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[Saint Seiya] Prisão das Asas - Parte 19, escrita por Nemui

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Autora: Nemui
Fandom: Saint Seiya
Gênero: drama, aventura
Classificação: 16 anos
Status: Completa
Resumo: A vida de Hyoga se transforma quando entra em contato com um mundo completamente diferente do seu.


Evan chutou Hyoga no rosto, atirando-o ao chão. Irritado, Shun avançou sobre ele.

“Pare com isso! Hyoga não pode ser humilhado dessa forma!”

“Nosso acordo foi a redução do castigo, cavaleiro de Andrômeda. Eu mantive a minha palavra, você deve manter a sua. Não pode atacar-me.”

Shun parou, de punhos cerrados, nervoso. Evan riu e pisou na cabeça do escravo, que tentava amenizar a raiva do amigo.

“Shun… Shun. Não se importe comigo. Lembre-se… Você fez um acordo, eles irão mantê-lo.”

“Hyoga… Não devia ter aceitado tal acordo. Devia ter insistido em sua alforria.”

“Eu jamais permitiria isso”, interrompeu Evan. “a nenhum humano nojento. Acha mesmo que eu iria maneirar enquanto estivesse aqui? Escute, cavaleiro, eu nunca finjo, eu nunca minto. É dessa forma que Hyoga será tratado agora e depois. Se não está contente, quebre o acordo. Mas terá a morte como castigo.”

Evan chutou-o nas costas marcadas até que voltassem a sangrar. Em meio à dor, Hyoga falou:

“Shun… Você tem… Uma garota linda esperando-o em Kohotek. Volte para ela. Nada irá mudar, com ou sem você. Evan não está mentindo.”

“Acha que posso aceitar isso?”

“Como Evan disse, você já aceitou. Precisa honrar a palavra, Shun, como prometeu. Por favor, volte para Kohotek. Você já me ajudou muito… Por favor. Volte e proteja todos lá. O Yacov, o túmulo de mama…”

“Hyoga…”

Shun compreendia que aquele era o momento que deveria voltar. Mas não podia deixar o amigo naquela situação.

“Shun, vá. Se você se descontrolar, entraremos em guerra. Eu não quero que isso aconteça. Deve aceitar, deve aprender a aceitar… Como eu aceitei.”

A razão estava incutida nas palavras de Hyoga. Shun fechou os olhos com força e virou-se. Não suportava ver um companheiro valioso ser torturado tão cruelmente. Se ia embora, precisava apagar aquela imagem de sua mente. Evan, no entanto, divertia-se com seu autocontrole.

“Cavaleiro imbecil. Você pensa que pode ajudá-lo? Tome isto, seu traste!!”

Os sons dos golpes, Shun não podia evitar. Hyoga gritava de dor, mas mantinha a mensagem firme.

“Shun, vá! Lembra-se das Doze Casas? Não hesite, não olhe para trás. Você prometeu!”

“Está bem”, respondeu, enfim. “Eu vou. Mas precisa me prometer que não morrerá!”

Shun partiu correndo, deixando-o para trás. Precisava correr, ou não conseguiria partir. Não podia parar, senão voltaria atrás. Olhava adiante para não hesitar. Ignorava os gritos de Hyoga, tentava agir como um cavaleiro. Precisava confiar no amigo, precisava afirmar com convicção que Hyoga superaria aquelas dificuldades.

No entanto, enquanto descia as montanhas de gelo, teve uma enorme vontade de chorar por sua dor.

Evan riu, ainda pisando nas costas de Hyoga, que gemia, mas permanecia submisso.

“Ele pensa que pode ajudá-lo. Humano idiota. Levante-se, imbecil. Conserte o telhado. Quero vê-lo pronto quando voltar do treino.”

Hyoga obedeceu, e Evan decolou em direção ao campo de treino. O sangue escorria até a calça, manchando-a. Atordoado, ele apoiou-se na parede e fechou os olhos. Provavelmente não conseguiria consertar o telhado até a volta.

—————————————————-

Nas semanas conseguintes, a vida de Hyoga ficara dividida entre as torturas de Evan, a construção de outra estufa e o treino de Charis. Treinava-a de manhã e depois partia para servir Evan ou Myles. Quando trabalhava para Myles, ocupava-se com a estufa, trabalho ao qual se afeiçoara.

Trazia nos braços grossos troncos que utilizariam para erguer as paredes de uma estufa que fora destruída no massacre. Sua ajuda era bem vinda às homofalcas, que precisavam da ajuda dos homens para realizar aquele pesado serviço. Por nunca reclamar ou fugir do trabalho, Hyoga era o favorito delas. Contudo, a dor no corpo devido às surras que levava de Evan atrapalhavam o seu rendimento. Sentiu uma dor aguda nas costas ao descer a tora e caiu ajoelhado. O sangue escorreu, enquanto ele se recuperava do susto.

“Hyoga?”

“Eu estou bem, Melanie. Não foi nada.”

No segundo seguinte, a água gelada derramada no corte de chicote intensificou a dor, e ele gemeu.

“Está insuportável, não é? Não deveria forçar tanto.”

“Eu estou bem.”

“Não minta. Isso é crime, Hyoga.”

“Não estou mentindo.”

Ele levantou-se com alguma dificuldade e segurou a tora. Melanie logo o deteve.

“Já chega. Tem trabalhado desde cedo, sem parar. Isso me incomoda, sabia? Sente-se aí e só volte a trabalhar quando eu mandar, entendeu? Ou direi a Myles que você mentiu para mim ao dizer que estava bem.”

Sem escolha, Hyoga obedeceu e sentou-se à base de um canteiro. As costas ardiam como se tivessem sido queimadas, o corpo inteiro gritava de dor. Percebeu, então, como o seu conceito de ‘bem’ mudara. Para ele, aquilo era o normal, aquilo era estar bem. Melhor, jamais ficaria. Suspirou e obedeceu à homofalca.

Quando descansava, sentiu um gelado nas costas e afastou-se. Viu Lyris segurar um pano úmido. Ela tentara limpar o sangue de suas costas, mas só lhe causara mais dor.

“Lyris… Quer me ajudar?”

A garota, como Melanie mencionara, não sorria. Sua expressão era tão rígida que parecia estar brava com ele, como se tivesse feito algo de errado.

“Eu quero limpar esse sangue. Posso?”

“Não quero incomodá-la.”

“Não é um incômodo. Vire-se.”

A mão de Lyris era pesada. Hyoga suportou a dor em silêncio e procurou não demonstrar o nervosismo do momento. Por que Lyris decidira ajudá-lo tão de repente? E por que o fazia sem emitir qualquer calor humano?

“Pronto”, anunciou ela, ao terminar. “Não irei mais incomodá-lo.”

“Não, obrigado. Isso impede o ferimento de infeccionar.”

“Até mais.”

“Será que eu posso perguntar… Por que fez isso? É claro que é uma gentileza, mas…”

“Eu não fiz isso por você.”

“Então por quê?”

“Estou fazendo um teste. Nada que mereça a sua atenção. Agora, com licença.”

Lyris partiu de forma tão misteriosa quanto amarga. Sua presença nunca continha uma energia boa, sempre era uma figura sombria entre as mulheres homofalcas. Hyoga lembrava-se de como ela era diferente antes do ataque. Vivia sempre com Seema, a conversar e a brincar. Agora, era apenas uma mulher solitária e angustiada. Sem entender, ele continuou a descansar, até que Melanie surgiu com uma caixa de primeiros socorros.

“Você precisa limpar isso, Hyoga. Vamos, sem reclamar.”

“A Lyris… Ela acabou de limpar os ferimentos.”

“Como? Por que ela faria isso?”

“Eu não sei. Disse apenas que estava fazendo um teste. Não entendi…”

“Um teste? O que será? Mas… Ela não fez direito. Ainda estou vendo um pouco de pus. Deixe-me fazê-lo, Hyoga.”

Ao contrário de Lyris, Melanie era delicada, como Nyx quando cuidava dele na cabana. Naquele momento, lembranças com a homofalca traidora surgiram em sua mente, com saudades. Hyoga podia ter passado pouco tempo com ela, e seu romance podia não ter sido nada além de uma noite na cama, mas reservara um local especial nas memórias a ela. Nyx enfrentara o destino sem reclamar, mesmo sabendo que ele era a morte.

“Obrigado. Não precisa fazer tanto por mim. Estou aqui para servi-las, afinal, e não para ser servido.”

“Não seja tolo. Você vai morrer se continuar nessas condições. Não percebe como está piorando?”

“Mas Evan só me dá dez chicotadas por dia.”

“O que ele não dá em chibata, compensa com surra. Eu sei, porque sempre o observo. Você está pior, Hyoga. Está mais magro, mais fraco… Bem diferente da época em que nos ajudava todos os dias. Está definhando…”

“Acha mesmo?”

“Eu tenho certeza. O que Eleni diria se o visse? Acho que teria um ataque. Ah… Não precisa mais trabalhar por hoje. Volte para casa e descanse, Hyoga. Direi a Myles como você precisa desta tarde para isso. Volte, deite na cama e durma. Coma bastante e durma até amanhã. É disso que precisa.”

“Mas e a estufa?”

“Ela pode esperar. Vamos, eu estou mandando. E você deve obediência aos homofalcos, não é verdade?”

Hyoga suspirou. Mesmo ferido, queria continuar com a estufa.

“Vamos, garoto. É o melhor para você.”

Não havia como questionar a homofalca mais velha. Levantou-se com dificuldade e obedeceu.

———————————————————

“Hoje irei ensinar-lhe o segredo.”

“Que segredo, mestre?”

“Como melhorar o desempenho do seu vôo”, respondeu Hyoga, otimista. “Suas asas sararam, você já está em condições de treiná-las. Além disso, seu cosmos tem crescido de forma satisfatória. Acho que já posso ensinar isso a você.”

“Estou ansiosa, mestre. Por favor, prossiga.”

“Você não precisa mudar o movimento das asas. Mas pode fortalecer a musculatura e aumentar a velocidade das batidas com o treino apropriado.”

“Pode fazer isso, mestre? Myles me contou que há um treino para asas, mas disse que é preciso conhecer muita anatomia para isso.”

“E eu conheço. Confie em mim.”

Hyoga aproximou-se e analisou as asas da pupila.

“Há alguns músculos que coordenam apenas o vôo nos homofalcos. Deixe-me achá-los. Preparei alguns dispositivos para treinar a sua musculatura. Nada pesado. Promete que irá seguir o treino sem exageros?”

“Sim, mestre!”

“Muito bem. Veja os locais.”

Hyoga confeccionara alguns pesos a serem fixados em determinados pontos das asas e dos músculos da caixa torácica de Charis. Não chegavam a prejudicá-la, mas exigiam maior esforço da discípula para voar. Sem pressa, o cavaleiro ensinou-a a localizar os pontos devidos à fixação dos pesos e explicou como cada um agiria sobre a musculatura.

“Não force além de suas capacidades. Hoje, quero que treine uma hora e meia com esses pesos. Em seguida, tire-os. Não seja afobada; precisará reaprender a voar com esses mini-alteres. Experimente.”

Charis obedeceu e saltou no ar. Entretanto, com a resistência dos pesos, não conseguiu manter-se no ar.

“É pesado, mestre.”

“É como quando você aprende a voar. Deve fazer tudo de novo, Charis. Não tenha pressa, não se afobe. Tenha calma e paciência. Estou aqui para observá-la, portanto, avisarei quando exagera. Você precisa ter noção de como cada exercício influi sobre o seu corpo para saber como dosar o esforço na hora de treinar por conta. Comece.”

Charis saltou no ar, batendo as asas o rápido que pôde. Desta vez, conseguiu manter-se no ar por alguns segundos, antes de cair. Não desistiu. Se seguisse o treinamento, Hyoga a levaria ao caminho da vitória sobre Evan. Além de tornar-se uma poderosa guerreira e líder, poderia desafiar Evan num combate e alforriar Hyoga.

Enquanto observava o treino, Myles aproximou-se. Notou os pesos nas asas de Charis e colocou-se ao lado de Hyoga, como se fosse um segundo mestre.

“Como aprendeu tanto sobre a anatomia dos homofalcos para aplicar esse treino em Charis? Nem todos os homofalcos conhecem o próprio corpo.”

“Quando estava na prisão, li algo a respeito. Bastou fazer uma segunda consulta para aprender a localização exata dos pontos de esforço. Basta dosar os exercícios de forma responsável, e Charis poderá voar tão bem quanto Evan em alguns anos.”

“Eu ouvi sobre o treino absurdo que Charis tentou realizar.”

“Ela é só uma criança. É normal que não tenha noção dos riscos.”

“Mas não poderia ter tentado sem a sua ajuda. O que houve?”

“Eu não sabia se era um treino apropriado ou não. Então pedi que ela realizasse o movimento e perguntei se era confortável ou não. Quando percebi que causaria danos ao corpo dela, cancelei o treinamento. Mas Charis não quis aceitar.”

“Quer dizer que você notou como Evan realizava o vôo. Eu mesmo só soube quando ele contou para mim após um embate. Disse que as articulações das asas eram muito maleáveis. Isso porque Evan possui sangue humano.”

“Ájax já me contou isso. Mas não é coisa de dez gerações atrás?”

“Pode ser que o parentesco seja mínimo, mas Evan ainda carrega um pouco de sangue humano. Essa herança deixada por seus ancestrais permite que ele realize um vôo diferente dos demais homofalcos. Mas eu nunca notei muita diferença.”

“É paradoxal ele utilizar a linhagem humana para melhorar o desempenho do vôo, se detesta humanos.”

“Ele é muito complicado. Todos os homofalcos que sofreram traumas são.”

Charis caiu mais uma vez após outra tentativa de decolagem. Parou um pouco e descansou as asas.

“Mestre, é muito difícil.”

“Eu disse que seria como reaprender a voar. Mas não tenha pressa, Charis. Se sentir que precisa descansar as asas, faça uma pausa.”

“Sim.”

Hyoga ofereceu-lhe um cantil, e Charis bebeu, exausta. Em seguida, ela levantou-se e prosseguiu com o treino. Myles fitou-o e resolveu tratar do assunto que era a razão de ter vindo.

“Hyoga… É verdade que disse à Lyris que lhe devia um favor?”

“Lyris… Sim, ela foi muito tolerante à presença de Shun nas estufas. Isso o ajudou bastante a não se sentir tão isolado nesta terra. Por quê? Foi ela que contou isso para você?”

“Você estava mentindo quando disse isso?”

“É claro que não. Se ela precisar de minha ajuda algum dia, terei o prazer de ajudá-la. Mas por que está falando sobre isso agora? Por um acaso prometi algo importante?”

“Um favor, um pedido. Quer dizer que se ela pedir qualquer coisa a você, terá de cumprir, independente do que for.”

“Eu só não posso quebrar minhas outras promessas, mas… É claro que cumpro.”

Myles suspirou desanimadamente.

“Você é um tolo por prometer algo assim na terra dos homofalcos. No mundo dos humanos, ainda há a possibilidade de mentir, mas… Aqui, um simples favor pode levar alguém à ruína.”

“Um simples favor… mas por que está falando isso, Myles? Lyris disse alguma coisa a respeito?”

“Acho melhor conversar com ela antes. Eu fico para cuidar de Charis.”

“Não mais que uma hora de treino com os alteres. Ela precisa treinar combate em seguida. Eu não demoro.”

Intrigado, Hyoga saiu do local de treino e procurou por Lyris nas estufas, esperando uma resposta coesa aos comentários de Myles. Encontrou-a na estufa, conversando com as demais homofalcas. Aproximou-se e cumprimentou todas, educadamente. Foi até Lyris e parou.

“Lyris.”

“Sim?”

“Você se lembra de quando trabalhou com o meu amigo Shun na estufa? De quando eu lhe disse que deveria um favor a você?”

“É claro.”

“Gostaria de pedir esse favor? Myles comentou sobre ele como se você já tivesse decidido o que pedir a mim.”

“Pois eu já decidi.”

“Conte-me, por favor. Farei tudo que estiver ao meu alcance.”

“O único pedido a fazer a você… É que se torne o meu marido.”

Lyris dissera sem sorrir, sem demonstrar qualquer entusiasmo com aquele favor. Disse como se não fosse nada importante. Atônito, Hyoga fitou-a sem responder. Tranqüilamente, Lyris continuou a espalhar o fertilizante na terra.

“Há alguma promessa que impeça esse favor, cavaleiro?”

“Não…”, respondeu ele, incerto. “Mas… por que deseja isso?”

“Eu tenho os meus motivos. E já que não está prometido a ninguém, estamos acertados. Comentei com Myles porque é o líder que deve realizar a cerimônia. Vamos fazer na próxima semana, Hyoga, se não há objeções.”

Hyoga tinha a impressão de estar dentro de um sonho. Já sonhara com histórias absurdas com homofalcos desde que se mudara para lá. No mundo dos sonhos, já fora bem tratado por Evan, maltratado por Eleni, morto por mentir. Receber aquela notificação era quase um sonho, de tão absurdo. Sentiu um frio na barriga e sentou-se, puxando Lyris para junto de si.

“Espere… Eu preciso saber. Por que, Lyris?”

“Quer mesmo saber?”

“É claro. Por favor.”

“Quando Seema morreu, o mundo acabou para mim. Nós crescemos, rimos e vivemos juntas. Eu fiquei parada por horas, olhando para o seu cadáver coberto de sangue, chorando… Senti que nunca mais teria capacidade de sorrir novamente. Mas então vi o pequeno Adelphos em seus braços. O filho de Seema. Eu consegui sorrir. Adelphos era o filho que Seema tanto queria. Ele era o que eu queria. E eu o quero. É por isso.”

“Se casar comigo, virará a mãe adotiva de Adel… Por isso… Mas eu não me importaria se cuidasse de Adel, Lyris. Como estou sempre muito ocupado, é até bom. Não precisamos casar para que fique ao lado dele.”

“Você não entendeu. Eu preciso ser a mãe dele. Eu tenho de ter certeza que Adelphos será criado da forma como Seema desejava. Esse é o meu maior sonho agora. Só posso fazer isso sendo a mãe dele.”

“Significa que não é importante casar comigo, mas ser a mãe dele, é isso?”

“Sim, precisamente, Hyoga.”

A expressão fria de Lyris não mentia.

“Quando eu limpei as suas costas, estava testando. Queria ver se viver ao seu lado era suportável para mim.”

Hyoga percebeu, então, que o teste não se resumia àquilo. Nas últimas semanas, Lyris parecia estranhamente mais próxima e aberta ao contato quando estava perto dele. Tudo era para ter Adelphos como filho.

“Quer tanto Adelphos como filho?”

“Sim.”

Quem era ele para impedir? Dera a palavra, precisava cumpri-la. No entanto, ver-se casado com aquela fria e indiferente mulher fazia-o tremer com os calafrios. Jamais sonhara viver e dormir com alguém tão frio como ela.

“Está bem. Eu só quero que me prometa uma coisa desse relacionamento.”

“E o que é?”

“Quero que seja uma mãe tão boa para ele quanto a minha foi para mim. Se me prometer isso, Adelphos será todo seu.”

“E como era a sua mãe?”

“Ela era a melhor. Seja isso.”

“Eu prometo. Nem preciso prometer, porque esse é o meu objetivo.”

Estava selado o acordo. ‘É isso que chamam de casamento arranjado?’, perguntou-se Hyoga, brevemente. ‘Pelo menos é parecido. Ninguém ama ninguém, apenas é um contrato. Devo honrar esse contrato, como uma máquina que realiza o seu trabalho.’

————————————————–

Comparada à cerimônia de Evan, a de Hyoga fora demasiada simples. O que mais chamou atenção, no entanto, não era a ocasião em si, mas a expressão insatisfeita de Lyris durante toda a festa. Enquanto Hyoga tentava disfarçar o descontentamento da esposa com conversas e bebidas, Lyris permaneceu sem sorrir ou demonstrar qualquer sentimento de felicidade. Para ela, casar-se com Hyoga era apenas a adoção de Adelphos.

‘E era ela que queria casar’, pensou Hyoga, enquanto cumprimentava os convidados. ‘Até Evan parece mais feliz com o copo de vinho do que ela’.

“Onde está Adelphos?’, perguntou ela, ao seu lado.

“Deixei com Charis. Ele voltará conosco depois da festa.”

“Tem certeza de que aquela menina pode cuidar dele?”

“Charis o adora. Não se preocupe, Lyris, ele está bem.”

Aquele fora o único diálogo que os noivos tiveram durante toda a celebração. Hyoga manteve um aberto sorriso e tentou ser o mais simpático possível, já que Lyris se recusava a mostrar-se alegre. Talvez fosse diferente do seu modo de ser, mas era absolutamente necessário naquela situação. Suas amigas da estufa conversavam sem parar, perguntando se eles teriam um ovo algum dia. Hyoga respondia que não sabia, mas todos insistiam na decisão de ter filhos para aumentar a população de homofalcos da cidade.

“Vai nascer deformado”, respondeu Evan, sorrindo.

Ofendida, Charis defendeu-o.

“Não vai, Evan! Por que você precisa pegar tanto no pé de meu mestre só por ele ser humano?”

“Não estou pegando no pé dele, não desta vez. O que estou dizendo é verdade, não é, escravo?”

“É verdade”, respondeu Hyoga, calmamente. “Li que a maioria dos filhos de homofalcos com humanos nasce com alguma deformação. Na maioria das vezes, o ovo nem chega a nascer.”

“Viu?” riu Evan, “não estou mentindo. Pobre Lyris, não é à toa que está tão chateada desse jeito.”

“Já chega”, interrompeu Myles. “Hyoga não fez nenhum comentário indelicado em sua festa, Evan. Deixe-o em paz.”

“Está bem”, respondeu o guerreiro, “eu deixo. Vou voltar ao meu vinho, agora.”

A expressão fria de Lyris era o suficiente para Evan. E tinha razão. Para Hyoga, não era nenhuma comemoração. Era o fechamento de um contrato que duraria até o final da vida, mas sem qualquer vínculo afetivo. Sorriu e ofereceu mais vinho à noiva.

“Por que não se diverte um pouco, Lyris?”

“Não. Só estou esperando o final da festa para ficar com o meu filho, meu marido. Obrigada por preocupar-se.”

O trato formal distanciava-os mais e mais. Hyoga serviu-se e bebeu, tentando superar aquela noite que parecia não ter fim. Se Lyris sorrisse, ao menos uma vez, não seria tão desgastante. Entretanto, ela permanecia inalterada. Só sorriu quando Charis colocou Adelphos em seu colo, na hora de partirem.

“Meu Adelphos! Meu filho!”

Hyoga não pôde acompanhá-la até em casa com os braços dados, pois Lyris despendia toda a atenção a Adelphos. Ao chegarem a casa, a homofalca colocou o bebê no berço e enfim fitou Hyoga.

“Agora… É hora de selarmos o nosso contrato, meu marido.”

Vendo-a caminhar até a cama, Hyoga teve outro calafrio.

“Não precisamos fazer isso, se não quiser.”

“Não. O contrato só será selado desta maneira. Vamos.”

Particularmente, Hyoga não se importava de dormir com Lyris. Contudo, perguntava-se se sua esposa não o odiaria daquela forma. Caminhou atrás dela e tirou o casaco. Lyris beijou-o logo que se sentou na cama. O beijo era breve, sem emoção, era diferente do amor que teve com Nyx. Assim como o beijo, fria também foi a noite dos dois, assim como seriam os meses consecutivos.

————————————————————

Charis executou as acrobacias no ar de forma esplêndida e em seguida pousou tranqüilamente ao lado de Hyoga, que observava de braços cruzados.

“Como estão suas asas, Charis? Alguma dor?”

“Nenhuma, mestre. Acho que já me acostumei aos alteres. Devo usar mais pesados?”

“Vamos esperar estabilizar um pouco. Daqui a alguns dias, acho que trarei outros pesos. Nesta tarde, quero que treine os seus golpes de gelo. Já sabe o que fazer, não é?”

“Sim, mestre. Você me ensinou direitinho.”

“Amanhã verei os resultados. Tire os alteres à tarde, depois dos exercícios. Vamos encerrar o treino por enquanto, pois tenho de servir Evan agora.”

“Sim… tenha um bom trabalho.”

“Obrigado.”

Charis voou em direção à sua antiga casa, que fora restaurada junto com as estufas. Hyoga, por sua vez, retornou para a cabana para almoçar. Abriu a porta, encontrou Lyris preparando a mesa. Ela fitou-o sem sorrir e encheu sua taça com vinho.

“Já está pronto. Não serei eu a culpada por atrasar-se e levar mais chicotadas.”

Hyoga sentou-se à mesa e observou os pratos de comida à sua frente. Como mandava a tradição dos homofalcos, Lyris cuidava de Hyoga como Aure, de Evan. Mantinha a casa limpa, cozinhava, limpava seus ferimentos, lavava as roupas e obedecia-lhe. No entanto, não sorria. Mesmo que pedisse, ela não conseguia sorrir-lhe. Somente ficava feliz quando brincava com Adelphos nos braços e cuidava do filho adotivo como se tivesse nascido de seu próprio ovo.

“Obrigado. Não vai comer também?”

“Depois. Vou cuidar do Adelphos agora.”

Lyris afastou-se e sorriu para o bebê, que brincava sobre a cama. Mesmo possuindo aquela fria relação com a esposa, estava satisfeito por ela sorrir a Adelphos. Para ele, a presença de Lyris era quase assustadora, mas para Adelphos, era uma mãe. De início, achara tudo muito absurdo, mas agora percebia como aquela mudança fora boa ao bebê. Por consideração ao esforço da homofalca, também tentava cumprir ao máximo suas obrigações como marido. Entretanto, a relação continuava a ser tão fria quanto no início.

A última vez que Lyris fora de certa forma afetuosa fora a noite de núpcias, a primeira e última vez que tiveram relação sexual. Depois disso, apenas diálogos secos permeavam o cotidiano, como se fossem meros conhecidos. Hyoga ainda tentava ser gentil e agradá-la, mas Lyris permanecia indiferente aos seus atos.

Mal terminou de comer, ela se apressou para limpar a mesa. Fitou-o séria e falou, como se estivesse zangada, mas sem que Hyoga conhecesse o motivo.

“Não vai trabalhar?”

“Eu vou.”

Hyoga levantou-se e viu Adelphos engatinhar sobre a cama. Aproximou-se e sorriu.

“Eu já vou, Adel. Cuide de sua mãe.”

Era estranho referir-se a Lyris como mãe, quando a imagem do cadáver de Seema abraçando Adelphos inundava seus pesadelos. Ele pousou a mão sobre a cabeça do filho adotivo e logo partiu, momentaneamente chateado por aquele ser o dia de servir de escravo a Evan. Sabia que retornaria para casa coberto de hematomas.

Caminhou entre as estufas e chegou à casa onde tanto detestava trabalhar. Evan já o esperava do lado de fora.

“Por que demorou, seu traste?”

O soco foi rápido, dolorido, quase o atirou ao chão. Hyoga desviou o olhar e permaneceu quieto. Não era direito seu manifestar-se; ele era apenas um escravo.

“Eu quero que dê uma geral na minha casa. E se tocar um só dedo em Aure… Farei com que volte carregando uma garrafa cheia de sangue seu.”

Hyoga limpou o sangue da boca com a mão e entrou na casa. Aure estava sentada no sofá, costurando um tecido. Passando longe, Hyoga começou a faxina, como um robô a obedecer às ordens do mestre. Se não terminasse a tempo, voltaria com as costas rasgadas. Mais uma vez.

“Preciso de algumas coisas da estufa. Irei pegá-las agora”, disse Aure, quando ele precisou limpar o local onde ela estava.

“Não quer que eu vá pegar para você? Terei de cozinhar mesmo.”

“Não… Eu quero ir.”

Como Evan, Aure temia e odiava os humanos. Mesmo acorrentado e mantendo a educação, Hyoga era um monstro para ela. Para ele, era estranho ver uma pessoa com a mesma aparência de Nyx sendo tão fria com ele.

“Você é estranho”, comentou ela, antes de sair. “Se Evan chegar e você não tiver terminado tudo, levará uma severa punição nas costas. Mesmo assim oferece ajuda. Por quê?”

Hyoga considerou sua resposta. Talvez fosse por ainda ter sentimentos por Nyx. Talvez porque não fosse um simples escravo.

“Eu sou um escravo de Evan. E também sou servo dos homofalcos. Dessa forma, é meu dever oferecer ajuda. Eu acho.”

“Que estranho”, reafirmou ela.

Enquanto passava o pano nos móveis, Hyoga considerou aquela questão. Se qualquer homofalco viesse e pedisse-lhe um favor, ele cumpriria. Não era porque fora um escravo nos últimos meses, mas porque jurara obediência aos homofalcos. Sua missão sagrada era servir aos homofalcos. Portanto, nada mais natural que oferecer ajuda a Aure.

‘Mas deve haver outras formas de contribuir’, pensou. ‘Desde o episódio dos jogos homofalcos, não tivemos mais ataques. Mas outros ataques virão, e isso é certeza… Eu deveria me preparar para isso, não ficar de mero servo…’

Havia preocupações demais para ficar naquela situação de escravo. Precisava investigar os guerreiros de Prometeu, não esfregar o pano úmido naqueles móveis. Treinar Charis e não perder tempo com chicotadas e castigos. Ele era um cavaleiro de Athena, afinal.

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