“Às ordens.”
De início, achava que não era nada além de um momento infantil, regado de inocência. Charis corria pela neve e alçava pequenos vôos, fazendo gracejos com suas asas. Hyoga a seguia pacientemente, até onde sua corrente permitia. Quando chegou ao limite do rio, o qual não podia atravessar, parou.
“Charis, aqui é o meu ponto final. Se Ájax perceber que passei desse ponto, puxará a corrente de Prometeu.”
Ele tinha descoberto aquilo quando um dia acidentalmente afastou-se demais da cidade e o cosmos de Ájax comandou a corrente a puxá-lo violentamente para trás, derrubando-o na neve. A dor na garganta fora tão forte que tossiu por mais de uma hora, com a sensação de asfixia. Seus braços e pernas já apresentavam os esperados ferimentos nos grilhões, deixando-o mais receoso de levar outro tranco.
“Tudo bem, aqui ninguém nos ouve.”
“Então, qual é o grande segredo?”
“Sabia que um dia serei a líder dos homofalcos?”
“Seu pai já me contou sobre isso.”
“E como líder dos homofalcos, preciso aprender a ser igual ao meu pai.”
“Sim, é o que ele espera de você. E é o que deseja, não é?”
“Sim… Acho que sim. Mas ser o líder dos homofalcos é muito difícil, muito. Tem que saber cuidar das plantações, da caça, da pesca, de todos os trabalhos manuais, até da defesa da terra… É muito difícil.”
A educação que Charis recebia era consideravelmente diferente em relação à das demais crianças. Sempre acompanhava o pai e recebia aulas especiais para tornar-se a líder. Hyoga achava puxado demais a uma criança, mas admitia que Charis não era como as outras.
“Mas você já está sendo educada para isso. Tenho certeza de que seu pai está cuidando de tudo com bastante eficiência.”
“Só há uma coisa que ele ainda não começou.”
“E o que é?”
“A lutar. E agora ele me disse que preciso começar a treinar luta para defender o nosso povo.”
O rumo daquela conversa estava desagradando Hyoga. Não imaginava como Charis se daria na arte da guerra desde tão cedo. Mesmo assim, admitia que os melhores guerreiros iniciavam o treinamento naquela idade.
“Bem, Evan pode ser rigoroso, mas ele vai ensiná-la bem.”
“Meu pai também quer que eu aprenda com Evan, porque é mais rigoroso. Mas disse que eu poderia escolher qualquer um que soubesse lutar bem… Há muitos homofalcos que lutam bem… O Evan, o Myles, o Achilles, o Damon… Todos eles sabem luta e são muito gentis comigo. Mais não sei escolher… Meu pai me contou que você é um cavaleiro de Athena…”
“Você quer saber quem eu acho mais indicado a você? Precisaria vê-los lutando para saber, Charis.”
A menina olhou para baixo, incerta, mas logo levantou o olhar.
“Não… É que os livros dizem que os cavaleiros de Athena são os guerreiros mais fortes do mundo… Eu queria o melhor para proteger nossa terra de tudo e de todos… Eu queria que você me ensinasse!”
Surpreso, Hyoga de imediato sentiu que aquela idéia era inconcebível. Para ele, não era problema surrar um garoto que estivesse treinando, mas com certeza hesitaria diante de uma garotinha. Em seu silêncio, Charis aproximou-se e segurou-lhe o braço de novo.
“Por favor, Hyoga! Meu pai não pode negar o meu pedido porque você luta bem. Eu não quero aprender com os outros, quero que você me ensine!
“Charis…”
“Eu prometo que serei uma boa aluna…”
“Seu pai me mataria se chegasse com um pedido desses, Charis…”
“Ele me deu a palavra, Hyoga! Ele não pode fazer nada se escolhi você.”
“É que… É complicado. Não acho que seria um bom mestre para você. Além disso, jamais ensinei.”
“Mas eu sei que você pode! É o melhor! Por favor, Hyoga, por favor!”
“O que seu pai acha de mim?”
“Ele… Ele diz que você não é mau. Que sabe respeitar os outros… Por favor, Hyoga, é muito importante para mim ser uma líder para os homofalcos…”
“Mas por que eu, Charis? Evan pode ensiná-la bem, Myles também. Mesmo o seu pai. Tenho certeza de que será tão forte quanto ele.”
“Ele é um fraco!! Ele deixou a minha mãe morrer!”
Atônito, ele não sabia o que responder. Charis já estava quase desistindo, com os olhos molhados de frustração. Incerto, Hyoga considerou como seria um treinamento com a pequena: imaginava até onde iria, se acabaria com uma amazona, uma guerreira pontual ou uma inimiga do Santuário. Por mais que pensasse, era impossível discernir o provável futuro de Charis em suas mãos.
Seu silêncio provocou enfim as lágrimas da garota, que se sentou à sua frente.
“Eu não quero ser fraca… Não quero que ninguém morra mais…”
Sensibilizado, sorriu-lhe e tentou animá-la, sem lhe alimentar as esperanças.
“Charis… Não é nem um pouco fraca. Se tem vontade, nenhum mestre poderá conter o seu poder se tiver o mínimo de instrução. Além do mais, há algo que não lhe contei a respeito de minha permanência.”
Charis enxugou as lágrimas e ele apoiou a mão em sua cabeça, gentil.
“Juro a você. Quando for a líder, serei seu leal servo.”
Recebeu um olhar indagador como resposta. Provavelmente Charis sabia que ele era jurado de Athena, que era prioridade sobre os homofalcos.
“Athena mandou-me ser o protetor desta terra a partir de agora. Foi por isso que resolvi ficar permanentemente. Ela disse de forma clara, que era uma ordem que eu devia obedecer para sempre. Ser o cavaleiro protetor dos homofalcos, obedecendo sempre aos seus líderes e leis, enquanto forem leais à deusa. Por isso, pode ter certeza de que terá sob o seu comando um dos guerreiros mais apaixonados de Athena.”
Era estranho à pequena ouvir tais palavras de um prisioneiro acorrentado e submetido ao chicote. Por um momento, Hyoga achou melhor limitar-se à sua condição e buscar ele mesmo uma solução diplomática.
“Falarei com seu pai a respeito do treino. Ainda há alguns assuntos pendentes quanto à minha situação que me impede ser seu mestre. Não é como se não quisesse ser. Venha, vamos voltar.”
Ofereceu-lhe as costas, e Charis hesitou a subir. Sabia que ele ainda estava ferido, mas Hyoga lançou-lhe um olhar tranqüilo, assegurando-lhe que não havia problema algum. Ergueu-a gentil e retornou à cidade, onde a deixou em casa, dado o fato de tratar-se da filha de seu líder. Retornou consternado à sua, sem saber que caminhos o futuro lhe abriria naquela nova vida, e que destino teria Charis se se aproximasse mais dele.
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Desde que começara a trabalhar nas estufas, a constante movimentação tornara os ferimentos da corrente mais profundos, incomodando-o mais que as chicotadas, que já cicatrizavam. Mesmo que não precisasse mais de cuidados com as costas, os cortes dos grilhões eram tão feios que Eleni prosseguiu o tratamento, consentida por Myles.
Molhava o pescoço de Hyoga, que estava sentado apoiado ao encosto da cadeira de costas para ela, tentando limpar a carne exposta, quando Ájax entrou no quarto com um envelope em mãos.
“Hyoga, a resposta de Athena chegou.”
“Ah… Espero não receber outra ordem da deusa.”
Eleni também estava curiosa com o conteúdo da carta, que viera de forma extensa, com mais de duas páginas. Enquanto Hyoga lia, Ájax aproximou-se e observou os ferimentos, como se fosse um médico. Pediu licença, agarrou o grilhão do pescoço e puxou-o para baixo, revelando o pus de uma área que não era limpa. Hyoga gemeu e encolheu o pescoço, mas o líder empurrou-lhe a cabeça com uma das mãos, impedindo-o e deixando o machucado à mostra.
“Isto é perigoso, Eleni. Esses machucados dos grilhões não podem ser limpos tão superficialmente. Se infeccionar, ele morrerá. Conheço bem os efeitos da corrente, pois já a usei por dois meses. Meu pai forçou-me a isso, para saber como tratar os prisioneiros. Juro, quase morri por causa desse corte. Não imaginei que fosse ficar assim tão rápido. Hyoga, você tem trabalhado demais.”
“Mas é a demanda”, respondeu o rapaz, parando de ler por um instante, “as meninas precisam de ajuda a toda a hora.”
“Se atender a todos os pedidos das mulheres, enlouquecerá. Seu ferimento pode infeccionar e esse do pescoço é o mais perigoso. Vou mostrar-lhe como lavá-lo.”
O ungüento escorreu generosamente sobre o ferimento, e Ájax passou o chumaço de algodão sobre a carne, retirando o pus. Com a outra mão, segurava a nuca de Hyoga, que reagia à dor e tentava retrair o pescoço.
“Não dá para ser sutil quando se trata desses ferimentos. Segure-o com força e não tenha dó de passar o algodão sobre a carne. Precisa limpar bem, sem ter pena, porque senão o sofrimento será dez vezes pior; digo por experiência própria. Depois disso, passe um pouco de óleo por toda a superfície, vai atenuar o atrito dos grilhões.”
“Não é mais fácil deixar esses grilhões um pouco folgados, Ájax? Assim não ficará tão machucado.”
“Hefestos não criou essa corrente para o conforto do prisioneiro, Eleni. Faria com todo o prazer se pudesse, mas infelizmente não posso deixar os grilhões mais folgados, somente mais apertados.”
“E não pode tirá-los?”
“Hoje verei se podemos tirar os grilhões. Espero que sim.”
A idéia surpreendeu Hyoga, que o fitou, curioso.
“Agora que você não pode mais sair da terra dos homofalcos, ou seja, já é praticamente um dos nossos, resta saber o quão confiável é, Hyoga. Não há sentido manter um cavaleiro com a missão de proteger-nos se ele não pode invocar o cosmos. Nos últimos dias andei pensando, e acho que preciso resolver alguns assuntos com você. Mas antes, o que diz essa carta tão longa? Há tantos caracteres desconhecidos, não é grego.”
“É japonês, outra língua que a deusa Athena e nós conhecemos. É da época em que o Santuário estava sendo dominado pelo grande mestre e nós não sabíamos que ela era Athena, mas ainda assim a seguíamos. Ela a utiliza remetendo à nossa relação daqueles tempos, em que éramos simplesmente amigos, sem hierarquia ou códigos de conduta. Não é apenas isso. Há cartas dos meus amigos também, por isso é extenso. A parte profissional, em grego, está aqui. Diz que consente o treinamento de homofalcos e que não há distinção de raça para o posto de cavaleiro de Athena. Entretanto, Athena remarca a observação que já lhe fiz, Ájax. Esse homofalco precisa entender que protegerá toda a humanidade, não apenas os homofalcos.”
“Entendo… Bem, considerando que você é o nosso guardião a partir de agora, é justo que também doemos asas à humanidade.”
“Há outra coisa, também. Não tem relação com a carta. Charis procurou-me, dizendo que você deseja que ela aprenda a lutar.”
“É natural, não? Afinal, um dia terei de passar meu posto para ela, que é minha única herdeira. A filha do líder é exceção, ela pode participar da vida política. Além disso, mulheres podem ser treinadas na arte da guerra se assim desejarem.”
“E você deu-lhe permissão para escolher quem desejasse como mestre.”
“Sim, dei-lhe esse direito, já que impus o dever do treino. Não me diga que ela…!”
“Vejo que não preciso dizer mais nada. Mas quero perguntar-lhe e peço que me honre a palavra e diga com toda a verdade.”
“Eu juro, cavaleiro.”
“Não a induziu para pedir-me isso, induziu?”
“Eu juro que não! Estou tão surpreso que o tenha escolhido! Se soubesse, teria proibido escolher justo você, Hyoga!”
Hyoga fitou-o seriamente. A expressão de surpresa no rosto do líder indicava tratar-se de um ótimo ator ou de fato expressava a verdade. Não sabia como resolver aquele impasse, agora que tinha a permissão de Athena para treinar homofalcos.
“Não lhe respondi, mas jurei-lhe lealdade quando ela assumir o seu posto, de acordo com a vontade de Athena. Mas isso já é óbvio, pois teria de fazê-lo mesmo se não quisesse. A ordem de Athena foi bem clara, preciso obedecer aos líderes dos homofalcos até a morte. Mas fiquei dúbio quanto ao treino… devo obedecê-la… Só que há muito mais envolvido no assunto, é delicado. Devo treinar uma guerreira ou uma amazona? Uma protetora dos homofalcos ou uma serva de Athena?”
“Fez bem em não decidir. Conversarei com ela e tentarei explicar-lhe a situação. Mas… Eu dei a minha palavra. Se Charis ainda assim o desejar, Hyoga, você terá de treiná-la por obrigação. Voltarei mais tarde para resolver mais alguns assuntos. Não trabalhe hoje, procure descansar o corpo. Não deve subestimar esses cortes.”
A saída de Ájax atraiu a curiosidade de Eleni, que continuava a limpar-lhe os ferimentos, agora nos braços. Hyoga sentou-se direito na cadeira para facilitar-lhe o trabalho.
“Tudo está acontecendo tão rápido para você, não é? Faz duas semanas que saiu da prisão, mas é como se fosse uma eternidade.”
“Tem razão. É tanta coisa que fico até tonto. A mudança de minha vida… De repente, recebo uma carta e todo o destino é alterado como as metamorfoses da mitologia. Sou afastado de meu lar e ganho um novo. Perco a liberdade, viro um servo dos homofalcos, juro-lhes fidelidade a mando da deusa. Sou obrigado a receber tudo, de forma passiva. Sou só um servo de Athena, afinal. Mesmo assim… É difícil.”
“E essa carta com letras diferentes.”
“Dela e dos meus amigos. Deram-me a palavra que eu teria permissão para sair da terra dos homofalcos, caso Athena estivesse em perigo e quisesse participar das batalhas. E eles me acalmaram, desejando-me boa sorte em minha nova vida.”
“Que bom!”
“É… Estou mais aliviado assim. Embora não possa mais visitar Kohotek… Agora sei que não serei descartado por Athena, com uma missão que até agora se mostrou completamente desnecessária.”
“Acha mesmo que nos proteger é desnecessário?”
“Vocês sabem se proteger. Ájax tem cosmos, muitos de vocês têm. São guerreiros fabulosos, não precisam da proteção de um cavaleiro de Athena.”
“Está enganado, Hyoga. Os homens que seqüestraram Aure não são simples humanos. Geralmente são servos de Prometeu.”
“Prometeu? Por que ele faria isso? Por causa da corrente? Ele é protetor dos humanos.”
“Sim. Humanos. Mas esqueceu, Hyoga? Não somos humanos, somos homofalcos. Dizem que Prometeu é aquele que pensa antes de agir. Parece que ele deseja impedir nossa raça por algum fato que ainda há de ocorrer. Ájax treina homofalcos poderosos, mas todos são mortos pelos servos de Prometeu.”
“Não sabia disso. Mas tudo tem estado tão calmo, com a exceção do seqüestro de Aure.”
“Ele não ataca sempre. Mas quando ataca, não sossega até que vários homofalcos morram. O pai de Ájax foi morto por um servo dele. Há muitas histórias de batalha entre nós e Prometeu, Hyoga. Histórias que o deixariam arrepiado de medo.”
“Prometeu… Então a partir de agora, ele é também o meu inimigo, mesmo sendo um humano.”
“Isso mesmo. Até agora, o Santuário tem nos dado pouca ou nenhuma ajuda. Esta é a primeira vez na história homofalca que um cavaleiro é designado para proteger-nos. Não percebe como Ájax o respeita, mesmo sendo um humano? Não vê como ele quer que permaneça conosco?”
“Não imaginava… Agora entendi. Prometeu nunca exterminou os homofalcos por completo, não é?”
“Não. Ele sempre nos mantém oprimidos, para evitar que cresçamos. Mas nas últimas décadas, seus ataques ficaram gradativamente mais agressivos. Pedimos ajuda ao Santuário, tantas vezes… Mas eles quase nunca dão… Só começamos a receber uma resposta mais direta depois que Athena assumiu o total controle da situação. Agora ela nos deu você…”
“Com a missão de servi-los… Athena também é deusa protetora dos homofalcos, afinal. Entendi… A punição de não poder mais sair da terra dos homofalcos tem fundamento, afinal. Geralmente cada cavaleiro recebe uma área de influência para cuidar. A minha era o continente asiático, junto com um amigo. A maioria permanece no Santuário, na Grécia, que funciona como uma central. Aonde há problemas, são enviados cavaleiros com a missão de restabelecerem a paz. No total, há 88 cavaleiros de Athena, trabalhando pela paz na Terra. Achava que me aprisionar neste pequeno pedaço de terra era uma idiotice, uma desculpa para tornar-me um inútil.”
“Hyoga…”
“Mas destacar um único cavaleiro exclusivamente para proteger os homofalcos não é apenas uma necessidade, já que Prometeu é o inimigo. É também uma forma de Athena colocar-se como soberana na Terra, discordando dos atos de Prometeu. Aliás, se os inimigos forem muito poderosos, mesmo eu não serei suficiente.”
“E você… Vai mesmo nos proteger? Eu sei que detestou ficar confinado em nossas terras, eu sei que quer voltar à sua casa…”
O rapaz sorriu-lhe tranqüilamente e assentiu com a cabeça. Sabia que lhe parecera afoito no dia em que recebera a carta de Athena que anunciava o seu castigo vitalício.
“Vou, mesmo que eu morra. Agora este é o meu lar, e vocês são o meu povo. Por enquanto, nada posso fazer com a corrente de Prometeu, mas mesmo assim lutarei por vocês. Prometo que darei o melhor de mim para servi-los como merecem, de acordo com o desejo de Athena.
Eleni fitou-o esperançosa e ajoelhou-se. Segurou a mão que acabara de tratar, beijou-a num silencioso agradecimento e prosseguiu o tratamento. Talvez Hyoga trouxesse dias melhores aos homofalcos, que tantas vidas perderam diante da ira do deus dos homens.
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Ájax retornou mais tarde como prometido, carregando o cristal e uma pilha de livros antigos. Hyoga escrevia seu livro, não tendo outro passatempo sem trabalhar. Estava sentado à mesa, relembrando tudo que aprendera de grego antigo, que não era uma língua que dominava tão bem quanto russo e japonês, apesar de falá-la fluentemente devido aos ensinamentos de Camus e ao convívio com soldados no Santuário. O grego dos homofalcos era consideravelmente diferente, mas não impedia a comunicação com aquele povo.
“Trouxe mais diversão para você. Agora que é o representante do Santuário em nossas terras, dou-lhe permissão para conhecer a literatura referente às nossas guerras. É até bom que saiba, se tiver de lutar por nós no futuro.”
“Eleni contou-me sobre Prometeu… Eu… devo desculpas a vocês, Ájax.”
“Por quê?”
“Por achar que ser o guardião de vocês era uma missão totalmente inútil por parte de Athena. Agora vejo que não é bem assim.”
“Nunca estranhou o fato de sermos tão militarizados?”
“Achava que fosse só por cultura… Patético, não?”
“Talvez, mas não sem lógica. Posso tomar-lhe a atenção por um momento? Gostaria de explicar mais sobre as propriedades do cristal dos homofalcos.”
Largando a pena, Hyoga viu o cristal ser colocado à sua frente, cuidadosamente. Já o vira em tão diversas ocasiões que até tivera pesadelos com ele, tantas eram as vezes que recebera a luz vermelha como resposta. Com uma expressão angustiada, observou:
“Não quero tocá-lo mais, Ájax… De que adianta obter uma cor azul se não posso mais deixar a terra dos homofalcos? Já dei a minha palavra, ficarei aqui até a morte.”
“Sabe de uma coisa? Provavelmente será azul. Vamos, toque-o.”
“Realmente não quero.”
“Obedeça-me.”
Por estar preso ao juramento de obedecer a Ájax, Hyoga acatou a ordem e tocou. E a cor com que tanto sonhara floresceu abundantemente.
“Eu sabia. Quando não preciso mais…”
“Não, Hyoga, não é isso. O brilho azul possui um significado, que é bem simples. Você é um cavaleiro extremamente honrado.”
“Como assim?”
“O cristal não precisa mais vetar-lhe a saída, porque você deu a palavra de que não o faria. Como você é um cavaleiro honrado e justo, o cristal assegura que não há problema em permitir-lhe a saída. Mesmo assim, não sairá.”
“Quer dizer que meu futuro é mesmo aqui, que vou morar com vocês até meu último segundo. Já jurei isso, por mais que me doa. Não precisa reafirmar uma verdade tão difícil para mim.”
“Desculpe tocar-lhe na ferida, mas preciso reafirmá-la. Seu destino, cavaleiro, foi regido pelo cristal. Você não foi impedido de sair porque tinha em mente algum mal para nós, mas porque sua permanência era necessária para nós, suas técnicas de cavaleiro são importantes para nós.”
“Eu também já compreendi isso. Você já as tem, Ájax. Foi a vontade de Athena, e agora estou totalmente ao seu serviço.”
“Sim… Mas agora preciso confirmar outras coisas com você. Hyoga, sabia que o cristal tem outros poderes?”
“É mesmo? E quais?”
“Na verdade, ele não é um objeto que simplesmente diz se um humano pode ou não sair de nossas terras. Essa é só sua principal utilidade. Na realidade, ele é chamado Cristal da Verdade. É um artefato sagrado que revela apenas a verdade, guiando-nos segundo a proteção das deusas Ártemis e Athena.”
“Como assim, Ájax?”
“Na verdade, quando eu o utilizo com você, lanço meu cosmos ao seu interior, perguntando-lhe: este humano pode ter permissão para sair de nossas terras? Ele simplesmente responde sim ou não. Mas pode-se fazer qualquer pergunta do tipo sim ou não para ele, é como um pequeno oráculo.”
Surpreso com a revelação, Hyoga percebeu quão útil podia ser aquele cristal, dependendo de seu uso. Se outras perguntas fossem feitas, poderia revelar até mesmo planos de inimigos num interrogatório.
“Mas… Por que não o utiliza de outra forma, Ájax?”
“Ele não pode prever o futuro dos homofalcos, rapaz, apenas de humanos. Além disso, procuro ocultar todos os seus poderes dos humanos que aqui aparecem. Mas o seu caso é diferente. Agora que é morador de nossas terras, solicito um pequeno interrogatório, Hyoga. E a primeira pergunta é: este humano pode ser libertado da corrente de Prometeu? Toque-o.”
Inundado de esperança para livrar-se daqueles grilhões, Hyoga obedeceu. A resposta, no entanto, foi o vermelho que tanto odiava. Sem compreender, achou até que Ájax voltaria a desconfiar de sua integridade; contudo, o líder dos homofalcos não se mostrou surpreso.
“Eu já esperava por isso. Você perambular sem as correntes e com seus poderes desimpedidos causaria grande apreensão em meu povo… a ponto de causar uma guerra. Os soldados têm grande aversão a você, Hyoga, por ser humano. Eles são orgulhosos demais e acreditam que podem lutar sem a sua ajuda. A segunda pergunta é: este homem deve ser o mestre da futura líder dos homofalcos?”
A resposta desta vez foi azul, indicando que Charis oficialmente era agora sua discípula. Ainda surpreso com a última resposta, Ájax deu seqüência às perguntas.
“Este homem será sempre leal à sua palavra?”
A cor foi vermelha. Hyoga começava a ficar preocupado com aquelas respostas. Se continuasse a receber mais negativas, poderia acabar com grilhões em todos os centímetros do corpo. Ájax não parecia demonstrar raiva ou desconfiança.
“Este homem pode ter o cosmos liberado nas emergências?”
A resposta novamente foi azul, trazendo alívio ao rapaz. Ainda não contente, Ájax quis mais detalhes:
“Este homem pode ter o cosmos liberado permanentemente?”
Desta vez, o brilho foi vermelho. Hyoga não imaginava como seu cosmos podia causar problemas aos homofalcos, mas permaneceu em silêncio, esperando que Ájax terminasse. Este lançou a que seria a última pergunta.
“Este homem deseja algum mal ao meu povo?”
‘Se essa for vermelha, acho que me mato’, pensou Hyoga, tocando no cristal. Para o seu alívio, a luz foi azul. Ájax guardou o artefato, satisfeito.
“Como você é complicado”, comentou. “Tem bom caráter, mas é muito instável. Mas estou satisfeito com as respostas. Você ainda não aprenderá a controlar seus sentimentos tão cedo, mas… Não mais tenho desconfiança de suas intenções com o meu povo. É um bom homem, mas que demanda cuidados especiais.”
“O que pretende agora, Ájax?”
“Seguir de acordo com as respostas do cristal. Será o mestre de Charis, de agora em diante. Não terá permissão para andar sem a corrente de Prometeu, mas sei que posso confiar em você caso sejamos atacados. Nestas ocasiões, liberarei o seu poder. Já sanei as minhas dúvidas. E agora? Quer sanar as suas? Os livros que trouxe falam muito das batalhas dos homofalcos, de seus heróis e de seus desastres, todos são relatos verídicos. É um extenso material, muito mesmo. Está contente?”
“Mais ou menos. O futuro é uma incógnita, certo?”
“Sempre será. Não sei o que acontecerá com Charis sob os seus cuidados. Hoje de manhã, fiquei selecionando garotos que queriam ser cavaleiros de Athena. Contudo, não obtive muito sucesso; todos têm grande desprezo pelos humanos. Estou voando no escuro, cavaleiro, assim como você. Se sua presença é mesmo certa… Deixo nossos destinos nas mãos de Athena e rezo ardentemente para que tudo dê certo.”
Hyoga ainda sentia um vácuo em si, um buraco que não podia ser preenchido. Lutar pelos homofalcos era o certo, ser fiel a eles e aceitar sua punição também. Mesmo assim, a dor da mudança era inegável. Sensibilizado com a expressão de tristeza de seu novo súdito, Ájax tirou o cristal mais uma vez.
“Este homem voltará a lutar ao lado de seus antigos companheiros?”
Surpreso, Hyoga fitou-o. Ájax aguardava pacientemente que tocasse no cristal.
“É sua decisão tocar ou não no cristal.”
Se a cor fosse vermelha, sentia que seu espírito desmoronaria no mesmo instante. Contudo, queria saber a resposta. Tocou na superfície lisa do cristal, que respondeu fortemente no segundo seguinte. Um azul vívido, tão forte que qualquer um de fora pôde ver o brilho irradiado. Ájax sorriu.
“Parece que não será apenas uma vez. Athena manterá a promessa de chamá-lo quando precisar de seus poderes. Está satisfeito agora?”
“Obrigado, Ájax… Sinto-me mais tranqüilo assim.”
“Nenhum homem consegue desligar-se totalmente do passado, entendo como se sente.”
Terminando seu assunto ali, Ájax saiu, deixando-o sozinho. Hyoga continuou a fitar a mesa onde estivera o cristal, ainda com a última resposta em mente. Sim, ele voltaria a lutar ao lado de seus amigos. Contanto que ainda pudesse compartilhar aquele sofrimento, contanto que pudesse arriscar a vida para salvá-los nos momentos de dificuldade… Não se importava ser um servo dos homofalcos. Ainda era um cavaleiro de Athena.
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“Hyoga, mais terra!”
“Eu preciso que me ajude a transferir as mudas!”
Hyoga corria pela estufa, atendendo a todos os pedidos como um office-boy estressado. Depois de conquistar a confiança de todas as mulheres encarregadas das plantações, descobriu o verdadeiro significado de trabalhar como auxiliar das estufas. Carregava dois sacos de terra numa mão e uma pá solicitada anteriormente na outra. Após deixar cada encomenda em seu respectivo lugar, deparou-se com Seema, que o esperava com o carrinho cheio.
“É pesado, agüenta sozinho?”
“Pode deixar.”
Agarrou a barra de madeira e pôs-se a andar. Apesar de estar perfeitamente apto ao trabalho, foi ajudado por pena.
“Pobre de você, Hyoga… Não está ficando louco?”
“Não… Não muito”, sorriu. “Enquanto Eleni estiver fora, terei de lidar como puder. Mas prefiro trabalhar a ficar o dia inteiro sem fazer nada.”
Eleni, que acompanhava em casa os dias finais do choco de seu ovo, junto a Myles, faltara ao trabalho nos últimos dias, restando a Hyoga preencher seu lugar em meio aos pedidos cada vez mais extravagantes das homofalcas. Muitas vezes, precisava parar todo o trabalho porque uma lhe pedia para pegar o fertilizante que estava mais próximo a ela. Embora sentisse vontade de reclamar, Ájax deixara-lhe bem claro que estava a serviço de todos os homofalcos e devia-lhes pura e cega obediência.
“Mas fico feliz que tenha conseguido se adaptar. Elas adoram você, sabia? Algumas só querem ver sua cara quando pedem coisas.”
“Já notei isso. Por um lado, acaba comigo. Por outro…”
Seema riu e continuou a ajudá-lo, até a estufa que receberia as novas mudas. Levara-o até ali apenas para desafogá-lo um pouco da pressão das outras homofalcas, pois sabia que quanto mais ele se movia, mais profundos eram os ferimentos dos grilhões.
“Soube que vai parar de ajudar-nos.”
“É… vou começar a treinar Charis amanhã ou depois. Ela pediu que lhe ensinasse a arte da guerra para ser uma grande líder. Gozado, não é? Geralmente é Evan o treinador.”
“Não. Você é um cavaleiro de Athena, Hyoga, um guerreiro experiente. Acho que ela só queria o melhor.”
“Por causa da mãe?”
“Então você soube… Ela sempre diz que se Ájax fosse mais forte, Damara não teria morrido.”
“Eu me pergunto que tipo de líder ela será. Tem trauma dos humanos, tem um desejo incontrolável de ser forte… Nem sempre isso é bom, sabe?”
“Tudo depende do tipo de educação que der a ela. Apesar de você ser um humano, ela o escuta, Hyoga. Torne essa uma vantagem ao seu favor.”
“Obrigado pelo conselho. Vou segui-lo.”
Deixando o carrinho de lado, ambos se ajoelharam na terra e passaram a plantar as mudas, que aproveitariam o pleno verão para gerar frutos menos deficientes. Agricultura era uma atividade praticamente impossível na Sibéria, apesar de as estufas receberem o calor dos cosmos dos homofalcos e tornarem o clima parcialmente propício ao plantio. Em breve, seriam fatos não tão importantes na vida do cavaleiro. Seema parecia perturbada com a futura mudança.
“E… queria pedir algo a você.”
“Peça.”
“Você recebeu a missão de proteger-nos, não é verdade?”
“Sim. Foi o que Athena ordenou-me diretamente.”
“Vai cumpri-la?”
“É claro. Por que acha que treino todos os dias, antes de vir trabalhar? Sou fiel a Athena, cumpro meu dever ou morro. Mas por que todos questionam tanto sobre a minha promessa? Acham que não vou cumpri-la?”
“Não é isso. É que todos depositam uma esperança tão grande em você… Principalmente aqueles que… sofreram com os ataques. Pode ser que não signifique muito para você permanecer neste lugar, mas… É tudo para nós. Talvez… Se tivesse estado aqui naquela época…”
As palavras morreram, e Seema parou de mexer na terra.
“Seema?”
“Desculpe. Perdi a linha de raciocínio.”
“Queria me pedir algo?”
“Sim… Mas… Tudo bem. Esquece.”
Continuaram a trabalhar em silêncio. Ele, imaginando que tipo de pedido Seema teria; ela, perguntando-se se valeria à pena falar. As tensões à volta de Hyoga alteraram-se visivelmente desde que descobriram sua posição. Alguns acreditavam que ele traria a paz à cidade dos homofalcos, enquanto outros o achavam uma ameaça a ser mantida enclausurada. Após conquistar a confiança das homofalcas, a maioria passava a vê-lo como um salvador daquele povo, como se fosse um deus protetor ou até um amuleto da sorte. Não sabia se valia tudo aquilo, numa sociedade em que cosmos era utilizado para viabilizar a agricultura. Faria um cavaleiro grande diferença entre tantos guerreiros?
Quando terminavam, uma das homofalcas entrou correndo na estufa, chamando-os.
“Seema, Hyoga! Até quando vão ficar perdendo tempo? O filho de Eleni acaba de nascer, venham ver!”
“Minha deusa, que inveja!”, exclamou Seema, num salto. “Já estou indo! Vamos, Hyoga…”
Quando se tratava de cotidiano, a terra dos homofalcos pouco se diferenciava de Kohotek. Talvez por não ser considerada tecnicamente uma cidade ou uma vila. Era uma cidade por ser o único centro urbano do povoado dos homofalcos. Era uma micro-nação, oculta e protegida pela deusa Athena. Na prática, era um grupo de pessoas que tentavam sobreviver nas piores condições possíveis.
O povo reunia-se em torno da residência de Myles e Eleni, num falatório onde ninguém entendia ninguém. Ájax chegou voando por cima e entrou na casa, passando por todos. Logo em seguida, vários homens aproximaram-se trazendo duas renas, que permaneceriam ali até o dia seguinte. Seema, ao seu lado, explicou rapidamente:
“Amanhã Myles e Eleni farão uma festa para os amigos mais próximos, sacrificarão as renas, uma para Ártemis, outra para Athena. Veja, eles saíram!”
Hyoga esticou o pescoço na multidão, na tentativa de avistar o bebê. Pessoalmente nada lhe inspirava ver um recém-nascido, já que todos eram iguais. Mas estava curioso para ver como seriam as asas de um, pois imaginava pequenos tufos de penas partindo das costas, ainda minúsculos. Como o bebê estava enrolado num manto, não achou nada em especial. Perguntou-se rapidamente se agiria assim se tivesse um filho, pois sempre mantivera uma relação fria quanto a eventos como casamentos e nascimentos.
Seema estava radiante, assim como todas as homofalcas à sua volta. Rindo, as primeiras pessoas que viram o bebê partiam para prosseguir com seus trabalhos. Enquanto que a maioria dispersava-se após a agitação, Hyoga esperava para parabenizar Eleni e Myles, que desde o começo sempre foram os que mais o ajudaram a integrar-se à sociedade. Abraçou a amiga e viu o pequeno homofalco nos braços.
Ao contrário do que pensavam, não herdara de Eleni os cabelos loiros, sendo mais parecido com Myles. De perto, pôde matar sua curiosidade quanto às asas: já eram formadas, mas em menor tamanho, exibindo macias penas em tom marrom claro. Eleni bondosamente passou-o aos seus braços, ao lado do marido. O bebê não reclamou e aninhou-se ao peito do cavaleiro como se fosse seu próprio filho.
“Hyoga. Seu nome é Tibalt.”
“É um garoto forte”, sorriu.
“Sim. Vai proteger-nos bem quanto crescer. Espero que venha amanhã à comemoração, Hyoga, contamos com sua presença.”
A criança voltou aos braços de Eleni, sob as vozes de inúmeras pessoas. Hyoga deixou-os, pois ainda havia trabalho a fazer nas estufas. Aproximou-se de Ájax, mais atrás, de forma a afastar-se da multidão reunida.
“Você aceitou carregá-lo!”, comentou o surpreso líder dos homofalcos.
“Sim… Para sentir o peso da saúde.”
“Não entendeu? Foi o primeiro homem além de Myles que o carregou. Nem eu o toquei ainda.”
“Como assim?”
Hyoga logo notou que vários olhares dirigiam-se a ele, alguns com fúria. Notando que havia algo que não sabia a respeito daquele simples gesto, voltou-se a Ájax, com semblante de dúvida.
“Quando um bebê homofalco nasce, a mãe elege um homem que deverá ensiná-lo na arte da guerra quando completar sete anos. Esse homem tem o direito de aceitar ou negar, dependendo de seus interesses. É uma promessa que se faz sem palavras, mas que é cumprida sem falta. Só não acontece quando ele é morto antes de poder ensiná-lo… então a criança poderá escolher por si só. Por acaso está querendo roubar todos os meus garotos para transformá-los em cavaleiros?”
“Não sabia disso”, respondeu, chocado. “Poderia ter me avisado antes!”
“Se tivesse, aceitaria?”
“Não sei… Recusar seria considerado um ato de desprezo?”
“Sim. Significaria que você não o considera capaz de lutar.”
“Isto não é Esparta, não posso julgar se um bebê será um bom guerreiro! Se fosse assim, teria amigos que não seriam grandes cavaleiros hoje!”
“Bem, o fato é que aceitou. E agora não há mais volta; terá de ser o seu mestre. Carregou-o nos braços e ainda comentou que era um garoto forte. Aposto que Eleni ficou contentíssima com suas palavras.”
O medo de Hyoga cresceu ao lembrar que muitas das homofalcas das estufas adquiriram respeito por ele. E se tivesse de carregar mais bebês? O que faria? Daquele jeito acabaria com um exército de discípulos e não conseguiria ensinar nenhum.
“Geralmente é Evan quem os carrega. Ele já possui certa fama como treinador de homofalcos e o que melhor domina o cosmos de fogo.”
“Outro problema, pois só domino o cosmos de gelo. Além disso, não formo guerreiros a esmo, formo cavaleiros de Athena!”
“Meu povo não entende o que significa ser um cavaleiro de Athena, Hyoga. Eles acham que, tendo-o como mestre, terão um guerreiro forte para defender nossa terra.”
“É isso que precisam entender. Se não fizer nada a respeito, acabarei prejudicando todos: os homofalcos, o Santuário e eu mesmo.”
“Tentarei falar com eles. Mas a sua promessa com Charis e Tibalt já está selada, meu rapaz. Terá de treiná-los, queira ou não.”
“Eu sei. Honrarei a minha palavra, Ájax.”
“E se puder… Fique longe dos nascimentos, a não ser que queira ser mesmo o mestre da criança. Geralmente a mãe escolhe no dia, pois rejeitar guerreiros presentes também pode indicar falta de cortesia.”
“Eu não acredito que não me disse isso antes.”
Hyoga afastou-se irritado, e Ájax seguiu-o.
“Desculpe, não me ocorreu dizer-lhe. Mas por favor, deixemos esse assunto de lado por enquanto, Hyoga. Há outro que preciso tratar com você.”
“E o que é?”
“Você sabe quais são os limites das terras dos homofalcos?”
“A sudeste, o rio; ao norte, o mar; ao oeste, a entrada da cidade. Você me enforcou em cada um desses pontos.”
“Esse era o limite que tracei a você quando ainda não tinha recebido a carta de Athena. Quero ampliar sua área.”
“Agora que Athena me colocou de guarda, tenho direitos especiais? Ájax, vou ser sincero: prefiro continuar como um prisioneiro a ter de agüentar toda essa bajulação por conta do meu título. Não sou um deus, um milagre, ou seja lá o que pensem. Sim, sou um cavaleiro. Mas também sou um ser humano. Como, durmo, vou ao banheiro como todos aqui!”
“Eu pouco me importo com o que pense, Hyoga! Você agora tem a obrigação de proteger-nos!”
“Eu sei. Vou protegê-los, farei tudo o que for possível. Mas não sou um deus, é isso que digo. Não quero ser tratado como uma imagem.”
“Eles têm esperança, algum problema?! Eles acham que você conseguirá libertá-los do sofrimento que é viver sob a ameaça dos guerreiros de Prometeu. Nem eu sou capaz de salvá-los, mas você é, Hyoga! Assuma isso, doe-se! Não foi o que prometeu?”
O rapaz já se aproximava da região das estufas, onde as mulheres deviam conversar animadamente sobre o bebê de Eleni. Parou e suspirou.
“Não quero que me vejam como um herói se nunca salvei uma vida sequer neste local, Ájax. Nunca lutei com meu cosmos aqui e mesmo assim eles acham que sou uma espécie de titã. Não sou tudo isso, sou um servo de Athena. Tenho medo de decepcioná-los.”
“Como eu?”
“Você?”
Foi a vez de Ájax suspirar. Caminhou para perto e empurrou-o levemente ao caminho oposto das estufas.
“Venha… Vou mostrar-lhe os novos limites em vez de enforcá-lo com a corrente. Quero que tenha mais liberdade porque preciso de sua ajuda na busca por Aure. No caminho, conto tudo que precisa saber sobre os homofalcos.”
Sem ânimo e paciência para enfrentar a conversa das mulheres sobre Eleni e o bebê até o final do dia, Hyoga resolveu aceitar o passeio e deixar-se guiar por Ájax. Atravessaram o limite que lhe era permitido e sentiu-se estranho, como no primeiro dia que o soltaram da prisão.
“Aconteceu há dez anos. Eu era mais jovem que você e tinha acabado de tornar-me o líder deles. Também já era casado com Damara. Eu estava na mesma situação que você, Hyoga, não tinha entrado em combate e já era visto como um deus ao meu povo.”
“Então não foi só comigo.”
“Não. E eu concordo com você, é irritante pensar que todos o acham um deus, que você será o grande mito da história homofalca. Como era líder, nem podia esconder-me. Alguns dos garotos que treino carreguei naquela época. Mas em seguida veio a explosão sobre Evan. Foi uma loucura. Meu pai tinha morrido heroicamente contra os guerreiros de Prometeu e eu era a esperança de todos. Era um herói antes mesmo de lutar.”
“E você logrou?”
“Não. Foi vergonhoso, Hyoga. Foi Evan quem os derrotou. Eu teria morrido se não fosse por ele. Voltei carregado no lombo como se fosse um cadáver, desacordado. Um completo perdedor. O povo ficou em silêncio, eles pararam de idolatrar-me. É por isso que ele possui tantos discípulos. Quanto mais alunos, mas destaque militar você tem. Os pais tentam empurrar seus filhos a quem acham que irá destacar-se entre todos.”
“Deveria destacar um único homofalco para isso. Não quero discípulos demais, ou não poderei treiná-los com eficiência.”
“Eu sei. Eu posso, Hyoga… Baixar uma lei.”
“Uma lei?”
“Proibindo que o escolham como mestre.”
“Ou talvez deva recusá-los. Mas não quero que pensem que acho a criança inapta à luta.”
“Vou dar um conselho… Mesmo que recuse, eles continuarão achando que você é um herói.”
“Ah… O que faço para mudar isso? Tirando decepcioná-los, é claro.”
“Sinceramente? Não sei. Até hoje, Evan não sabe como evitar isso. Bem, acho que ele não deseja mudar, é um homem ambicioso.”
“Daria toda a minha fama a ele de presente. E ainda pagaria para que a tivesse!”
Ájax riu e apontou para uma coluna de montanhas.
“Está vendo aquelas montanhas? Não as atravesse, pois ficará visível aos humanos. Até lá é território nosso, podemos circular por lá. Vamos?”
Hyoga seguiu à direção apontada e retomou a conversa.
“Evan parece ter raiva de mim, desde o começo. Por que, Ájax?”
“Ele odeia todo e qualquer humano. A mãe dele foi estuprada por humanos na sua frente quando era pequeno. Desde então, sempre os odiou.”
“Até eu odiaria.”
“Geralmente cometem assassinatos de forma mais simples, mas há ocasiões que estupram nossas mulheres. Muitos de nós carregamos traumas. Sua amiga Seema, por exemplo. O primeiro filho dela morreu quando ainda era um bebê, junto com o pai, num dos ataques.”
“Não sabia disso… Hoje ela queria pedir-me algo, mas não teve coragem de dizer.”
“Talvez queira que carregue o filho dela ou seja o pai.”
“Ser o pai?!”
“Não é incomum homofalcas desejarem um guerreiro como marido depois da morte do pai biológico. Como ela também tem um ovo, suponho que seja esse o pedido, para protegê-la como marido. Deve ser por isso que ficou recatada, você pertence a uma cultura diferente.”
“Não há nenhum gesto que me faça aceitar isso sem palavras, há?”
“Não, é claro que não. Mas há alguns que envolvem trocas de promessas em casais. Posso ensinar-lhe para que não caia no mesmo problema de hoje. Ah… Não pensei que sua integração ao modo de vida dos homofalcos fosse complicada assim. Veja, aqui foi onde nossos homofalcos perderam contato com Aure.”
“Aqui?”
“Sim.”
Hyoga caminhou em volta, procurando por pistas. Contudo, não tinha esperanças de encontrar qualquer uma, depois de tanto tempo desaparecida.
“Se Seema me pedisse em casamento, seria obrigação minha aceitar? Ou poderia recusar?”
“Teoricamente, você poderia recusar. Mas esqueceu-se de sua promessa? De obedecer aos homofalcos e curvar-se aos seus desejos?”
“Era isso que eu temia que dissesse. Cuidado com promessas, dizia o meu mestre. Ele tinha toda a razão.”
“Você é diferente. É o único humano que conheço que não quebra as promessas.”
“Sou o terceiro que conhece! Mas a maioria não é assim mesmo. Ájax, este trecho de terra tem utilidade?”
“Não.”
“Olhe em volta. Arbustos baixos, musgos e liquens…”
“Tundra. Já ouviu falar dessa ilustre vegetação?”
O sarcasmo do líder dos homofalcos quase o fez rir, se não fosse o detalhe que o incomodava. À sua volta, algumas árvores, típicas da floresta boreal. Naquele pedaço de terra, só musgos. Parou e agachou-se no chão, desconfiado. Com as mãos, passou a cavar como se fosse um cachorro a procurar abrigo na terra.
“O que foi?”
“Estou cismado. Se os seqüestradores desapareceram no meio da neve… É porque existe algo no meio da neve. Não acha este local estranho? Por que aqui não há nada, se estamos cercados de árvores? Parece que utilizaram este terreno para algo, só não sei o quê. Sei que parece uma suposição idiota, mas quero tentar isto.”
“Está perdendo o seu tempo. Não vai encontrar um tesouro perdido, se é o que está pensando.”
“Não sei.”
Hyoga continuou a cavar, com os dedos rígidos de frio. Talvez fizesse papel de idiota naquela busca, mas pensava há tempos naquela possibilidade. Cavou por mais de um metro, quando Ájax o impediu.
“Pare com isso, Hyoga, não há nada aí.”
“Como pode ter certeza?”
“Quer ter certeza? Pois bem, mandarei que cavem. Mas com as mãos nuas, a única coisa que conseguirá serão queimaduras de frio, rapaz. Vamos continuar.”
Hyoga obedeceu, e Ájax guiou-o pelos limites do terreno dos homofalcos, enquanto explicava-lhe detalhes sobre a vida cotidiana dos homofalcos. Para o líder daquele povo, era complicado lembrar-se de cada costume que poderia diferenciar-se dos humanos que tanto desconhecia. Hyoga procurava fazer comparações, observando como era em sua terra. De certa forma, aquela caminhada acalmou-o. Ao final, notou que não estava mais irritado por ter se tornado mestre de mais uma criança.
Quando retornaram à cidade, já de noite, Ájax fitou-o, sério.
“Sei que vai desejar bater-me por dizer isto, mas… O fato de Athena ter-nos enviado um cavaleiro para proteger-nos alimenta minhas esperanças, como as de todos. Não o estou colocando sobre um altar, achando que possui mais mérito do que merece, Hyoga. Mas nós nos sentíamos abandonados quando não recebíamos ajuda do Santuário. Somente agora é que começamos a melhorar.”
“Acha mesmo que um homem acorrentado fará alguma diferença quando formos atacados?”
“Você terá o seu cosmos para lutar nesse momento. Mas não é apenas por sua presença. É o fato de recebermos ajuda, entende? Ultimamente tenho tido a impressão de que minha liderança não é suficiente para trazer paz aos homofalcos. Chego até a ficar envergonhado quando penso que não darei conta de tudo sozinho, mas preciso colocar a segurança de meu povo em primeiro lugar.”
“Talvez esteja assumindo uma posição muito fraca, Ájax, e não é assim que um verdadeiro guerreiro age. Sua posição de líder é forte, todos o respeitam. Mas falta-lhe força interior para enfrentar os guerreiros de Prometeu. Não basta elegerem um herói e esperarem pelo resto sentados. Entenda, se você não libera o meu cosmos, não consigo lutar, e então de que adiantará? Da mesma forma como precisam da minha ajuda, também preciso da colaboração de vocês.”
“Você tem razão. Amanhã organizarei um grupo para averiguar o local que quis cavar. Você deve ir à festa de Eleni, já que o convidou. Seria uma descortesia o mestre escolhido não comparecer em tão sagrado ritual.”
“Certo. Vejo-o amanhã.”
“Eu queria arrancar essa corrente de você, Hyoga. Não consigo aceitar que nosso guardião seja tratado como um prisioneiro.”
“Você viu a resposta do cristal. Uma hora eu poderei andar sem isto.”
Hyoga voltou para casa, acendeu a lareira e arrancou a túnica, exausto. Viu seu jantar sobre a mesa, que provavelmente Ájax solicitara antes de saírem. Comeu em silêncio e lavou a louça rapidamente, antes de jogar-se à cama e imaginar como agiria em seguida para ajudar aos homofalcos. Bastava mesmo agir quando necessário e treinar alguns discípulos?
Se depositavam tanta confiança em sua figura, não podia ficar parado, esperando que os guerreiros de Prometeu viessem. Havia uma cidade com vários guerreiros treinados e um cavaleiro de Athena que não podia mais sair de lá. Decidiu que devia deixar de lado o humano que havia nele e de fato assumir sua posição como cavaleiro.
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