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[Saint Seiya] Prisão das Asas - Parte 3, escrita por Nemui

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Autora: Nemui
Fandom: Saint Seiya
Gênero: drama, aventura
Classificação: 16 anos
Status: Completa
Resumo: A vida de Hyoga se transforma quando entra em contato com um mundo completamente diferente do seu.


“Ájax.”

Ele decidira no dia anterior o que fazer a respeito de sua situação. Ainda não sabia se o melhor era estar naquela terra como cavaleiro ou como um humano normal, mas precisava garantir a sensação de segurança dos homofalcos em relação a ele, mesmo se fosse descoberto. Havia uma promessa que estava determinado a cumprir, feito a uma criança: jurara que não faria qualquer mal aos homofalcos, não importando em qual situação estivesse.

“O que foi, Hyoga? Não tenho tempo para conversar com você, não tenho tanto tempo livre.”

“Eu fiquei pensando sobre o que me disse ontem e achei que não seria uma má idéia trocar o tédio pela corrente de Prometeu.”

“Por que diz isso?”

“Irei enlouquecer se ficar mais um tempo aqui. Se não arranjar nada para fazer, sinto que tentarei fugir, a despeito de minha promessa. Por que não fazemos um teste? Coloque-me a corrente de Prometeu para que eu possa trabalhar para vocês. É melhor que ficar preso nestas quatro paredes, esperando uma morte inútil. De que adianta viver o resto de minha vida aqui, se ela seria totalmente desprovida de valor?”

Hyoga esperava que aquela explicação fosse convincente o suficiente para que Ájax acatasse sua decisão, ou não saberia como explicar por que desejava ser subjugado. Se por um acaso tivesse a identidade descoberta, não precisaria ser reprimido com brutalidade, pois já não representaria o menor perigo aos homofalcos.

“Acha que sua vida faria sentido sendo um escravo, Hyoga? No que está pensando? Em virar um homofalco?”

“Pelo menos por enquanto… Se não posso mais sair, quero poder viver ao lado de vocês como mais um morador.”

O silêncio que se deu em Ájax trouxe um desespero tão grande em Hyoga que o fez voltar atrás.

“É claro… O que estou pedindo pode muito bem ser recusado, não estou em posição de requisitar nada de vocês.”

“Não é isso”, respondeu o líder. “É que até hoje, sempre senti honestidade e sinceridade em suas palavras. Mas agora… Sinto que não. Você está escondendo algo, eu tenho certeza. O que é que eu não sei a seu respeito, Hyoga?”

Naquele momento, Hyoga sentiu como se o olhar do homofalco, típico de aves de rapina, transpassasse-o feito lança junto com a aguçada intuição.

“Não… Eu só quero ter com o que trabalhar.”

“Sei que isso não é mentira… Mas ninguém se submeteria à corrente de Prometeu e se humilharia no trabalho. Não… Você teria de trabalhar carregando aqueles elos malditos. Ninguém faria tal loucura apenas por tédio. Desejar tal coisa… Talvez…”

De repente, o cosmos de Ájax aflorou violentamente sobre Hyoga, que inconscientemente respondeu com o seu próprio poder. Não era um ataque, mas o cavaleiro sempre ficava condicionado a invocar seu cosmos em reflexo, numa resposta involuntária. Percebendo que entregara sua posição, recuou até o fundo da prisão, temendo levar uma punição.

“Você é um cavaleiro!”

E agora? O que devia dizer para proteger-se? Como suportaria a subjugação que viria logo a seguir? Nervoso, Hyoga tentou amenizar a situação.

“Eu juro que não lhes desejo mal algum!”

“Você… podia ter escapado quando quisesse esse tempo todo, por que se deixou preso aqui?”

“Eu não queria trair a minha palavra com Charis… Não queria ser indigno. Não revelei minha identidade porque não sabia qual seria a reação de vocês. E pedi a corrente porque não quero que temam o meu poder… Por favor, Ájax, acredite!”

Voltando-se alarmado para o soldado do lado, Ájax ordenou:

“Rápido, tragam-me a corrente de Prometeu!”

E lançando um olhar severo na direção de Hyoga, mudou completamente sua maneira de agir.

“Ajoelhe-se. Agora.”

Se quisesse sair de lá um dia, atacaria. Os homofalcos não o liberariam fácil sabendo que era um cavaleiro de Athena. Mas se o fizesse… se fugisse dos homofalcos, quebraria a promessa por causa do poder divinatório do cristal. Confuso, Hyoga obedeceu. Não sabia mais o que era melhor para ele naquela situação. Como cavaleiro, seria punido por ter invadido terras proibidas do Santuário. Além disso, sabia que denunciara sua posição aos seus colegas, o que provocaria investigações por parte deles.

“Eles virão atrás de mim.”

“O quê?”

“Eu não queria denunciar a minha posição ao Santuário de Athena, pois sabia que meus amigos viriam atrás de mim, preocupados. Se vierem, terão de tocar o cristal e não sei que cor terão. Por favor, Ájax, só estou dizendo isso para impedir novos problemas à sua terra.”

“Seus amigos… São cavaleiros de Athena também?”

“Sim, são meus companheiros de batalha.”

“Então fique tranqüilo. Eu mantenho contato regularmente com a deusa Athena. Nunca a vi pessoalmente, mas trocamos correspondências, nas quais informo nossa situação e possíveis acidentes. Tenho certeza de que ela impedirá seus companheiros.”

As palavras de Ájax aliviaram o peso na consciência que incomodara Hyoga naqueles meses. Mesmo que recebesse uma punição por ter desobedecido ao Santuário, ao menos Seiya e os outros estariam livres de qualquer responsabilidade.

O homofalco retornou, trazendo uma corrente negra, com um brilho que surpreendeu Hyoga. Parecia uma peça viva, como a corrente de Andrômeda de Shun, mas mais magnífica e sólida. Suas pontas terminavam em vários grilhões, que serviam para imobilizar qualquer prisioneiro.

“Você ainda não deve entender porque essa corrente é tão fabulosa, Hyoga. Por ser um cavaleiro, suponho que seja mais fácil explicar-lhe.”

“Eu já desconfio. Prometeu era o deus que foi castigado por Zeus por ter dado aos homens o fogo divino. Hefestos forjou uma magnífica corrente que selaria seus poderes e o prenderia a um rochedo. Todos os dias, seu fígado era devorado por abutres.”

“Exato. E esta corrente é a mesma que prendeu Prometeu. Ela é capaz de dominar qualquer inimigo nosso, até mesmo um deus ou um poderoso cavaleiro de Athena. Mas antes, estou curioso. Que tipo de poder você possui, Hyoga? Como guerreiro, tenho curiosidade quanto aos poderes de um guerreiro sagrado. Sei que você é capaz de destruir essas amarras e a prisão. Pode libertar-se por conta própria para que eu possa conhecer o seu cosmos?”

Sem mais a restrição, Hyoga queimou o cosmos firmemente e a aura branca cobriu-lhe o corpo, iluminando a prisão. A sensação de utilizar seus cosmos novamente após um ano era um alívio, como se não o utilizasse há séculos. Congelou a corrente e quebrou-a com a força dos braços, que já estavam doloridos de tanto permanecer naquela posição. Entretanto, não ousou levantar-se para não assustar seu temeroso anfitrião.

“Sou um cavaleiro de gelo. Posso congelar qualquer objeto ou inimigo com meu cosmos. Meu título é de bronze, sou o cavaleiro sagrado da constelação de Cisne.”

“Cisne… Você não é um dos poucos cavaleiros de Athena cujo poder se iguala aos dos cavaleiros de ouro? Lembro-me de sua constelação citada numa das cartas de Athena.”

“Sim… Eu lutei na batalha das Doze Casas contra os cavaleiros de ouro, na época em que o Santuário era dominado pelo mestre.”

“Impressionante. Você é tão renomado e tranqüilo que tenho vontade de libertá-lo. Infelizmente ainda não posso fazê-lo, mas graças à corrente de Prometeu, não precisará mais ficar confinado. Vou dar-lhe liberdade para circular pela terra e trabalhar, se desejar. Antes de tudo, preciso prendê-lo com a corrente.”

Obedecendo a um comando de cosmos de Ájax, a corrente negra voou até Hyoga e prendeu-o com os grilhões nos braços, pernas e pescoço. Dessa forma, tinha a área de movimentos consideravelmente reduzida, mas não se sentia tão desconfortável quanto com os braços amarrados às costas. Os elos encurtaram-se de acordo com a extensão de seus membros e a corrente caiu pesada, pendurada nele.

“Ela é pesada…”

“É o metal de Hefestos, afinal. A liga é tão dura que nem os deuses podem parti-la. Para isso, o grande deus do vulcão a fez pesada. Mas não se preocupe, logo irá se acostumar. Eu sei, porque já a testei pessoalmente. Após um tempo, você esquece-se do peso e passa a usá-la como se não fosse nada. O poder dela não se restringe à sua resistência física, Hyoga.”

Com um segundo comando de cosmos, Ájax provocou uma reação na corrente, que agiu em Hyoga como um isolante de poder. Seu cosmos foi imediatamente bloqueado e ele logo sentiu seu poder voltar-se ao interior, como se fosse confinado numa jaula da alma. Fechou os olhos e tentou invocar seu poder, sem sucesso. Naquela situação, não passava de um simples homem sem poderes, limitado à força de seus músculos e desprovido de qualquer risco à terra dos homofalcos.

“Meu cosmos…”

“Vai se acostumar logo também. Sei que é ruim no começo.”

“É como se a corrente de Prometeu tivesse grilhões para cada pedaço de minha alma.”

“Ela é a segurança perfeita. Bloqueia o cosmos e o corpo e permite que eu a controle à distância. Posso senti-la e localizá-la com o meu poder facilmente e por isso sei quando o prisioneiro se distancia demais. Não é apenas isso; o único que pode abrir esses grilhões novamente sou eu, a menos que eu morra. Ela não só serve para aprisionar, como pode ser uma arma extremamente fatal. Posso encurtá-la até que quebre os seus braços e pernas. Posso apertar o grilhão em seu pescoço e quebrá-lo num só segundo. Com uma defesa tão forte, nenhum idiota é capaz de machucar alguém do meu povo.”

“Entendo. Se eu tentar fugir ou machucar um dos seus, morrerei.”

“Não preciso fazer uma demonstração de como ela é terrível, não é? Por ser um cavaleiro, já deve ter percebido. Posso soltá-lo na terra? Promete que não fará nada ao meu povo?”

“Tem a minha palavra de cavaleiro. Desde o início teve.”

“Não quero que os incomode também. Não o deixarei impune se receber reclamações quanto ao seu comportamento. Agora saia e fique à vontade. Pode conhecer os limites da terra pelas nossas plantações. Vou alertá-lo pela corrente se for para muito longe. Também não precisará mais ficar na prisão. Não faz sentido, já que está com a corrente. Providenciarei um quarto, onde terá mais conforto. Será melhor, pois Charis o trouxe como um convidado em primeiro lugar, e essa corrente é cruel no começo.”

Mesmo incomodado com a corrente, a sensação de sair daquela jaula era a melhor que tivera desde que chegara. Estranhou sua nova situação, com novos campos de visão além das quatro paredes, e chegou à conclusão de que não era tão ruim aceitar a corrente de Prometeu em troca de um pouco de liberdade. Voltou-se ao líder, depois de observar em volta.

“Sabe, Ájax… Se soubesse que existia esta opção desde o início… Acho que a teria aceitado. É melhor que ficar limitado a poucos metros quadrados, ainda mais um homem que está acostumado às vastas planícies siberianas.”

“Só utilizo as correntes em último caso, rapaz. Não sei se você tem sorte ou não por ser um cavaleiro de Athena. Não pense que a liberdade é um preço justo pelas correntes de Prometeu, porque ainda não sabe o que esses grilhões farão com você.”

Afastando-se da prisão, Hyoga pôde conhecer cantos antes ocultos a ele da terra. As casas dispunham-se organizadas em ruas ortogonais, entremeadas às estufas de vidro onde o tímido sustento da terra era cultivado com esmero. As estruturas eram de madeira, criando galpões curiosos e amplos. No trecho de mar que circundava parte dos limites da terra, as atividades eram mais intensas, com homofalcos voando e carregando afiadas lanças. Mergulhavam como águias sobre a superfície, voltando com um peixe atravessado na ponta. A divisão de tarefas era evidente, com as mulheres cuidando das plantações e de outras tarefas domésticas, enquanto os homens dedicavam-se à pesca e a outros serviços de manutenção da cidade, embora fosse comum vê-los comutando atividades.

Sua presença nas ruas chamava tanta atenção dos homofalcos que de início se sentiu envergonhado. Sua figura coberta de correntes, vestindo roupas diferentes e desprovida de asas era quase um extraterrestre naquele povo mitológico. Todos passavam a uma respeitosa distância, procurando evitar qualquer contato físico com aquele desconhecido, que pela primeira vez se aventurava prisão afora. Talvez fosse motivo de assombro aos pobres moradores. Um humano arrastando negras correntes não era exatamente um convite a um diálogo pacífico.

A ausência de campos cultiváveis e a vastidão branca delimitavam a terra dos homofalcos. Era difícil acreditar que todos conseguiam o suficiente para a subsistência de uma terra tão pobre, mas tudo indicava que as instalações dos homofalcos eram tão antigas quanto o Santuário de Athena.

Continuando a circundar a terra, deparou-se com um homofalco que não teve receio de aproximar-se e dirigir-lhe a palavra, em tom de repreensão. Pelo porte e pelas cicatrizes, devia ser experiente na arte da guerra.

“O que está fazendo aqui?”

“Só quero conhecer a terra. Ájax permitiu-me circular se estivesse preso com a corrente de Prometeu, e é o que estou fazendo.”

“Um humano… Bem, Ájax é o líder, ele é quem sabe das coisas. Então, o que me diz de nossa terra?”

“É simples e acolhedora. Bem parecida com a terra onde eu cresci com a exceção das estufas. Geralmente obtemos as plantas pelo comércio.”

“Aqui não temos esse luxo. Homofalcos não se arriscam negociar com humanos, pois podemos ser explorados se descobrirem nossas asas. Muitos de nós desenvolvemos cosmos de fogo para manter as estufas aquecidas e permitir um mínimo de agricultura. O Santuário também oferece ajudas regulares.”

“Enquanto estiver aqui, posso fazer algo para ajudar?”

“Quer trabalhar para nós?”

“E por que não? Tenho morado aqui há um ano, comendo a produção de vocês.”

“É que você é um prisioneiro. É nosso dever alimentá-lo, até que obtenha a permissão para voltar ao mundo dos humanos.”

“Até lá, não quero ser um peso morto. Posso não pescar tão bem quanto vocês, mas tenho um braço forte para ajudar com o que for necessário.”

“Neste caso, é comigo mesmo com quem deve tratar. Sou Myles, coordeno toda a nossa produção em conjunto com Ájax, em especial as estufas. Como são antigas, muitas precisam de constante manutenção, troca dos vidros, consertos na estrutura, etc. Além disso, as mulheres precisam de ajuda em alguns trabalhos manuais mais pesados, e eu estava pensando e dar-lhes um auxiliar. Acho que você serve.”

“Está bem para mim.”

“Certo. Volte amanhã de manhã que terei serviço para passar-lhe. Se bem me lembro, seu nome é Hyoga, certo?”

“Isso mesmo.”

“Bem, Hyoga, não precisa dedicar-se demais, pois conheço os efeitos dessa corrente que está usando. Quando os ferimentos nos grilhões forem fundos demais, procure descansar, ou morrerá. Não temos pressa quanto à velocidade do trabalho, pois as plantas deste solo crescem devagar.”

“Obrigado, Myles. Estou louco para livrar-me do tédio da prisão.”

“Tédio? Aqui só rezamos para ter suficiente comida. Vamos, dê o fora daqui, pois tenho mais trabalho a fazer. Eu suponho que ainda não tenha visitado a terra inteira. É bom que veja e compreenda como nós, os homofalcos, vivemos. Não somos pessoas a ser odiadas, apenas porque temos asas. Só queremos viver nossas vidas, criarmos nossos filhos, bebermos em nossas festas. Você, um humano, precisa entender nossa luta e que não queremos receber ou dar mal algum.”

“Eu não preciso caminhar muito para perceber isso. Com licença.”

Myles ainda observou-o desconfiado por um tempo, antes de voltar ao trabalho. Voltando por um caminho diferente, sempre atentando aos detalhes e ao modo de vida daquele povo tão distinto, encontrou-se com Ájax, que coordenava um grupo de treino. Parou ao seu lado e ficou a observar os exercícios dos jovens, que começavam a aprender a arte da guerra com o intuito de defendê-los de possíveis invasores. Registrava cada movimento com interesse, analisando os prós e contras do estilo de luta dos homofalcos.

Evan, o homofalco que desde o início não demonstrara qualquer sinal de amizade com ele, era o professor daquele grupo de novos guerreiros. Ao notar que Hyoga os observava, parou irritado e aproximou-se de Ájax para reclamar.

“Ájax, não deixe que este humano veja o treino dos garotos. Não sabemos se ele pode nos trair, contando aos humanos nossas técnicas e táticas de guerra.”

Sem se deixar intimidar, Ájax manteve a calma e permitiu que Hyoga continuasse naquele local.

“Se ele tiver essa intenção, o cristal ficará vermelho para sempre. Que perigo pode ele representar, agora que está com a corrente de Prometeu? Além disso, o comportamento que Hyoga apresentou até agora foi bom e não me deu motivos para repreendê-lo de qualquer maneira. Deixe-o observar o treino, Evan.”

Emburrado, Evan acatou a ordem e continuou com o trabalho. Hyoga logo ficou apreensivo com os olhares hostis de Evan e voltou-se a Ájax.

“Se quiser, posso me retirar.”

No entanto, Ájax não parecia desapreciar a companhia do cavaleiro. Ainda observando o treino, perguntou:

“Cavaleiro, que acha dos garotos?”

“Vejo que têm disciplina. A velocidade deles é superior à dos humanos, até mesmo dos soldados do Santuário. Contudo, seus golpes são leves e ainda precisam treinar melhor a rotação do braço da lança e a respiração. Vejo alguns que se destacam. Por exemplo, aquele da segunda fileira, no meio. É o que tem mais afinidade para a luta.”

“Hum. Agora entendo o que tanto observava nos treinos enquanto permanecia na prisão. Você não podia comentar porque denunciaria sua identidade. Se Evan não fosse tão teimoso, deixaria que lhes desse algumas aulas, tenho certeza de que seria produtivo.”

“Conversei com Myles e ele permitiu-me trabalhar nas estufas.”

“Você é rápido. Faz meses que Myles procura um escravo para as mulheres. Nenhum homem quer trabalhar com elas, falam e abusam demais. Podemos até ajudá-las de vez em quando, mas… Quem gostaria de fazer trabalho de mulher? Espero que tenha paciência para lidar com nossas garotas.”

“Ao menos não será entediante.”

“Ah, isso não. Definitivamente não. Pensando bem, você é perfeito para esse trabalho. É o único que não tem o direito de zangar-se com elas. Será uma forma de testá-lo.”

“É muita bondade sua colocar dessa maneira”, respondeu, enfatizando a ironia.

Rindo, o líder fitou-o e bateu-lhe com a mão levemente no ombro, antes de partir. Era quase como se dissesse ‘esse coitado não sabe o que o espera’, já imaginando os problemas que encontraria trabalhando com as homofalcas nas estufas. Hyoga deu de ombros e continuou a observar o treino dos jovens. Ao menos não seria entediante.

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Despertou-se molemente no dia seguinte, acomodado à sua nova cama, de palha e algodão. Chegava a ser tão confortável quanto o seu velho colchão em Kohotek, resgatando a saudade da terra que abandonara tão repentinamente. Esfregou os olhos e notou através da janela que o Sol começava a aparecer no horizonte, o que era considerado tarde naquela época do ano. Levantou-se e lavou o rosto com a água gelada da bacia, fazendo-o acordar por completo.

O quarto para o qual se mudara era de longe mais cômodo que a prisão. Estava equipado com lareira e fogão, além de armários impecavelmente limpos. As grossas paredes construídas a partir das coníferas ofereciam-lhe o isolamento térmico que na prisão era quase inexistente.

Dobrou o cobertor e vestiu a túnica, que reservara apenas para caminhar na neve. Sem o cosmos, a sensação de frio era intensa, tanto que vestia casacos que em seu treinamento era proibido usar. Por onde andava, a corrente de Prometeu arrastava-se no chão, ruidosa, deixando-o freqüentemente irritado. Contudo, pior era a pressão que as bordas dos grilhões faziam sobre a pele, num atrito que logo geraria ferimentos. Apesar de pensar em meios de amenizar aquele sofrimento, sabia que os grilhões estavam justos demais para criar qualquer dispositivo de absorção àquele dano.

Depois de tomar o café da manhã, um peixe trazido por um dos soldados, saiu de casa e notou embaraçado que a vila transbordava de atividade, com asas cobrindo o céu a todo o momento, trazendo e levando peixes e caças. Aproximou-se da área central das estufas, onde Myles o aguardava, impaciente.

“Você demorou, Hyoga!”

“Desculpe. Fico desorientado sem um relógio.”

“Humanos… Escravos do tempo e não donos do mesmo. Mas provavelmente você ficou mais cansado com a absorção de seu cosmos. Lembro que Ájax também sentiu o mesmo quando experimentou a corrente de Prometeu.”

O que Myles dizia não era mentira. A drenagem de seu cosmos acarretava danos físicos ao corpo, como cansaço e sonolência, deixando-o frágil demais. Era como se a corrente de Prometeu fosse uma sanguessuga a devorá-lo lenta e constantemente.

“Venha… Há um galpão que precisa de conserto no telhado. Já deixaram a madeira pronta, resta alguém subir e terminar o serviço. Depois disso, irei deixá-lo no inferno.”

Denominar inferno o trabalho com as mulheres era cruel demais na visão de Hyoga. Já ajudara as mulheres de Kohotek no jardim comunitário que tinham sob uma estufa semelhante e não achara tão complicado, com a exceção do fato de conversarem demais.

Deixando aquele assunto para mais tarde, seguiu Myles até a estufa que estava danificada e observou em volta, nos pontos onde a madeira estava podre e ameaçava a segurança da estrutura. Por hão haver escadas naquela terra, foi obrigado a escalar com as mãos até o alto, carregando, numa corda atada à cintura, a tora substituta.

Mesmo sendo sua especialidade o combate, viver em Kohotek permitiu-lhe aprender de tudo; fora agricultor, construtor de casas, pescador, até treinador de cães de trenó. Por essa razão, não se importava com qualquer serviço que lhe passassem ali, pois tinha certeza de que saberia fazer. Pendurou-se num pilar e passou a medir e serrar o tronco reserva ali mesmo, como se sempre tivesse lidado com madeira. A facilidade e a rapidez de seu trabalho foram tão satisfatórias que Myles respondeu com um sorriso quando o viu descer após o término do serviço.

“Perfeito, rapaz. Não imaginei que um cavaleiro pudesse ser tão habilidoso com construção. O que há em comum com a luta que não estou sabendo?”

“Nada. É que estou acostumado a fazer esse tipo de trabalho na terra em que cresci. Aprendi a fazer de tudo lá.”

“Que sorte a minha. Finalmente irei consertar todas essas estufas velhas com sua ajuda, rapaz. Nenhum homofalco tem paciência para ficar prostrado serrando madeira lá em cima. Só espero que agüente ficar com aquelas tagarelas. Venha.”

Hyoga seguiu-o novamente, como um robô que obedecia a toda e qualquer ordem que lhe era dada. Assim precisava agir, se queria conviver com aquelas pessoas sem mais conflitos além da raça. Entraram numa estufa, e ele sentiu imediatamente a diferença de temperatura. Enquanto o exterior bem marcava uns trinta graus negativos, o interior passava dos dez. Imediatamente teve vontade de arrancar a túnica e permanecer sem camisa, mas sentiu-se inibido diante de tantos olhares femininos.

“Garotas”, disse Myles, ao entrar. Hyoga preferiu manter-se atrás, timidamente, pois notou como muitas demonstravam medo com sua figura quase sombria. “Não eram vocês que queriam uma ajuda masculina? Trouxe um auxiliar para tanto. O nome dele é Hyoga, é o prisioneiro humano. Como agora está preso pela corrente de Prometeu, pode trabalhar conosco na terra. Não precisam ter medo, ele está aqui para ajudá-las.”

Sorrindo, o homofalco deu meia-volta e deixou-o sozinho naquele estranho clima que surgia entre ele e as homofalcas. O repentino silêncio indicava como eram sinistras sua presença para aquelas mulheres e a ausência de falas que pudessem amenizá-la. Aproximou-se timidamente e notou que elas recuaram. Parou, incerto sobre como agir. Esperou.

Hyoga queria aproximar-se do povo e estabelecer uma relação de confiança, por ter de permanecer até ser inocentado. No entanto, aquela distância absurda entre ele e aquelas mulheres tornava tudo mais complicado.

“Desculpe”, arriscou. “Mas achei que trabalhar seria menos entediante que permanecer em meu quarto. Eu não me importo em cuidar do trabalho pesado para vocês, contanto que tenha o que fazer.”

“Não precisa”, respondeu uma, secamente. “Não somos fracas a ponto de precisar de um humano.”

Imediatamente deram-lhe as costas e voltaram a trabalhar, como se tentassem se proteger de um predador. A sensação de rejeição tirou-lhe qualquer ânimo de continuar trabalhando, mas não quis sair dali. Observava o trabalho como um aluno a ver o exemplo do mestre, aprendendo as técnicas que utilizavam na plantação. Em determinado momento, viu uma homofalca loira passar ao seu lado e quase pulou de susto. A jovem era idêntica à sua mãe quando jovem!

Curioso, seguiu-a, tentando ver melhor suas feições.

“Espere, por favor!”

Assustada, a jovem passou a caminhar mais rápido, tentando fugir dele. Hyoga não sabia o que fazer. Sempre que sua mãe surgia-lhe na mente, todo e qualquer rastro de racionalidade desaparecia, e ele passava a mover-se apenas pela emoção. Disposto a qualquer coisa para impedi-la, agarrou-lhe o braço, fazendo com que todas as homofalcas se voltassem a ele. Assustada, a jovem desesperou-se e a passou a gritar.

“Largue-me! Largue-me! Socorro!”

“Deixe-a em paz!”

Empurrado, Hyoga soltou-a, finalmente percebendo o erro que cometera. Myles voltou correndo, enquanto as homofalcas se colocavam como uma parede à jovem.

“Ele estava atormentando a Eleni. Tire-o daqui! Ele não pode ficar aqui conosco, Myles, é perigoso!”

Fechando o rosto para o cavaleiro, puxou-o pelo braço.

“Vamos.”

De novo acontecera. Deixara a emoção sobressair-se, num momento de distração. Camus ensinara-o a manter-se sempre frio, mas sua mãe sempre o trazia de volta aos sentimentos que queimavam constantemente no peito. E aquela homofalca saíra prejudicada por sua culpa.

“Eu… Desculpe…”

“Desculpe-se depois.”

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Ájax estava parado diante dele de braços cruzados como um pai que repreendesse um filho. Hyoga esquecera-se de agir com calma e frieza mais uma vez, embalado por lembranças antigas que não podiam ser descartadas do coração.

“Você me deu a sua palavra. Não iria incomodar ninguém de meu povo.”

“Eu sinto muito, Ájax. Acabei perdendo o controle e só percebi o meu erro depois.”

“Por que humanos são tão inconstantes? Por que nunca podemos confiar neles? O que acontece, Hyoga, por que vocês são assim?”

“As emoções de um homem variam muito. Meu sangue subiu quando vi que ela era idêntica à minha mãe quando mais jovem. Só queria conversar, juro. Juro que não tinha segundas intenções.”

“Eu disse que não poderia deixá-lo impune.”

O suspiro frustrado do líder e o sorriso sádico de Evan mostravam o quão fundo ele estava naquele poço. Viu que o auxiliar trouxera um chicote de couro, destinado ao castigo dos rapazes em treinamento que não concluíam suas tarefas. Sempre que alguém desobedecia a Evan, era obrigado a ajoelhar-se e permanecer de quatro para ele, recebendo os golpes em silêncio. A cidade dos homofalcos conservava a punição corporal como forma de ensinar aos jovens a submissão aos líderes e às leis e a resistência perante a dor. O castigo estava limitado aos homofalcos de até cinqüenta anos de idade, quando a punição passava a ser capital. Antes que lhe dessem a ordem, Hyoga sentou-se no chão e tirou a túnica, ajoelhando-se como um dos jovens e deixando as costas nuas voltadas para eles.

“Eu sinto muito mesmo. De verdade.”

Houve um momento de silêncio, em que Ájax parecia hesitar em dar aquele castigo. Ele simpatizava com Hyoga, que resgatara Charis e fora até então tão cordial e respeitoso, mesmo possuindo o poder de destruir a terra inteira. Depois de receber um olhar questionador de Evan, decidiu.

“Dê sessenta.”

Castigo prosseguiu-se sem nenhuma palavra, apenas com os gemidos baixos a cada golpe em suas costas. A dor era intensa, mas não pior que as surras que levava de Camus em seu treinamento de cavaleiro. Sentiu o sangue escorrer pelas costas e viu as gotas pingarem no chão embaixo dele. Os fios também percorriam os braços, enquanto sentia a pele queimar a cada golpe.

O que havia de errado com ele? Por que era tão difícil manter uma promessa tão simples, tão básica? Tinha sido treinado para lançar sua vida ao fogo se assim o mandassem, para doar-se por completo quando entregava sua palavra. E toda a sua nobreza, construída sobre tantas cicatrizes, desmoronava-se num único segundo de impulso irracional.

Talvez aquele fosse o lugar certo para estar. Como Camus dissera-lhe uma vez, precisava aprender a controlar os seus sentimentos e manter-se frio como um verdadeiro cavaleiro, precisava de mais disciplina na arte da guerra. Jamais devia trair sua palavra novamente. Os golpes vinham duros, a pele das costas começava a perder para um enorme ferimento que cobria toda a superfície. A dor piorou quando o chicote só podia estalar sobre outro corte.

Lágrimas pingaram no chão, mas não eram de dor ou de submissão. Eram de frustração. Não podia aceitar uma falha daquele tamanho, não podia quebrar sua palavra, sendo um cavaleiro sagrado de Athena. Onde estava a sua honra, se não podia cumprir uma promessa tão simples quanto aquela?

Seu rosto molhado estava colado ao chão quando Evan terminou. Era possível que seus opressores pensassem que chorava por sentir-se humilhado. Mas era bem diferente. Chorava porque se sentia fraco, porque não se achava merecedor do título de cavaleiro. Ájax dispensou Evan e tocou-lhe o braço, já que o ombro estava completamente esfolado.

“Hyoga. Nossos estudantes são ensinados a jamais exibir pranto nos castigos.”

“Não é isso. Não é. Não choro por isso, jamais choraria. Mas o que me dói é pensar que não fui forte o suficiente para manter a minha promessa. Vocês devem pensar que sou um cavaleiro de Athena indigno, que não sou capaz de manter minha palavra. E é bem provável que possuam razão. Mas não sou assim. Ao menos… Não quero ser assim. Às vezes, meu sentimento aflora, não consigo controlá-lo, como meu mestre me ensinou. Como cavaleiro, devo sempre manter a minha frieza, mas…”

“Entendo. Você é um homem dividido entre a razão e a emoção. Suponho que esse seja um problema comum aos cavaleiros de Athena, que se consideram guerreiros nobres.”

“Por favor, perdoe-me. Eu sei que agi mal, já percebi isso. Mas sei que também não pude evitar. Preciso ser forte o suficiente para evitar, para vencer meus próprios sentimentos. Quantas vezes meu mestre me disse que isso acabaria comigo? Quantas vezes preciso me punir para aprender?”

Condoído com o prisioneiro, Ájax o fez sentar-se e esfregou neve em suas costas para deter o sangramento. Hyoga deixou que o fizesse, suportando a dor.

“Vou dizer-lhe algo que meu pai me ensinou quando me treinava para ser o líder dos homofalcos. Que se o sentimento é forte demais para ser combatido, devo revertê-lo de forma que fique ao meu favor. Se fico nervoso, reservo-o para descontar mais tarde. Se fico surpreso, deixo-o para demonstrá-lo no momento mais oportuno. Eu não tento sufocá-lo, apenas guardo-o por um breve período de tempo.”

“Revertê-lo ao meu favor?”

“Sim. Por exemplo, o seu caso de hoje. Você ficou ansioso para demonstrar sua surpresa a Eleni pela semelhança dela com sua mãe. Mas você não deve sufocar este sentimento por completo. Se deseja conversar, vá com calma e tente usar a emoção como uma forma de aproximação. Sufocar sentimentos sempre nos deixa ansiosos e nervosos. Quando são maiores que nós mesmos, é impossível derrotá-los. Pode ser que seu mestre conseguisse, mas eu acho uma postura muito difícil de ser tomada por alguém que sente e chora como você. Fique um pouco aí e reflita sobre o que lhe disse.”

‘A questão é que preciso sufocar por ser um cavaleiro’, pensou Hyoga. ‘Os homofalcos não precisam esconder os sentimentos. Pelo contrário; por dizer sempre a verdade, são sinceros em suas relações.’ Abraçou os joelhos, tremendo, recontando em sua mente todas as ocasiões que falhara com Camus. Não ligou quando escureceu; continuava sentado no meio da neve, imaginando se o conselho de Ájax seria bem aplicado à sua vida de cavaleiro.

Sem o cosmos para proteger-se, seu corpo estava exposto demais ao frio. Só percebeu o avançado estágio da hipotermia quando sentiu calor. Tentou levantar-se, mas as pernas não mais lhe obedeciam. Tremendo, perguntou-se se conseguiria chegar vivo à manhã seguinte por seu próprio tormento. Bem feito seria se morresse de sua própria incompetência.

Entretanto, no meio da noite, notou que alguém o cobria com cobertor. Estava tão escuro que não conseguia vê-la, mas reconheceu-a pela voz.

“Vamos, tente se levantar.”

“Você é… Eleni…?”, surpreendeu-se como teve dificuldade de falar, tremendo daquele jeito.

“Vai morrer congelado se ficar.”

Puxou-o para cima e guiou-o até em casa, onde o colocou na cama e acendeu lareira, carregada de lenha. Esquentou água no forno também, deixando o ambiente tão quente que começou a transpirar. Encheu a tina para o banho algum tempo depois e tirou Hyoga da cama, como uma mãe a cuidar do filho pequeno. Ainda tremendo, Hyoga aceitou e entrou, tingindo a água de vermelho.

Eleni molhou-o freqüentemente com mais água quente, até que os sintomas de hipotermia desaparecessem e ele conseguisse pensar direito.

“Por favor, desculpe por hoje. Eu agi feito um idiota. Estou tão arrependido.”

“Eu acredito em você.”

“Perdão…”

“Tudo bem, eu o perdôo. Vamos, precisa descansar.”

Guiado até a cama e sob grossos cobertores, Hyoga conseguiu finalmente sentir o sono e o cansaço dominarem-no. Acomodou-se dolorido em sua cama e apagou logo em seguida.

—————————————————————

Teria acordado mais cedo se não estivesse ferido O sol já invadia o quarto abundantemente quando Hyoga abriu os olhos. Confuso, olhou em volta e notou que Eleni ainda estava ali. Sentia a cabeça pesada, não sabia se era de sono ou de algum efeito da hipotermia. Tentou virar-se na cama, mas suas costas doíam tanto que não conseguiu mover-se.

A homofalca aproximou-se com um lenço umedecido e depositou-lhe na testa, o que explicava por que sentia a cabeça tão pesada: estava febril. Ao engolir saliva, a garganta reclamou de dor: ficara tempo demais exposto ao frio e provavelmente se resfriara. Eleni tirou os cobertores em silêncio e passou um ungüento ardido nas costas, causando reflexo em Hyoga, que derrubou o lenço da testa.

“Vai ter de agüentar. Essas chicotadas cicatrizarão mais rápido se passar isto.”

A dor do remédio era pior que a da própria chicotada, e Hyoga gemeu mais, encolhendo-se no canto da cama. Intimamente, achou que aquela era uma ótima forma de vingar-se dele depois de tamanho despeito. Fechou os olhos com força, mas abriu-os novamente quando ela passou-lhe a mão nos cabelos com a gentileza de uma mãe.

“Coitado… Não merece tudo isso. Seu nome é Hyoga?”

“Sim…”

“Disseram-me que é um grande cavaleiro.”

“Eu sou um grande idiota. Dei a minha palavra de que não incomodaria ninguém… Sou mesmo um idiota que não consegue manter a própria palavra.”

“Não seja tão duro consigo mesmo. Que assunto tem a tratar comigo?”

“É que… Eu só fiquei surpreso porque você é idêntica à minha falecida mãe quando era jovem. Tanto que quase acreditei ser a mesma pessoa. Juro que não queria nada de mal.”

“Como ela era?”

“Adorável. Sempre cuidou de mim com tanto amor que vivo para zelar a tranqüilidade de seu túmulo.”

“Entendo… Ficou afobado por isso. Agora entendo por que agiu daquele jeito.”

“Desculpe. Não quis ser grosseiro. Obrigado por cuidar de mim.”

“Teria morrido se eu não o fizesse.”

“Desculpe pelo trabalho que causei.”

“Está tudo bem. Em parte, também sou responsável. Procure descansar agora.”

Delicadamente, Eleni repôs o lenço úmido sobre a sua testa, cobriu-o e deixou que cochilasse, administrando sua febre de tempos em tempos. Não imaginava que uma coincidência pudesse causar tamanho estrago numa pessoa, apenas porque se assemelhava à sua mãe.

Mais tarde, Myles entrou, carregando um ovo nos braços. Passou-o para Eleni e abraçou-a por trás.

“Por que fez isso?”

“Ele não é um mau rapaz, Myles. Só está perdido.”

“Mas é um cavaleiro de Athena.”

“Mesmo assim. Ainda é um garoto por dentro.”

“E logo agora que consegui alguém para trabalhar para vocês. Ele seria um bom auxiliar, se lhe dessem a chance.”

“Não sei se as meninas darão, mas acho que devo isso a ele. Hyoga não me parece um inimigo, mesmo sendo um humano. Ele é tão triste, educado e reservado.”

“Ele consertou a estufa perfeitamente em menos de uma hora. É um trabalhador dedicado, um cavaleiro que sempre tenta cumprir a palavra, um ser humano ainda em formação. O que acha que vai acontecer?”

Eleni sorriu bondosamente, enquanto o observava dormir.

“Não vou esperar pra acontecer. Vou fazer acontecer.”

—————————————————————

Como a túnica irritava os ferimentos, Hyoga optou por não usá-la até que os cortes se cicatrizassem. Enquanto seguia Myles pelas ruas de estufas, homofalcos viam as costas marcadas com assombro, já sabendo do ocorrido. Na terra dos homofalcos, como em Kohotek, a notícia alastrava-se como um vírus e literalmente voava pela população homofalca, de boca em boca. Com o suposto ataque de Hyoga a Eleni, as mulheres entraram um clima ainda mais pesado quando ele entrou na estufa.

“Eu não quero reclamações”, anunciou Myles. “Vocês pediram tanto tempo por ajuda, ela é Hyoga. Vocês têm de aceitá-lo.”

Ainda sem concordar, muitas mostravam expressões de raiva na direção do tímido rapaz, que recebeu o aceno alegre de Eleni.

“Ei, Hyoga! Ainda bem que chegou! Estou precisando de ajuda aqui.”

Sem questionar, o rapaz sorriu gentilmente e aproximou-se dela, trazendo apreensão em todas. Myles continuou a observá-lo, curioso com o encerramento daquela história. Como um robô, Hyoga imediatamente correu até o depósito de sacos de terra e puxou três de uma só vez, colocando-os sobre o ombro. Mesmo que o peso todo acabasse se concentrando sobre a carne viva que resultara das chicotadas, estava determinado a continuar com sua idéia de trabalhar para os homofalcos. Retornou com os sacos e ajudou-a a preparar a terra para o plantio.

“Obrigada, Hyoga. Vou pegar as sementes lá dentro. Pode me trazer mais água do poço?”

“Claro.”

Trabalhou como se tudo estivesse em ordem, revelando uma disciplina que surpreendia aquelas pessoas. Lançava-se às tarefas com entusiasmo e procurava tomar para si as atividades que exigiam mais esforço físico, pois eram o motivo de necessitarem de um auxiliar nas estufas. Eleni procurava sempre mantê-lo ocupado com algo, ensinando-lhe alguns cuidados para obter melhores resultados na plantação. Pelo fato de possuírem maior dependência das estufas, os homofalcos conheciam mais técnicas de plantio que os moradores de Kohotek, o que tornava Hyoga um ávido aprendiz.

Uma das homofalcas parou por alguns momentos. Respirava fundo e com cuidado, apoiando uma das mãos sobre o ventre, onde crescia um futuro herdeiro. Olhou para os lados e percebeu que todas estavam demasiado ocupadas para dar-lhe atenção. Hyoga encontrava-se próximo, limpando alguns materiais, atividade que não demandava urgência. Hesitou por algum momento e enfim se aproximou.

“Hyoga?”

Voltando-se, ele parou e fitou-a atencioso.

“Sim?”

“Pode ajudar-me?”

Era a primeira vez que alguém daquela estufa pedia-lhe ajuda, assim como era a primeira porta aberta à integração à vida dos homofalcos. Como não ajudar? Imediatamente colocou-se à sua disposição e notou a condição da homofalca.

“No que for preciso. Não está cansada? Deve ser difícil cuidar da terra enquanto espera um bebê.”

“Não se preocupe. Preciso replantar algumas mudas. Venha.”

“Desculpe. Seu nome é…?”

“Seema.”

Hyoga obedeceu e seguiu-a até o canteiro que demandava atenção. Passou a trabalhar sob as instruções da homofalca, de pé ao seu lado.

“Tente replantar um pouco mais fundo, mais raízes nascerão depois… Isso.”

Enquanto fazia, sentia-se satisfeito por poder ajudar alguém além de Eleni naquele lugar. Embora ainda não fosse incluído nas conversas, as mulheres passavam a falar cada vez mais, retomando um clima informal.

“Meu bebê irá se alimentar dessa futura safra.”

“Tenho certeza de que será boa. Quantos meses restam?”

“Não deve demorar. Logo porei o ovo.”

Chocado, Hyoga parou e fitou-a, confuso.

“Ovo?”

“Ah, eu me esqueci. Humanos nascem direto da mãe. Homofalcos nascem de ovos, rapaz, como pássaros. Após passar um período na barriga, nós pomos um ovo onde o bebê termina de crescer. Assim é mais fácil para voar.”

Era a primeira vez que ele ouvia tal fato. Lembrava ter lido sobre ovos quando estava na prisão, mas achava que falavam conotativamente.

“Não sabia disso. Deve ser menos sofrido que o parto humano, então.”

“Não duvido disso, apesar de não ser humana. Mas cuidar de um ovo também não é fácil. Precisamos ter cuidado com a temperatura e a casca, não podemos deixá-lo rachar em hipótese alguma, ou o bebê poderá nascer defeituoso. Já vi casos de homofalcas que deixaram o ovo cair por acidente. Elas nunca se perdoaram.”

“Acho que eu também não me perdoaria se algo do tipo acontecesse.”

“E suas costas?”

“Hum?”

“Parece que os ferimentos ainda não fecharam. Devem doer toda vez que você traz água ou terra nos ombros.”

“Tudo bem. Desde pequeno, estou acostumado a trabalhar ferido, pois meu treinamento de cavaleiro nunca me deixava ileso. Com o tempo, aprendi a ignorar a dor quando é preciso.”

“Não deve ser fácil, mesmo assim.”

“Não se preocupe. O erro foi meu, e a punição foi justa. Portanto, sempre que precisar de ajuda, é só me chamar. Não quero que nada de errado aconteça com você ou o seu ovo. Afinal, esta planta precisa ter algum consumidor depois de tanto cuidado, não é verdade?”

Quando fora a última vez que conversara daquele jeito com alguém? Fora gentil com Charis, mas principalmente porque era uma criança assustada; seu relacionamento com outros adultos nunca fora tão aberto. Lembrava-se de conversar com algumas mulheres de Kohotek, mas geralmente eram elas que vinham falar-lhe. Entretanto, era vital ser cortês com aquelas. Não sabia por quanto tempo teria de permanecer naquela terra, mas seria bom manter-se num convívio equilibrado com os homofalcos até sua partida. Muitas das homofalcas já retornavam para casa, agora que o Sol insistia em esconder-se no raro dia siberiano. Seema respondeu, sob os olhares satisfeitos de Myles e de Eleni.

“Obrigada. Parece que você só teve um começo azarado conosco. Estou vendo que não é um tarado, como muitas estavam comentando. Elas ficaram chocadas quando agarrou o braço de Eleni daquela forma e até queriam que voltasse à prisão. Mas… Não o fez por mal, não é?”

“Juro que não.”

“Está bem. Acredito em você.”

—————————————————————

No caminho de volta, ao cruzar com Ájax no meio da rua, foi interrompido, embora o líder estivesse ocupado organizando novas frentes de busca entre os homofalcos. Um grupo preparava-se para partir por terra, enquanto o outro realizava uma espécie de alongamento nas asas, antes de iniciar a busca por ar.

“Hyoga, espere. Preciso conversar com você.”

Apesar de aquela ser uma terra relativamente pequena, todos os moradores pareciam constantemente ocupados, ao contrário das pessoas de Kohotek. A toda a hora, trocavam idéias sobre a segurança e novas formas de extrair alimentos da natureza, embora já tivessem o suficiente. Era quase um regime de guerra. Naquele momento, Ájax dava ordens para enviar uma mensagem a um homofalco encarregado da comunicação com o mundo dos humanos, a fim de que ele também fizesse uma parte das investigações. Ao terminar, voltou-se a Hyoga.

“Você é mesmo um ímã de problemas.”

“O que houve, Ájax?”

“Soube na carta de Athena que desobedeceu ao Santuário entrando em nosso território. Não sabia que era proibido, só achava que ninguém tinha coragem de aventurar-se nesta região. Você desobedeceu claramente à deusa, Hyoga. Como pode se dizer digno?”

Até agora, Hyoga não considerara sua desobediência ao Santuário como um assunto de imediata importância. Sabia que seria punido pelos cavaleiros, só esperava que isso ocorresse quando retornasse para casa.

“Foi outro momento de descuido meu. Tem razão. Talvez… Eu não seja digno de minha armadura…”

“Esta carta veio endereçada a você.”

O envelope lacrado foi-lhe entregue em mãos, sob a autoria da própria deusa. Curioso e temeroso ao mesmo tempo, abriu e pôs-se a ler o conteúdo em silêncio. Mesmo sendo japonesa a língua em comum que ele e Saori melhor dominavam, a carta viera em grego e com uma linguagem estritamente profissional.

Ájax aguardou, também curioso, até que Hyoga levantou o olhar chocado, como se acabasse de ler seu atestado de óbito.

“Não posso voltar…”

“O que houve, Hyoga?”

“Minha punição por ter entrado no território dos homofalcos é… permanecer nele como protetor enviado do Santuário até a morte. Devo ficar e obedecer aos homofalcos, aos seus líderes e leis. Minha saída está vetada, independente da coloração que o cristal apresentar… Posso sair apenas para cumprir missões esporádicas que Athena me confiar…”

“Esperava ser mais rigoroso. Soube que mesmo os cavaleiros eram punidos corporalmente e que muitos crimes possuíam a pena de morte. Deveria estar aliviado por não ser morto.”

Ájax dizia a verdade, mas o alarme de Hyoga vinha do peso invisível de seu castigo. Nunca mais sair da terra dos homofalcos implicava abandonar Kohotek, bem como a planície congelada onde sua mãe repousava. Além disso, podia não mais combater ao lado de seus amigos se não tivesse o perdão de Athena. Aos olhos de um leigo, podia não parecer um castigo rigoroso. Para Hyoga, era o que ele mais temia. As pernas fraquejaram, e ele caiu ajoelhado no chão, sem acreditar nas palavras escritas.

“Hyoga, parece que há algo escrito no verso, não?”

Virando a folha, Hyoga encontrou uma mensagem escrita em japonês. Logo percebeu que aquela era uma mensagem extra vinda de Saori, a amiga de tantos anos atrás, que ignorava sua posição e responsabilidade como Athena e cedia espaço a um momento de egoísmo.

“Perdoe-me. Esforce-se para reconstruir sua vida.”

“Uma mensagem pessoal. Você deve ser mesmo querido pela deusa. Foi poupado da morte, recebeu um recado desses…”

“Ela acaba de ser egoísta de novo. Sempre tenta nos livrar da dor de lutar por ela, mas… Nós queremos lutar. Eu quero lutar. Se for preciso, desobedeço apenas para arriscar a minha vida no campo de batalha. Agora… Afastou-me de Kohotek e jogou-me aqui para que não lute mais por ela. Espera mesmo que eu tenha uma vida pacífica desta forma?!”

“Você não deseja uma vida pacífica?”

“Isso é impossível para mim. Completamente impossível. Depois da morte de Camus… de Isaac… Ela espera mesmo que eu fique parado aqui?! Sem servi-la?! Ela está agindo sem considerar os sentimentos daqueles que se foram, sem pensar em tudo que passei. Não posso simplesmente jogar o passado fora e substituí-lo por um novo, como uma roupa que se desgasta!”

“É melhor que receber a pena de morte, não concorda? Hyoga, você desobedeceu à deusa, foi tão indigno dela.”

“Eu fui, é verdade, Ájax. Mas Camus jamais foi. Camus, meu mestre, deixou-me tudo que sabia para proteger Athena. Não usar minha vida para protegê-la seria desrespeitar sua herança e suas inspirações. Será que ela não percebe isso?”

“Que situação mais curiosa. Nunca passei por nada semelhante. Talvez, Hyoga, queira responder à carta de Athena. Claro que deve fazê-lo de uma forma respeitosa, mas se expor seu problema com clareza e razão, tenho certeza de que algo pode ser feito a respeito.”

“É, pode ser. Preciso pensar um pouco antes… Eu não acredito…”

Levantando-se novamente, Hyoga releu, como se as palavras pudessem soar mais gentis numa segunda vez. Num estalo, Ájax voltou-se repentinamente para ele.

“Você disse que seu mestre deixou-lhe tudo para haver uma continuação, certo?”

“Sim, é como uma herança que se passa de pai para filho, é quase uma família.”

“Não acha que já tem idade para passar os conhecimentos de seu mestre adiante?”

Surpreso, Hyoga fitou-o. De fato, Camus não era mais velho que ele quando começou a ensinar. Como Hyoga já tinha passado por batalhas no Santuário, em Poseidon e em Hades, talvez aquele fosse o momento de abandonar o posto de aprendiz e de passar seu conhecimento adiante. Se o fizesse, honraria as lembranças de seu mestre sem ter de desobedecer a Athena.

“Ensinar… Mas não há ninguém que eu possa treinar, a não ser…”

“Homofalcos.”

O encontro de interesses era evidente. Estava claro que um cavaleiro homofalco seria de extrema utilidade a Ájax, assim como para Hyoga, que não mais tinha permissão para sair daquela terra. Ainda não sabia se haveria permissão de Athena para tanto, mas a idéia certamente era merecedora de reflexão.

“Devo consultar o Santuário antes, mas… Aparentemente, nada impede que haja um cavaleiro homofalco, sendo fiel à Athena.”

“Está pensando em levar essa idéia adiante?”

“É uma boa idéia. Mas veja, Ájax… Uma vez cavaleiro, esse homofalco não poderá dar prioridade ao seu povo, pois precisará escolher pela maioria. Ele não deve ter preconceito com humanos, assim como eu não tenho pelos homofalcos. Acha que há alguém entre os seus apto a aceitar isso?”

Para Hyoga, a possibilidade de passar os ensinamentos de Camus adiante devia ser estudada com esmero, partindo das vantagens e desvantagens que um aprendiz homofalco apresentaria. A barreira racial era a primeira que levaria em conta, pois até ele próprio tendia a priorizar seus entes mais queridos. Desde que chegara, aprendera que vários homofalcos tinham um enorme preconceito pelos humanos, dada a crueldade de comentários que ouvira, dentro e fora da prisão. Ájax foi pego de surpresa, não imaginava tal preocupação do cavaleiro.

“Geralmente eles vêem os humanos como monstros. Educamos assim porque precisamos nos proteger.”

“Eu sei que um cavaleiro homofalco seria de grande ajuda nesta terra, mas esse não pode ser o meu objetivo, Ájax. Quero um discípulo disposto a dar sua vida à Athena e aos humanos, sem hesitar. Um cavaleiro não defende um grupo seleto de indivíduos, mas a humanidade toda, sem distinção de raças. Posso até não compreender a língua que falam, todavia devo protegê-los assim mesmo. Entregar um homofalco ao grupo de cavaleiros de Athena significa doá-lo aos homens e à deusa, pense nisso. Além do mais…”

Hyoga suspirou antes de continuar, com os olhos desanimados sobre a carta.

“Felizmente para vocês, não precisam de outro cavaleiro para protegê-los. Athena designou-me para isso.”

Por um momento, teve vontade de amassar aquele maldito papel que acabara de destruir sua vida. Agarrou-o com força, mas desistiu, controlando seus sentimentos. Sabia que as conseqüências eram de sua total responsabilidade, não tendo o Santuário qualquer culpa. Certamente poderia ter recebido a punição de morte, e talvez os conselheiros do Santuário tivessem instruído Athena para tal castigo. Devia considerar uma bênção não ter sido destituído de seu cargo também. Já ouvira falar de cavaleiros que deixaram de ser por infrações bem menores.

Voltou para casa e deparou-se com Eleni à porta, com mais um vidro de ungüento na mão. Não estava com ânimo para conversar, mas também não era direito seu rejeitar tão complacente ajuda.

“Achou que escaparia? Não adianta fazer hora com Ájax, precisa continuar cuidando desses machucados.”

“Desculpe ter demorado. Devo estar atrapalhando seus afazeres.”

“Não há nenhum problema, Hyoga. Minha preocupação está descansando em cima de sua cama.”

Curioso, Hyoga entrou e encontrou um ovo com cerca de trinta centímetros de comprimento, amarelado e dotado de pequenas manchas marrons. Para um humano, uma visão bizarra; para um homofalco, um sonho. Ainda sacudido pelo informe, forçou um sorriso e tentou soar o mais simpático possível.

“Pela deusa, que incrível. É a primeira vez que vejo um ovo de homofalco. Seu e do Myles, quem diria?”

“Se diz que sou parecida com sua mãe, pode até nascer com a sua cara.”

“Sorte a dele.”

Eleni riu e empurrou-o à cadeira, onde ele se sentou voltado ao encosto.

“Vá. Deixe-me torturá-lo um pouco.”

Com um pano úmido, limpou cada ferimento cuidadosamente, tentando evitar que ele sentisse dores. Hyoga caiu num silêncio tão profundo que nem gemidos emitia; pensava nas conseqüências de seus atos. Incomodada por aquele vácuo, Eleni lembrou:

“Quer dizer que agora também conquistou Seema. Colocaram-no para trabalhar num local estratégico, Hyoga.”

“Acha que posso conquistar todas?”

“Ah, logo vai. Muito em breve, ficará andando de lá pra cá, enlouquecido com tantos pedidos e conversas. Nenhum homem agüenta trabalhar na estufa por muito tempo. Considerando como atraente é, daria a você… uns dois meses. Isso se não conseguir uma luz azul no cristal.”

“Heh… Aposto que muitos querem que eu saia daqui logo.”

“Logo eles se acostumam com você solto, Hyoga. Mas e você? Quer sair?”

“Eu queria… Quero… Nada pessoal, juro. Adoro todos, adoro a terra.”

“Mas já possui um lar, não é?”

“É… Mas… Tudo bem. Talvez esteja na hora de eu colocar o meu passado em ordem e voltar-me ao futuro. Acho que ficar aqui vai ajudar-me.”

“De que maneira, Hyoga?”

“Afastando-me da terra onde está o túmulo de minha mãe… Do meu local de treinamento. Preso aqui… Sou obrigado a pensar em novas perspectivas para a minha vida.”

“Mas não é para sempre, não é? Não é impossível conseguir uma luz azul. Eu acredito que conseguirá.”

Hyoga pensou em revelar o conteúdo da carta, mas calou-se por muito tempo. Eleni molhou-lhe toda a extensão das costas com o ungüento, pois não havia local sem ferimentos. O rapaz gemeu com o ardor, enquanto ela espalhava melhor o remédio. Ainda havia alguns cortes abertos, de onde sangrou um pouco, mas não se comparava ao seu estado do dia anterior.

“É claro que você gostaria de sair”, comentou Eleni. “Depois de ser chicoteado desta forma… que homem gostaria de viver oprimido?”

“Fui punido por ser indigno.”

“Diz isso para que eu não me sinta culpada.”

“Não. Digo a verdade. Faltei com minha palavra de cavaleiro. Eu… fui indigno. Desde que cheguei…”

“Você trouxe Charis de volta. Carregou-a nas costas por todo o caminho até aqui! Como pode achar-se indigno?”

Ele não respondeu. Após outro momento de silêncio, olhando tristemente para a parede, perguntou:

“O que acha de eu morar aqui para sempre?”

“Seria ótimo para mim. Um amigo a mais.”

“Então… Está decidido.”

Chocada, Eleni parou e deu a volta na cadeira, até que os olhos se encontrassem com os dele.

“Como assim, Hyoga? Está decidindo de verdade?”

Já estava decidido. Os sentimentos transbordaram do limite suportável, depois de um ano longe de sua terra natal. Lágrimas escorreram pela face aflita do rapaz para quem não existia mais escolha. A carta de Athena caiu da mão quando escondeu o rosto entre os braços cruzados, sem conseguir mais segurar sua aflição. Eleni pegou a carta, leu, apesar de saber que não deveria, e apiedou-se dele. A permanência de Hyoga asseguraria a proteção da terra dos homofalcos que tanto carecia de atenção de Athena. No entanto, aprisionar ali um cavaleiro por ter ajudado uma criança era injusto demais. Acariciou-lhe a cabeça; uma tentativa vã de acalmá-lo, mas a única que podia fazer naquele momento.

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