Capítulo Anterior - Capítulo Seguinte
Autora: Nemui
Fandom: Saint Seiya
Gênero: drama, aventura
Classificação: 16 anos
Status: Completa
Resumo: A vida de Hyoga se transforma quando entra em contato com um mundo completamente diferente do seu.
Shun leu o conteúdo da carta com visível apreensão. Hyoga desaparecera há quatro meses, dizendo que viajaria por algum tempo e ainda não respondera a nenhum chamado do Santuário. A preocupação também era evidente em Saori, pois não sentia o cosmos do cavaleiro de Cisne em qualquer lugar da Sibéria. Restara somente sua armadura em casa, em perfeito estado.
Expandindo seu cosmos inúmeras vezes, Shun tentara entrar em contato com Hyoga, sem receber uma resposta. Decidira viajar em busca do amigo, mesmo que tivesse de vasculhar toda a Rússia. Subiu as escadas resoluto e entrou no quarto de Saori, com a licença dos soldados. Sentada no sofá, ela olhava pensativa para o chão, quando notou que ele entrara.
“Shun… Alguma novidade?”
“Acabo de receber esta carta da Rússia, vinda da terra do Hyoga. Eles ainda não têm nenhuma notícia dele. Também tentei entrar em contato com o cosmos dele, mas não consegui. Estou preocupado.”
Saori viu a carta, escrita em russo, sem entender o que aquelas letras significavam. Shun sabia alguma coisa que Hyoga lhe ensinara e conseguiu traduzir o principal. Ainda não havia notícias do amigo.
“Saori, deixe-me ir pra Sibéria. Eu irei encontrá-lo mesmo que leve meses!”
“Acalme-se, Shun. Precisamos pensar com calma.”
“Saori… Já faz quatro meses que ele desapareceu. Já pensamos demais, supusemos demais, precisamos procurar por ele. E se estiver em perigo? Eu preciso ir, mesmo que seja contra a sua vontade!”
“Fique calmo, eu já disse. Shun… Você não acha estranho a armadura não reagir?”
“Como assim, Saori?”
“A armadura de Hyoga está em sua casa, completamente tranqüila. Você sabe melhor do que eu. Quando o cavaleiro corre perigo, sua armadura também entra em alerta. Ela é uma coisa viva, afinal. Quando o inimigo ataca você, sua armadura o protege ou fica agitada, não é verdade?”
“A armadura de Cisne não parece nervosa. É verdade, se ele estivesse em perigo, sentiríamos isso através do cosmos que ela emana…”
“Se ele tivesse sido atacado, eu saberia, porque meu cosmos sempre está sintonizado com os dos cavaleiros. Ele não foi atacado. Isso só pode significar uma coisa, Shun. Hyoga não está desaparecido por acidente; ele quer ficar desaparecido.”
Surpreso, Shun tentou vasculhar em sua memória qualquer pista que justificasse o comportamento de Hyoga. Não encontrou nenhuma, apesar dos anos de convívio.
“Mas Saori… O que o faria tomar tal decisão? Deixar todos nós preocupados desse jeito.”
“Eu não sei… Mas se ele está fazendo isso, é porque descobrir a sua localização pode ser prejudicial ao Santuário ou a ele próprio. Ele não está em perigo, talvez seja melhor deixar isso nas mãos dele.”
“Hyoga…”
Olhando pela janela, Shun sentiu-se impotente por não poder ajudar o amigo que tantas vezes o salvara. Restara somente a confiança que eles depositavam entre si quando lutavam em equipe.
—————————————————————
Próximo à grade, Hyoga começava a sentir-se angustiado com a situação. Ájax explicava-lhe que não havia mais livros de homofalcos que ele pudesse ler para passar o tempo. Sem poder dizer abertamente, quase protestava, ‘Não é você que precisa ficar enjaulado o dia todo sem poder fazer nada’.
“Desculpe, mas realmente você já leu todos. Nós não somos um povo muito vasto, como pode ver. Não temos como oferecer a você uma cultura tão vasta quanto Atenas, Hyoga.”
“Mas se já é insuportável ficar aqui com os livros, imagine sem eles. Vou morrer de tédio antes que esse cristal fique azul…”
“A culpa foi sua por ter vindo até aqui.”
“Eu realmente não entendo. Juro que não quero fazer mal algum… Mas já que é assim, preciso ter algo para passar o tempo.”
“Desculpe. Fiz tudo que podia por você.”
Observando o último livro homofalco que ia embora nas mãos de Ájax, ocorreu a Hyoga o último passatempo que restara a ele. Apoiou-se na grade, chamando-o de volta.
“Espere, eu tenho uma idéia.”
“Quer reler mais algum livro?”
“Já li cada um quatro vezes. Mas já que não posso ter mais literatura, posso produzir literatura?”
“Escrever um livro, você diz?”
“Sim.”
Ájax considerou a idéia tranqüilamente. Se Hyoga escrevesse algum material perigoso, bastava queimá-lo e deixar tudo no zero. Sorriu e fitou-o com satisfação.
“Está bem. Vou mandar que tragam um caderno e tinta. Divirta-se.”
Partindo com o homofalco que era seu braço direito, Ájax deixou Hyoga na prisão, que já se tornara o mundo do rapaz nos últimos meses. Conhecia cada rachadura e mancha como se olhasse para o próprio rosto. Mesmo tocando no cristal a cada cinco dias, sempre recebia a mesma resposta: um brilho vermelho como o sangue. Mantendo a sua palavra, Hyoga permanecera na prisão comportado, mas começava a perguntar-se se sairia de lá um dia. Até mesmo Charis acostumara-se com sua presença naquele local e cumprimentava-o freqüentemente.
Geralmente Hyoga ficava se exercitando no meio do cômodo ou lendo um livro na cama. Chegara a consertar a mesa da prisão quando um dos pés rachou. Mas nem pensava em fugir. Ocultara o seu cosmos, não só porque queria ocultar o seu título de cavaleiro, como também porque desobedecera a Athena ao invadir o território dos homofalcos e porque outros cavaleiros poderiam vir à sua procura.
Considerava aquela uma provação a superar com paciência e boa vontade. Provar que sua palavra era verdadeira tornara-se uma questão de honra e de caráter para ele. Manter a palavra por um curto espaço de tempo era fácil. Difícil era manter por meses, até anos. Sua persistência seria uma prova a Charis de que também havia homens bons no mundo dos humanos.
Ao receber os cadernos com tinta, sentiu-se livre novamente. Apesar de encontrar-se num espaço fechado de poucos metros quadrados, possuía um mundo ao seu dispor nas páginas do caderno. Escrevia com entusiasmo quando Charis parou à porta, curiosa.
“O que está fazendo?”
Hyoga sorriu e levantou-se, deixando o caderno sobre a cama. A essa altura, o homofalco responsável permitia que ele se aproximasse um pouco da garota, mas não o suficiente para que tivessem contato físico.
“Resolvi contribuir com a literatura homofalca escrevendo um livro.”
“Sobre o quê?”
“Ainda não posso falar. Vou deixar que leiam quando terminar.”
“Então pode ser que eu espere por muito tempo.”
“Talvez… Não sei dizer. Já faz tanto tempo que estou aqui que não agüento mais olhar pro teto. Não que eu queira reclamar. Vocês me tratam bem, dão tudo que preciso, mas… Ficar o dia todo sem fazer nada deixa-me meio doente.”
“Então por que não foge?”
“Nem pensar. Preferia morrer. Quebrar uma promessa é muito sério, não é? Não sei por que minha partida pode causar problemas a vocês, mas… Se aquele cristal nunca errou em toda a história dos homofalcos… Não é agora que vai começar a errar.”
“Você é estranho.”
Entristecida, Charis partiu, deixando-o sozinho. O tempo não só enfraquecia a promessa, como a esperança também. Com a mesma pergunta em mente, Hyoga voltou-se à escrita. Por que o cristal sempre ficava vermelho para ele se não desejava qualquer mal?
—————————————————————
De longe, Ájax observava Hyoga correr em círculos em sua prisão, exercitando-se. Mesmo estando num pequeno quadrado fechado, o rapaz sempre procurava manter a forma física, como se treinasse para um jogo. Naquela manhã, o cristal mostrara o mesmo brilho vermelho, dizendo que o humano causaria dano aos homofalcos se partisse. Ele mesmo mostrara-se surpreso com o resultado. Perguntava-se, ‘o que preciso fazer para não prejudicá-los?’.
Talvez sua aparente inocência fosse uma arma para libertá-lo, mesmo com o resultado do cristal. Quando pensava nisso, Ájax sorria ironicamente, achando que tudo estava sob o seu controle. A confiança que depositava no artefato sagrado era acima de qualquer atuação, o que condenava Hyoga a permanecer naquela prisão para sempre, se fosse o caso.
Estonteado com as voltas, pôs-se a fazer abdominais no chão, sem perder o ritmo dos exercícios. Era a quarta hora de movimentação, desde que tomara o café da manhã, atiçando a curiosidade de Ájax. Aproximando-se do indesejado hóspede, notou que sua massa muscular crescera consideravelmente naqueles meses.
“Está se preparando para fugir?”
“Por que vocês estão sempre pensando que quero fugir? Se não fizer exercícios, virarei uma bola, confinado nesta cela. Como não preciso cozinhar por conta própria, tenho mais tempo para exercitar-me. Faço isso há anos.”
“Eu reparei que você também gosta de assistir aos treinos dos nossos jovens. Tem algum comentário que gostaria de fazer?”
Houve o espaço de cinco flexões antes da resposta do rapaz.
“Não. Não tenho asas para saber como é. Fiquei admirado com os vôos que eles faziam quando atacavam. Pareciam pássaros a proteger o território.”
“E não é isso?”
“Claro. Sei a importância de protegerem esta cidade. Conheço o mundo de fora. Se vocês pudessem confiar nos homens, eu não estaria aqui.”
Às vezes, a conformidade de Hyoga de permanecer naquela prisão incomodava Ájax como se não parecesse natural. Qualquer um enlouqueceria por ficar tanto tempo preso naquela cela, vendo sempre as mesmas coisas. Apesar de reclamar da falta do que fazer, o rapaz não parecia abalado emocionalmente; somente entediado. Quando via isso, Ájax não podia deixar de pensar que a promessa que Hyoga fizera a Charis era verdadeira. Se fosse, poderia trazer prejuízos aos homofalcos.
Se a luz do cristal tornasse-se azul, Hyoga seria libertado e sua promessa com Charis seria mantida. Isso faria com que a garota passasse a acreditar mais nos humanos, o que poderia determinar seu governo anos adiante. Pensando nessa possibilidade, sentiu a raiva aflorar, inconscientemente. Aparentemente, Hyoga percebeu, pois parou de fazer flexões e ficou sentado, olhando para ele.
“Ájax? Algum problema?”
Perturbado, Ájax achou melhor não o acusar antes de ter alguma prova. Ainda pensando na filha, tentou desviar da suspeita.
“Não… Eu estava pensando no que disse sobre o mundo de fora. Charis saiu de repente e acabou se perdendo no mundo dos humanos. Você sabe o que houve com ela?”
“Ela não contou nada?”
“Não. Ela só disse que não gostou do mundo dos humanos. Mas não fala absolutamente nada a respeito. Eu achava que você soubesse.”
Hyoga levantou-se e enxugou a testa molhada com o braço.
“Não sei muita coisa. Eu estava cuidando de Charis em minha casa, mas ela parecia ter muito medo de mim. Ela saiu logo de manhã, sem avisar ou despedir-se. Achei que estaria tudo bem com ela. Mas quando fui trabalhar na vila vizinha, encontrei-a com um homem que dizia ser o seu pai.”
“Como é?”
“Acho que nem ela mesma sabe disso, porque ele só falava russo. Estava arrastando-a pelo braço enquanto ela chorava. Fiquei louco da vida quando vi isso. Tirei-a dele e resolvi trazê-la de volta. Basicamente foi isso que aconteceu.”
Diante do olhar surpreso de Ájax, Hyoga acrescentou.
“Ela passou a viagem inteira com medo de mim. Cada vez que eu me aproximava ou falava com ela, encolhia-se como um filhote assustado. Deve ter passado por um trauma muito grande antes de conhecer-me. Um trauma que com certeza a acompanhará para sempre. Eu me sinto mal por minha espécie ter causado tudo isso a ela e quero recompensar com minha promessa. Quero mostrar-lhe que nem todos os homens são falsos e que suas promessas podem ter valor.”
Mais uma vez, Ájax sentiu vontade de acreditar nele. Como Charis, queria acreditar que aquela promessa era verdadeira. Mas, ao mesmo tempo, temia que fosse. Lembrou-se de que aquela não era a primeira decepção de Charis com os humanos.
“Você sabe a história do último humano que teve uma luz vermelha no cristal, Hyoga?”
“Não, ninguém me contou. Na verdade, parece que todos têm medo de mim.”
“Eles têm sim. E é por causa desse episódio. Aconteceu quando Charis tinha quatro anos; portanto, ela só se lembra do pior. Um alpinista perdido encontrou a nossa cidade e parou, pedindo por socorro. Eu não queria dar-lhe abrigo, mas minha esposa insistiu, dizendo que ele morreria se não o ajudássemos. E ele ficou. Quando tocou no cristal e teve uma luz vermelha como resposta, disse que ficaria até que ela se tornasse azul. Damara não queria que ele ficasse preso, principalmente porque não parecia um mau sujeito. Charis gostava dele também, costumavam sair sempre para brincar, como se este fosse um segundo lar. E o tempo passou.”
As lembranças daquele tempo eram tão cruéis que Ájax sentiu necessidade de um lugar para sentar. Como não havia nenhum, apoiou as mãos na grade e Hyoga afastou-se respeitosamente, sob o olhar do homofalco de guarda.
“Ele ficou quase um ano aqui, Hyoga, como se fosse um sujeito bondoso. Era de certa forma parecido com você. Mas ele nutria desejos doentios pela minha esposa e a atacou quando eu menos esperei. Eles lutaram, e, no desespero, Damara acabou morta. Charis foi a primeira que viu seu corpo estendido em casa, ensangüentado. O humano fugiu antes que eu o pegasse para matar. Ele fugiu e publicou uma matéria numa revista sobre os homofalcos. Os guerreiros de Athena, que possuíam o dever de proteger-nos, levaram meses até consertarem o estrago que ele causou. Charis nunca mais foi a mesma.”
Chocado, Hyoga olhou para o chão, aparentemente sem saber o que dizer.
“Agora você entende por que não posso libertá-lo ou acreditar em suas palavras. Charis sentiu um pouco de esperança quando conheceu você, Hyoga, mas ela está sofrendo por isso. Ela tem medo de decepcionar-se. E eu tenho medo por ela. Charis é a minha sucessora como líder dos homofalcos e por isso eu gostaria que ela amadurecesse logo. Até agora, ela aprendeu a duras penas que jamais deve acreditar nos humanos. Agora que você surgiu, isso foi posto à prova.”
“Você acha que é melhor que ela continue acreditando que os humanos são todos sujos?”
“Para dizer a verdade… sim. O futuro dos homofalcos depende disso.”
“Está me pedindo para traí-la, é isso?”
“Não. Estou dizendo para refletir sobre sua conduta e como isso irá afetar Charis e os homofalcos.”
Irritado, Hyoga aproximou-se com o olhar determinado. Seus gestos diziam que ele não estava interessado em pensar na questão antes de decidir.
“Eu jamais trairei a minha palavra, Ájax. Ninguém garante que seja esse o motivo de eu ainda receber uma resposta negativa desse cristal. Mas se for isso, prefiro continuar nesta situação. Que espécie de pai é você, que deixa a filha ferir-se dessa maneira? Mesmo que esteja pensando no futuro dos homofalcos, devia se preocupar mais com os sentimentos dela.”
“Quem você pensa que é para dar-me uma lição, humano?”
A repugnância que sentiu por aquele rapaz cresceu, não pelo pensamento, mas pelas palavras que acabara de pronunciar. Era lógico que ele estava ciente do sofrimento de Charis e que ele também se preocupava com ela. Não precisava de um humano insolente para dizer aquilo, pois sabia muito bem.
Hyoga afastou-se da grade e sentou-se na cama, aborrecido. Ájax temia que ele fosse igual ao homem que tirara a vida de Damara. Podia apenas manter sua posição firme e esperar que o tempo respondesse. Ele não tinha pressa, afinal.
—————————————————————
O fim do inverno trazia um alívio sem igual para Hyoga, que dormia no cômodo semi-aberto. O clima também proporcionava aos homofalcos comida abundante e um ambiente festivo, expulsando a tensão que havia nos últimos meses. Para ele, no entanto, era só um alívio físico, pois sua relação com Ájax e Charis parecia mais distante do que antes.
Preso entre as mesmas quatro paredes, tinha como passatempo somente a escrita, que já se tornava uma atividade enfadonha. Seu corpo e sua mente desejavam desesperadamente um passeio, uma visão diferente, qualquer coisa que diferenciasse do cotidiano. Mesmo o seu cosmos pedia para ser expandido e treinado como costumava fazer em Kohotek.
Ele sabia que não podia revelar sua posição ao Santuário. Era uma encrenca que ele arranjara sozinho. Portanto, era seu dever resolver sozinho. Se chamasse a atenção dos demais cavaleiros, outras prisões poderiam ficar ocupadas, o que seria desastroso. Mantendo o seu cosmos retido, via as crianças da cidade brincarem no espaço central, praticando pequenos vôos com suas asas.
Raramente via Charis juntar-se a elas. Normalmente ficava ao lado do pai, aprendendo a coordenar o trabalho dos homofalcos. Era uma responsabilidade que já pesava em suas costas, ou asas. Naquela manhã, no entanto, ao ver Hyoga sentado em frente à porta da prisão, aproximou-se.
“Eu não devia tê-lo convidado para conhecer a nossa cidade. Não imaginava que isso fosse acontecer.”
“Quem imaginaria? Se eu soubesse que teria de ficar meses, também não teria vindo. Mas aqui estamos.”
“Papai disse que eu errei em trazer você para cá. Acho que ele estava certo.”
“Talvez. Mas você acha que é ruim tomar decisões com o coração?”
“Ele diz que são as decisões mais perigosas.”
“Pode ser. Entretanto, às vezes elas podem ser certas. Não sei por que, mas sinto que existe uma razão para estar passando por tudo isso. Existe um motivo por que o cristal brilha um vermelho tão forte. Talvez tudo isso esteja acontecendo porque precisa acontecer. Essa é a impressão que tenho.”
O olhar confuso de Charis foi o suficiente para que ele desistisse de influenciá-la. Sorriu e olhou para as crianças que brincavam longe.
“Não se preocupe com isso. O tempo dirá se estou certo ou não. Por que não vai se divertir um pouco? Daqui a pouco o pessoal trará uma tina para que eu tome um banho, mas não sei se me sentiria bem com todos olhando para mim.”
Charis relutou um pouco, mas saiu quando o seu pai e outros homofalcos vieram. Mesmo recebendo tudo que necessitava, a segurança em torno de Hyoga era forte, principalmente quando precisavam abrir a porta da prisão para trazer objetos. Prendiam-lhe as mãos na grade, imobilizando-o, e faziam o que precisavam no menor tempo possível.
Naquele dia, trouxeram a tina e encheram-na de água morna, no ponto que ele gostava. Tiraram os lençóis e cobertores, que devolveriam mais tarde, limpos. Por fim, deixaram alguns materiais de limpeza, que Hyoga usaria mais tarde para dar um jeito no cômodo. Dizendo que era uma forma de distrair-se, ele mesmo preferia limpar a cela, deixando-a impecável.
Quando o prendiam na grade, podia ver um pouco mais da vila dos homofalcos. Percebeu que Charis sentava pensativa sobre o telhado de uma casa, como se carregasse todo o peso do mundo. Foi interrompido por um toque no ombro, pois o homofalco auxiliar de Ájax queria fechar a porta.
“Deixe-me fechar a porta, senhor.”
Toda vez que aquele reservado homofalco falava, Hyoga tinha a impressão de um sentimento de ódio vindo dele, como se o desejasse morto. Deu espaço para que eles o trancassem e tentou quebrar o pesado silêncio.
“Eu sempre vejo você acompanhando Ájax. Qual é o seu nome?”
Foi Ájax que respondeu em seu lugar, mal-humorado.
“Ele é o Evan. Eu sugiro que não converse com ele. Não é uma boa idéia.”
Apesar de sentir que alguns conselhos de Ájax tinham como objetivo a disciplina de Hyoga como prisioneiro, algo lhe dizia aquele era um conselho sincero, de alguém que não lhe desejava mal. Obedecendo, Hyoga calou-se e deixou que desatassem suas mãos. Olhou para a tina no canto da cela e começou a despir-se.
Na primeira vez que lhe trouxeram a tina, sentiu-se inibido por ser observado por todos que passavam. Sem alternativa, no entanto, acabou acostumando-se e aprendeu a ignorar os olhares de homofalcos curiosos. Entrou na água e lavou-se, aliviado por livrar-se da sensação de sujeira. Estava satisfeito por ver que os homofalcos permitiam que ele mantivesse o mínimo de higiene de que necessitava, tanto do corpo quanto da prisão.
Talvez se sentisse mais relaxado se não tivessem interrompido o banho em uma agitação que até então desconhecia na vila. Evan surgiu no portão, afoito, e observou-o rapidamente. Hyoga olhou para trás, curioso, e deparou-se com o furioso rapaz. A raiva dos humanos era quase transparente em sua feição.
“O que você está planejando?!”
Permanecendo na mesma posição, Hyoga continuou com o banho, e procurou seguir o conselho de Ájax, cortando a conversa.
“Não planejo nada. Nem faço idéia do que esteja acontecendo.”
“Você pensa que nos engana…”
Evan saiu furioso e a passos largos, deixando Hyoga com sua curiosidade. Sentiu-se importunado por toda a movimentação. ‘Por todos os deuses’, pensou, ‘Com tanto tempo livre, o incidente precisa acontecer justamente na hora do banho?’
Terminou rapidamente e vestiu-se, observando os homofalcos correrem de um lado ao outro, temerosos. Ájax liderava uma equipe de busca, mas Hyoga não sabia o que tanto procuravam. Pensou em perguntar, mas achou que era melhor permanecer invisível naquele momento.
Charis encontrava-se na porta de casa acompanhada de um adulto. Mulheres e crianças escondiam-se em suas casas, como bichos a serem caçados. A vila inteira parecia desesperada. Quando tocou na grade, viu a lança do homofalco de guarda ameaçá-lo nervosamente.
“Ájax mandou que você ficasse no fundo da cela. Faça isso!”
O cabo da lança tremia freneticamente, transmitindo a tensão dos moradores. Sem querer causar mais tensão, Hyoga obedeceu e sentou-se contra a parede no fundo da prisão. Com a redução do campo de visão, pouco pôde ver da situação; mas ainda ouvia os comandos de Ájax e os gemidos das pessoas. Sem alternativa, abraçou os joelhos e esperou pacientemente.
Uma calma relativa só surgiu ao final da tarde, quando Ájax veio e mandou que Hyoga se aproximasse da grade.
“Eu imagino que você esteja curioso com o que ocorreu.”
“Você se colocou sutilmente. Não consigo pensar em outra coisa. O que houve?”
“Seqüestraram uma homofalca. Algumas crianças disseram que foi um grupo de humanos. Evan acha que encontraram este lugar por sua causa. Não só ele, como muitos homofalcos.”
“Por minha causa… Mas eu não me lembro de ter sido seguido. Mais do que isso, tomei o máximo de cuidado para que não houvesse ninguém por perto.”
“Outros acham que você é que está por trás deste ataque.”
Hyoga não demonstrou surpresa, por já esperava essa acusação.
“Não fui eu. Ájax, suponha que eu seja o mandante disto. Como acha que entrei em contato com esses bandidos? Vocês mantêm uma pessoa de guarda dia e noite, não me deixam sair em hipótese alguma. Como poderia organizar um ataque desses?”
“Eu pensei nisso também. Não há como. Mesmo assim, terei de vasculhar suas coisas para ver se não há nenhum perigo. Estamos investigando entre os próprios homofalcos. Vou continuar procurando até encontrar a garota que foi seqüestrada, eu juro.”
“Acho que eu só pareceria mais suspeito se me oferecesse para ajudar, não?”
“Você não poderia fazer nada mesmo. Se ficar aqui sem fazer nada, ajudará mais do que imagina. Agora nos deixe prendê-lo na grade. Precisamos dar uma checada em suas coisas.”
Desta vez, Ájax trouxe um ajudante diferente de Evan, que mostrou o rosário de Hyoga para o líder.
“Senhor. Encontrei algo suspeito.”
Sentindo-se irritado por terem tirado a única lembrança de sua mãe, Hyoga respondeu antes que Ájax o manuseasse.
“É um terço. É uma lembrança da minha falecida mãe, é muito importante para mim.”
Após um breve silêncio, Ájax decidiu exatamente o que Hyoga temia.
“Terei de ficar com isto, Hyoga.”
O rapaz queria ter as mãos livres para virar-se e fitá-lo nos olhos. Não teve outra opção a não ser responder de costas.
“Não há nada de errado com ele, Ájax. Eu já disse, é um objeto muito importante para mim, eu carrego-o há anos!”
“Então terei a certeza de que você não partirá sem ele. Não se preocupe, eu vou cuidar bem dele. Terá de volta quando o cristal tornar-se azul.”
“Espere, Ájax, por favor…”
“Vamos levar a mochila por precaução também.”
Enquanto desamarrava suas mãos, Ájax sorriu ironicamente.
“É a primeira vez que o vejo abalado.”
“Eu não estou mentindo, Ájax, essa cruz é extremamente importante para mim.”
“Que bom.”
Quando se viu sozinho, Hyoga sentiu-se perturbado em dobro. Quis quebrar aquela parede e sair para recuperar seu rosário, mas sabia que não havia nada a fazer a respeito. Sentou-se no chão e apoiou as mãos na testa, tentando recuperar-se da perda. Era como se uma parte de sua alma tivesse sido arrancada dele sem nenhum propósito aparente. Pela primeira vez desde que entrara na terra dos homofalcos, realmente se sentia oprimido.
Por seu próprio nervosismo, não percebeu quando Charis aproximou-se da grade, em silêncio. Ele estava encostado de lado e olhava para o chão, completamente fora da realidade.
“Hyoga…”
Olhando para o lado e para o alto, viu Charis fitá-lo seriamente, de forma reprovadora.
“Charis… Algum problema?”
“O que aconteceu com você?”
“Estou preocupado, só isso.”
“Meu pai acha que foi você que seqüestrou Aure…”
“Eu jamais faria isso.”
“Por quê?”
“Eu não combato as coisas dessa forma. Não sou um cara sujo assim.”
“Ele acha que aquele terço é algum truque dos homens.”
Revoltado, Hyoga levantou-se sério, com o humor pior do que em dias chuvosos.
“Aquele… É o símbolo da crença de minha mãe pelo sagrado, é o objeto mais importante que guardo! É por isso que estava comigo. Eu não me importava que me tirassem a mochila ou outros bens materiais, mas aquele rosário tem um grande valor para mim. É bastante simples, não guarda nenhum truque ou qualquer coisa que possam imaginar. Mas é importante pelo que significa. Eu realmente sinto pela garota que foi seqüestrada, mas isso nada tem a ver com meus assuntos pessoais.”
Afastando-se da grade, deitou-se na cama e cobriu-se. Não estava com vontade de conversar com qualquer pessoa.
—————————————————————
Na manhã seguinte, Hyoga não teve vontade de sair da cama. Passaram-lhe a bandeja do café da manhã, que permaneceu intocada por horas, até que Charis voltou a aparecer, timidamente. Receava irritá-lo novamente e pôs-se a observar em silêncio, como se esperasse a chuva parar. Incomodado com o constante olhar, Hyoga sentou-se e notou o medo que surgira na garota. Não era certo descontar nela o que o pai provocara.
“Desculpe se fui grosso ontem, Charis. Fiquei péssimo pelo que me fizeram, mas você não teve culpa nenhuma.”
Levantou-se e aproximou-se da grade, sentindo-se menos inconformado.
“Eu fiquei irritado quando levaram aquele rosário. Ainda estou, na verdade. Mas isso não é hora de ser um mau hóspede ou de ser grosso com você. Queria perguntar algo?”
Charis hesitou por alguns segundos, mas lançou sua curiosidade.
“Como era a sua mãe, Hyoga?”
“Absolutamente adorável”, respondeu sem hesitar. “Ela sempre deu duro para criar-me, mesmo nas piores situações. No final, sacrificou-se para que eu pudesse sobreviver. Ela continua vivendo em mim, e naquele rosário. Mesmo que não esteja presente em corpo… Eu sei.”
Após digerir suas palavras, Charis chegou à sua conclusão.
“Eu acredito em você. Mesmo sabendo que você pode ser só um bom ator, eu quero acreditar.”
“Charis…”
“Não posso pedir para o meu pai para devolver a lembrança de sua mãe. Mas vou fazer ele prometer que irá cuidar direito dela.”
Hyoga sorriu e sentiu-se mais calmo. Não estava tão sozinho quanto imaginava.
“Obrigado, Charis. Não vou decepcioná-la.”
A tensão do dia anterior prosseguiu, com homofalcos vasculhando a área incansavelmente, à procura de alguma pista. Hyoga preferiu continuar com sua postura de personagem neutro, observando tudo de longe. Quanto às buscas, achava estranho não encontrarem nada num lugar tão remoto e sem vilas como aquele. Não havia possibilidade de seqüestrarem alguém daquele lugar e correrem para o abrigo seguro mais próximo. Dessa forma, a busca por ar poderia ser desvantajosa naquela situação.
Enquanto Hyoga escrevia no caderno, Ájax conversava com Evan, discutindo sobre os próximos passos. Às vezes olhavam para ele, que fingia ignorar o diálogo.
“Não há jeito, nós não temos outra escolha.”
“Você deve estar louco, se quer chamá-los até aqui. Eles terão de tocar o cristal também. Está querendo colecionar humanos em nosso território, Ájax?”
“Ninguém tentou entrar em contato conosco, estamos procurando desde ontem por todos os lugares. O que mais posso fazer?”
“Devemos perguntar ao humano. Ele é que é o responsável por isso, Ájax. Acreditando ou não, tudo começou porque ele se encontra ali, tendo o tratamento de um rei.”
“Nós verificamos os objetos dele hoje de manhã. Não há nada de errado. Não pode ser ele.”
“Acho que você devia falar com ele mais uma vez, Ájax. Não é apenas Aure que corre perigo, você sabe muito bem.”
Evan afastou-se e pegou um grupo de busca para liderar, enquanto Ájax permaneceu no meio do caminho, com o olhar distante e pensativo. Olhou para Hyoga, que continuava a escrever como se nada tivesse acontecido. Sabia que as coisas piorariam para ele se fosse envolvido.
Aproximando-se, Ájax esperou que Hyoga parasse de escrever e prestasse-lhe atenção, curioso.
“Hyoga.”
Mesmo sabendo da situação, procurou mostrar-se desinformado, para evitar problemas.
“Como estão as buscas, Ájax? Alguma novidade?”
“Não. Eu queria saber a sua opinião.”
“Como é?”
“Talvez você tenha alguma pista. Não sei como eles podem fugir assim. Procuramos na cidade inteira, em todas as casas, em cada canto. Voamos por quilômetros de distância, só vimos neve, até onde o olho conseguia alcançar. Você é o único entre nós que conhece o mundo de fora. Como você acha que eles escaparam?”
Por um momento, Hyoga sentiu vontade de responder ‘O que está querendo com a minha resposta?’, mas deteve-se. Continuou num silêncio que fez Ájax mostrar impaciência.
“Por favor, fale. Não estou acusando você. Meu dever como líder dos homofalcos é proteger todos. Quero evitar que isso aconteça de novo; assim como quero resgatar Aure. Por favor, ajude-nos.”
Tirando o rosário do bolso, enfiou o braço na prisão e estendeu-o a Hyoga.
“Se eu devolver-lhe isto… Ajudará?”
Embora não se sentisse seguro do terreno que começava a pisar, o rapaz achou que seu rosário de volta era um preço que valia o risco. Levantou-se e tomou o terço, colocando-o de volta no pescoço. Em seguida tentou ver as montanhas que cercavam a cidade, cobertas de gelo.
“Mesmo na primavera, o topo das montanhas siberianas continuam brancas, com algumas falhas de terra. Poderíamos dizer que são montes brancos com pintas pretas. Não há como se abrigar em casas, eu mesmo vi que não havia nenhuma por perto. Ájax, qual é a diferença básica entre humanos e homofalcos?”
“É claro que são as asas. Ninguém consegue locomover-se com facilidade nesta região.”
“Eu passei dias para chegar até aqui; e isso porque tenho aptidão para esportes. Mas os homofalcos voam e podem se locomover como quiser. Em troca, seu campo de visão é o superior, que capta apenas o branco com os pedaços de terra. Qualquer um pode construir um esconderijo sob a neve ou cobrir-se de branco, não fará nenhuma diferença. Enquanto estiverem nessa região, não vejo outra possibilidade para esconderem-se de vocês. Portanto, não deixe que eles utilizem as asas nas buscas. Examinem cada ponto de referência possível a pé. Talvez consiga mais informações.”
“Acha que não pensei nisso, Hyoga? Minhas equipes estão em duas frentes, por terra e por ar. Outros estão protegendo as mulheres e crianças. Mas não estamos tendo sucesso.”
Como num repentino estalo, Hyoga rebateu.
“E quem está protegendo você?”
“Como é?”
“Você é o líder dos homofalcos e está completamente vulnerável. O que fará se eles o atacarem?”
“Eu lutarei, é claro. Acha que é correto o líder preocupar-se com sua própria segurança quando outros homofalcos correm perigo?”
“Você está enganado, Ájax. Você é como se fosse o pilar central deste povo. Todas as decisões são tomadas por você. Todos respeitam você. Se eles o perderem, o que será do seu povo? Charis ainda é muito nova para governar. Deve pensar nisso também, porque se conseguirem atacá-lo, todo o povo sofrerá as conseqüências.”
Hyoga dizia por sua própria experiência como cavaleiro de Athena. A missão mais importante que ele possuía era proteger Saori, pois, sem ela, não haveria uma pessoa central que pudesse coordenar os cavaleiros com a mesma força. Mesmo os homofalcos sendo cuidadosos, não estavam acostumados às táticas de batalhas ou às lutas. Era bastante visível no treino dos jovens.
Satisfeito por ter recebido o rosário de volta, sentou-se na cama e pôs-se a escrever no caderno. Já dera o conselho; cabia a Ájax acatá-lo ou não. Sentia o olhar desconfiado do líder sobre ele, mas tratou de aquietar-se e continuar com o seu passatempo.
“Está me ameaçando? Está dizendo que estou vulnerável para você?”
Surpreso com a áspera suposição do líder, Hyoga voltou-se a ele, tentando pensar numa forma de afastar a atenção de si.
“Juro que essa intenção não me passou pela cabeça.”
Mesmo sem esconder a expressão atônita, Ájax não parecia acreditar em Hyoga ou em suas intenções de ajudar.
“Desculpe-me.”
De início, o rapaz acreditou que Ájax dera-lhe crédito ou ao menos fingia. Contudo, estendeu o braço para dentro da prisão, pedindo-lhe o livro.
“Terei de tirar seu passatempo, pois pretendo fortalecer a segurança contra você, Hyoga. Ao menos até que Aure seja encontrada de novo. Por favor, vire-se de costas para as grades para que possamos atar suas mãos.”
“Mas…”
“Então eu estou certo? Você está mesmo contra nós?”
“Eu juro que não… Só que…”
Um estalo em Hyoga fez com que percebesse sua situação. De fato, o que ele dissera soava como uma ameaça a um desconhecido que não sabia de suas intenções. Levantou-se e encostou-se à grade sem dizer mais nada, esperando que sua condição não ficasse pior do que já estava. As mãos rudes de um soldado puxaram seus braços com tanta força que suas costas retesaram. A cada trinco, o movimento dos braços era mais e mais limitado, até que desapareceu por completo. A corrente passava pelos pulsos e braços de forma que ficavam colados ao corpo, deixando-o indefeso.
Embora soubesse que um pouco de seu cosmos garantiria sua total liberdade, aquela era uma opção inteiramente descartada. Ao terminarem, uma leve batida nas suas costas indicou que já podia voltar-se ao interior.
“Já está pronto.”
Naquela nova situação, Hyoga tentou mover os braços para encontrar uma posição confortável. Atados nas costas, logo sentiria dores.
“Desculpe, Hyoga. Não pretendo que fique assim por muito tempo. Somente até termos certeza de que não planeja nada contra mim. Acatarei sua opinião, pois ela me pareceu um conselho sensível. Entenda, só faço isso pelo bem do meu povo.”
Deixado sozinho, o tédio era agora o seu companheiro mais constante. ‘Que burro eu sou para fazer um comentário tão suspeito e malicioso’, pensou. ‘Não foi de propósito. Acho que a melhor coisa a fazer é calar a boca e deixar que eles cuidem de seus próprios problemas.’ Deitou-se na cama e agora sim sentia que o tempo era o seu maior inimigo. Sem nenhuma distração, fechou os olhos e tentou dormir. Forçado a deitar de bruços, faltava-lhe ar nos pulmões. De certo, demandaria tempo até acostumar-se àquela postura tão desagradável, mas ao menos não estava ferido.
—————————————————————
Os dias passavam e não havia notícias da homofalca desaparecida. Tudo indicava que os seqüestradores tinham logrado em tirá-la daquela região. Hyoga continuava atado e freqüentemente sentia dores nos ombros devido à posição de seus braços. Não era solto nem mesmo quando se alimentava ou tomava banho, recebendo todos os cuidados pela grade por um soldado. Não era tão eficiente quanto fazer por conta própria, mas garantia a tranqüilidade geral da terra daqueles seres alados e temeroso.
Como precisava despir-se para tomar banho, sua camisa fora substituída por uma túnica que independia dos braços para tirar e pôr. Parecia uma combinação bizarra com a calça jeans que vestia, mas sabia que aquela era a única forma de não morrer de frio no meio da noite.
Naquela tarde, Hyoga estava sentado no chão, sendo alimentado. Charis aproximou-se hesitante e recebeu um sorriso de cumprimento.
“Como vai, pequena?”
Em breve, ele não mais poderia chamá-la daquela forma, pois Charis crescera visivelmente. Completava um ano como prisioneiro dos homofalcos, tempo que passou com relativa tranqüilidade, embora fosse tedioso. A luz do cristal continuava vermelha, por mais que Hyoga pensasse no que poderia fazer para evitar tal resultado. Pela primeira vez, pensava em entrar em contato com o Santuário para avisar de sua situação naquela terra, sendo que seus amigos deviam estar à beira de um colapso nervoso de tanta preocupação.
Mesmo assim, entrar em contato com Saori seria dizer que possuía uma ligação estreita com o Santuário, fato que não sabia dizer se era benéfico ou maléfico para ele. Se soubessem que era um cavaleiro, meras correntes não seriam segurança suficiente aos homofalcos. Provavelmente receberia uma repreensão ainda maior.
Charis olhou para ele pensativa por um longo período, em silêncio. Sem compreender, Hyoga esperou pacientemente por algum diálogo, que não veio. Não sabia se devia iniciar uma conversa ou permanecer naquele silêncio perturbador que parecia erguer uma parede entre os dois. Por fim, a menina levantou-se e partiu, deixando um clima indagador naquela prisão. A curiosidade por saber o que a levaria àqueles atos misteriosos, tão distintos do comportamento de outras crianças, sempre lhe rendia horas de reflexão.
Após o almoço, Hyoga, que jamais tivera o costume da sesta, começava a descobrir as vantagens do sono pós-refeição para apressar os ponteiros do relógio. Deitava na cama e dormia, às vezes por horas, tornando-o preguiçoso para qualquer coisa. Ájax acordou-o no meio da tarde, trazendo o cristal para mais uma verificação. Novamente, a luz vermelha espalhou-se por toda a prisão, enchendo o rapaz de desânimo e frustração.
“Eu não entendo”, comentou, “juro que não contarei às pessoas sobre os homofalcos. Que tipo de mal poderia eu trazer?”
“Não é preciso desejar. Homens podem trazer corações vulneráveis e flexíveis. A vontade de um momento pode não ser a mesma daqui a vinte anos. Eu garanto que nosso cristal não mente.”
“Jamais questionei a veracidade desse cristal. Mas cada vez que você me chega com o teste, penso numa decisão diferente em minha vida para ver se ela pode mudar o futuro. Contudo, por mais que eu pense, não consigo alterá-lo. Estou ficando cada vez mais preocupado com os meus amigos, pois já faz um ano que estou aqui.”
“É possível que fique aqui por anos. Já soube de homens que viveram conosco como prisioneiros por mais de trinta anos. Mas geralmente eles conseguem uma luz azul ou tentam fugir de desespero.”
“Eu… Será que há uma forma segura de avisar meus amigos? Apenas para informá-los de que estou bem? Ficaria mais tranqüilo se pudesse.”
“Há sim. Mas para isso teremos de enganar seus amigos. É isso que deseja?”
“Enganar…”
Era pouco provável que ele conseguisse passar uma mensagem aos demais cavaleiros. Para proteger a localização da terra dos homofalcos, devia haver um esquema já pronto para esconder a verdade que tão poucos conheciam.
“Conhece o desfiladeiro de Adliden?”
Hyoga conhecia. Adliden era uma região montanhosa de difícil acesso na Sibéria, também pertencente ao Santuário e de acesso proibido. Nem mesmo cavaleiros ousavam se aventurar por aquela região, pois não podiam suportar o intenso frio. Enquanto que em algumas regiões mais frias chegava a fazer setenta graus negativos, Adliden rachava a terra passando do cem. Nenhum ser vivo ousava aproximar-se da área que diziam ser a entrada do inferno.
“Mandaremos a mensagem de lá. É claro que qualquer um que tente procurá-lo ali morrerá.”
“Mas…”
“A escolha é sua. Se eles aceitarem, ficarão tranqüilos. Se questionarem, morrerão. É a única condição que lhe ofereço.”
“Esqueça, Ájax. Essa é uma condição arriscada demais para eles.”
“Se a luz não ficou azul até agora, é provável que nunca mais os veja. Acalme-se. Sua vida agora é aqui, Hyoga, com os homofalcos. Esqueça a vida que levava lá fora.”
A maneira como Ájax falava fazia tudo parecer mais simples, quando a realidade era arriscada demais. Hyoga era um cavaleiro de Athena, o que tornava a sua permanência ali inconcebível. No entanto, a promessa que fizera o condenara pelo resto da vida. O que devia fazer? Revelar que era um guerreiro sagrado? Isso não mudaria a cor do cristal e só atrairia mais cuidados com sua segurança.
“Terei de ficar preso para sempre? Não posso nem ao menos caminhar entre vocês?”
“O último que fez isso fugiu como um rato e quase nos denunciou ao mundo. Entenda, não estou julgando o seu caráter, só estou agindo de acordo com nossas necessidades.”
“Qualquer um fica louco preso deste jeito. Não há nada que possa fazer a respeito?”
“Infelizmente não. Quando reavermos Aure e sanarmos nossas dúvidas, permitirei que você continue a escrever. Mas por enquanto, terá de continuar nessas condições.”
“Por que não me deixa ajudar nas buscas? Ou talvez trabalhar um pouco. Só não quero ficar sem fazer nada o tempo todo.”
Por um momento, Ájax pareceu pensativo, considerando a proposta de Hyoga.
“Melhor não. Só há um meio que consigo pensar… Há muito tempo, houve um prisioneiro especial. Ele era o que muitos chamam de cavaleiro de Athena. Mesmo sendo um seguidor da nossa deusa protetora, o cristal mostrou-se impiedoso e deu-lhe a cor rubra como resposta. Tivemos de prendê-lo, mas não sabíamos como. Ele queria fugir de qualquer forma e atacava qualquer um que o impedisse. Mesmo a prisão em que você se encontra não era capaz de detê-lo.”
“E o que vocês fizeram?”
“Não podíamos simplesmente matá-lo, ele era forte demais. Só havia uma coisa que podia segurá-lo: a corrente de Prometeu. Com isso, conseguimos controlá-lo. Para controlar a raiva dele, tivemos de subjugá-lo… torná-lo nosso escravo. Não quero fazer o mesmo com um mortal sem poderes como você. É melhor que fique em seu canto.”
“Corrente de Prometeu?”
“É um artefato mágico dos homofalcos. Ela é capaz de deter até mesmo os poderes dos deuses e, portanto, dos cavaleiros também. É nossa principal arma de defesa. Mas esqueça. Ouça o meu conselho, vai preferir o tédio à corrente. Ela machuca nossos prisioneiros, tanto que eles desistem dela em pouco tempo.”
Ájax partiu, e Hyoga sentou-se estarrecido na cama. Sentiu-se sujo por não estar usando a tal corrente de Prometeu, sendo um cavaleiro de Athena. Sentiu-se impelido a contar, mas hesitou e por fim desistiu de fazê-lo. Não sabia se era a decisão certa a ser tomada. E se as coisas piorassem demais para ele?
Outro pensamento que o incomodava era Charis, pois a garota vira sua urna de Cisne há um ano, em sua casa. E se por ventura descobrisse que era a armadura de um cavaleiro? O que era pior? Descobrir confessando-se ou ser flagrado? Confuso, olhava para a parede, perturbado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário