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Autora: Nemui
Fandom: Saint Seiya
Gênero: drama, aventura
Classificação: 16 anos
Status: Completa
Resumo: A vida de Hyoga se transforma quando entra em contato com um mundo completamente diferente do seu.
Hyoga afundou a pá na terra e lançou outra mão de lama montanha abaixo. Estava sujo dos pés à cabeça, jogando o excesso de terra que descera à cidade por uma avalanche. Por ter sido um acidente à noite, ninguém ficou ferido, mas os estragos foram tantos que Evan colocou-o para trabalhar na limpeza. Inúmeras casas e estufas ficaram cheias de neve e de lama.
O que mais o preocupava, no entanto, não eram os estragos. O que causara aquela perturbação na montanha que jamais descongelava? Que riscos ainda havia aos homofalcos? Preocupado, sentiu-se um inútil com aquela pá. Havia tarefas mais importantes que limpar aquela sujeira.
Ao seu lado, outros homofalcos ajudavam no trabalho. Lyris caminhava entre todos, oferecendo água aos que cavavam a lama. Parou ao lado do marido e ofereceu-lhe uma tigela d’água. Hyoga sorriu sutilmente e aceitou.
“Obrigado, Lyris.”
“Estou só trabalhando, meu marido.”
“Claro… Mesmo assim. Obrigado.”
Lyris permaneceu um tempo ali, ao seu lado, enquanto Hyoga continuava a trabalhar sem cessar. Eram claros os sinais de exaustão no rapaz, mas reclamações jamais viriam dele. Quando sujou a testa de terra ao enxugar o suor, Lyris tirou um lenço do bolso para limpá-lo. Limpou com sua costumeira indelicadeza, com a qual Hyoga se conformara.
“É um trabalho sujo”, comentou ele, após o cuidado. “Mas alguém precisa fazer.”
“Quando irão terminar?”
“Acho que em dois, três dias… Mas só tiraremos o grosso. Há muita sujeira por toda a parte. Mas isso não é o mais importante.”
Olhou para o alto, receoso. E se outros desmoronamentos viessem? E se todas as plantações fossem arruinadas? Toda aquela montanha podia despencar sobre eles a qualquer momento e colocar em risco a vida dos homofalcos. Ele tinha o dever de fazer algo a respeito.
“Isto não pode continuar, Lyris.”
“O que quer dizer?”
“Essa avalanche… Não pode repetir. Preciso fazer algo.”
“E o que pretende fazer, Hyoga?”
Hyoga fitou-a, pensativo. Olhava em sua direção, mas tinha a atenção voltada à mente. Num estalo, largou a pá e saiu correndo, em direção à montanha. Sabia que Myles estaria ali, com um grupo de homofalcos para investigar o problema.
Quando Evan o viu, imediatamente saltou sobre ele e espancou-o sem parar. Era o castigo por ter desobedecido e saído do posto de trabalho. Os golpes arrancavam sangue, que se misturava à sujeira acumulada do trabalho.
“Seu imbecil! Eu mandei ajudar lá atrás, não mandei? Seu traste! Idiota! Burro! Saia daqui, escravo!”
Protegendo-se com os braços, Hyoga não agiu normalmente. Quando Evan punia-o, permanecia quieto e deixava ser golpeado sem reclamar. Agora, no entanto, não era um escravo.
“Espere, Evan! Eu sei como parar com essa avalanche! Digo isso como cavaleiro!”
Imediatamente, Myles voou para junto deles.
“Não, Evan, pare! Seus direitos não vão tão longe a ponto de espancá-lo enquanto nos protege.”
O homofalco parou emburrado e afastou-se, deixando Hyoga respirar. Depois de recuperar o fôlego, o cavaleiro levantou-se e observou a enorme montanha. Não podia ter causado tamanha avalanche de forma natural.
“Alguém provocou este acidente.”
Myles concordou:
“Você também acha? Nunca houve nada parecido. É verdade que o clima aqui no norte tem mudado, mas… Não pode ser tão rápido assim. Não… Isso é obra de algum inimigo.”
“Se tivessem feito de dia, teria sido uma verdadeira tragédia. Deve ser um aviso.”
“Se for, estamos condenados. Se esta montanha vir abaixo, nossas plantações perderão a proteção da parede de gelo; estarão sujeitas aos ventos mais gelados vindos do norte… Além disso, não poderíamos impedir as mortes de centenas de homofalcos.”
Evan fungou de raiva com os comentários.
“E no que isso prejudicaria você, escravo? Não é de seu menor interesse a terra dos homofalcos.”
“Eu moro aqui”, respondeu Hyoga, secamente. “Se vocês morrerem, eu morro também. Jurei que os protegeria, acredite ou não.”
“Heh. Você não pode fazer absolutamente nada.”
Mas Hyoga podia fazer. Gelo era a sua especialidade, a única existente naquelas terras. Calculou o golpe que precisava dar e fitou Myles.
“Myles… Pode liberar o meu cosmos? Eu quero tentar algo.”
“Tudo bem, mas… O que vai tentar?”
“Sou um cavaleiro de gelo. Meu poder é congelar coisas. Se essa montanha corre o risco de desabar, darei a ela tanta neve que nunca mais derreterá.”
“Acha que pode dar certo?”
“Na Sibéria, há uma montanha em Kohotek que nunca derrete, nem mesmo no verão. Entra ano, sai ano, e todas as partículas de gelo permanecem inalteradas naquela forma. A população local acredita que ela é mágica.”
“E o que ela tem com a nossa montanha?”
“A montanha de gelo de Kohotek não foi criada na natureza.”
O cosmos queimou abundantemente, e Hyoga fitou-o, confiante.
“Ela é obra de um cavaleiro de gelo.”
No instante seguinte, o cosmos de Hyoga agiu sobre toda a região e iniciou uma nevasca que envolveu aquela montanha. Myles e Evan assistiram à cena com olhos fixos no poder do cavaleiro. Quando toda a montanha estava coberta por uma fina camada de neve, Hyoga elevou o cosmos e atirou um poderoso Diamond Dust à base da montanha.
A intenção do golpe não era destruir, mas criar. A nevasca aumentou, aos poucos, a massa que a montanha perdera. Era um trabalho demorado e exigia grande parte do cosmos de Hyoga, mas este não se importava; estava determinado a terminar tudo naquele momento.
Já passava de uma hora do limite de uso do cosmos, mas Myles não o deteve.
“Se isso não foi uma emergência, então nunca poderemos usar o seu poder. Prossiga, Hyoga.”
Hyoga assentiu e continuou a lançar o longo Diamond Dust. Sua cabeça doía, da mesma forma como sua visão começava a embaçar. Mas não podia parar. Se interrompesse aquele Diamond Dust, a montanha continuaria instável.
Ao sentir que já era o suficiente, Hyoga fechou os olhos e concentrou todo o seu poder. Era hora de trocar de técnica. Precisava ser rápido, preciso, não podia perder tempo. Um segundo se passou quando interrompeu o ataque do Diamond Dust e iniciou outro, do Freezing Coffin. Com aquela técnica, nem mesmo cavaleiros de ouro poderiam quebrar a montanha.
A vista embaçou, mas já estava terminando. Hyoga assegurou-se de que toda a estrutura estivesse estável para interromper o Freezing Coffin e cair ajoelhado no chão, esgotado.
“Hyoga! O que foi que você fez?”
“A montanha está segura”, respondeu ele, enquanto recuperava as forças. “A técnica que usei impede que ela quebre, mesmo com o poder dos cavaleiros de ouro. É uma técnica de alto nível.”
“Isso resolve o nosso problema?”
“Sim… Estou mais tranqüilo agora. Estamos a salvo.”
Myles respirou aliviado e sorriu.
“Que bom. Agora descanse um pouco. Você usou muito do seu cosmos, Hyoga.”
“Obrigado…”
O descanso era bem-vindo. Cansado, Hyoga sentou-se no chão e esperou que as forças retornassem. Jamais ficara tanto tempo lançando o Diamond Dust, mas sabia que era a melhor maneira de consertar o estrago.
Como apenas tinha elogios a dar ao cavaleiro, Evan nada falou. Observava a montanha, desconfiado, embora soubesse que Hyoga não mentira: a técnica que usara era muito refinada para permitir outra avalanche.
“Estou maravilhado”, comentou Myles. “Não é sempre, mas cada vez que você demonstra o seu poder, convence-me da qualidade de guerreiros que o Santuário possui. Não tenho dúvida de que Athena nos mandou um dos melhores.”
“Acha mesmo?” respondeu Evan, sarcástico. “Ele virou meu escravo porque perdeu para mim.”
“Mas é de longe mais poderoso, Evan, não pode negar. Hyoga… Com as motivações certas, deve ser capaz de realizar milagres com um cosmos tão poderoso.”
Emburrado, Evan quis apressar-se.
“Já descansou demais, escravo. Vamos voltar. Precisa continuar com o trabalho.”
“Esqueça, Evan, deixe-o mais um pouco. Hyoga ficou uma hora lançando um poderoso ataque. Sabe como isso drena as energias de qualquer um.”
“Isso não é da minha conta. Ele precisa continuar.”
Hyoga tentou se levantar, embora sentisse o corpo inteiro pesado.
“Está tudo bem, Myles… Evan tem razão… Eu vivo para servir.”
Contudo, as pernas fraquejaram; fora demais para ele. Hyoga caiu sentado e olhou para baixo, amargurado.
“Desculpem… Só mais alguns minutos…”
“Seu fraco”, resmungou Evan, aborrecido.
Se tivesse forças, com certeza se levantaria sem hesitar. Porém, o corpo se recusava a obedecer-lhe. Deitou-se na neve e sentiu o gelo queimar as costas. Mas estava cansado demais para sair daquele desconfortável local. Temeu fechar os olhos. Se o fizesse, dormiria e não conseguiria mais se levantar até a noite.
“Deveria voltar para casa”, disse Myles, quando notou que ele quase dormia. “Você está esgotado, Hyoga, e fez um bom trabalho. Deixe-me levá-lo até a sua casa para que descanse direito.”
“Vou continuar a limpeza. Só preciso recuperar o fôlego.”
“Evan, dispense-o.”
“Não. Permito que ele descanse aqui, mas ainda temos muita sujeira para limpar. O trabalho é dele.”
Suspirando, o líder dos homofalcos sabia que não tinha como intervir com a relação de trabalho existente entre Evan e Hyoga. Havia a promessa de submissão de Hyoga a outro. Mesmo na posição de líder, ele não tinha o direito de quebrar a palavra de ninguém.
Ao notar que recuperara um pouco de força, Hyoga ajoelhou-se e tentou levantar-se. As pernas fraquejaram, ele tentou mais uma vez. Mal conseguia ficar de pé, mas sabia que não podia parar. Cambaleou em direção à cidade, sob o olhar preocupado de Myles. Evan seguiu voando, para averiguar se não havia nenhuma falha na montanha.
A pá nunca estivera tão pesada. Mesmo devagar, Hyoga prosseguiu com o trabalho, descansando entre os arremessos de entulho. Quando o viu, Lyris aproximou-se e ofereceu-lhe mais água. Desta vez, Hyoga recusou e continuou a limpar a passagem. Se bebesse mais água, logo teria de ir ao banheiro, visita que preferia adiar o máximo possível por quase não ter mais forças para trabalhar ou deslocar-se.
“O que você fez lá?”
“Estabilizei a montanha. Agora estamos seguros.”
“Não teremos mais avalanches?”
“Não.”
Lyris desviou o olhar e afastou-se para continuar o trabalho. Hyoga lamentava por sua comunicação com Lyris não passar de secas e escassas palavras. O casamento era para ele uma relação sagrada, alicerçada no sentimento amoroso que era passado às gerações futuras. Um arranjo como aquele, cujo único interesse era a guarda de Adelphos, colocava-o numa delicada posição. Em seu íntimo, não podia aceitar que Lyris simplesmente preferisse a perfeição de suas obrigações ao amor conjugal, já que Hyoga esforçava-se para criar um vínculo afetivo com a esposa.
Não era um amor ardente. Era mais a presença constante da esposa na mente, resultada de pequenas e necessárias preocupações do cavaleiro. Ao longo do dia, perguntava-se como a esposa estava, se ela não tinha algum problema para cuidar da casa, se precisava de ajuda para lidar com Adelphos. Era apenas um sentimento morno e ininterrupto.
Por ora, preocupava-se com suas responsabilidades na cidade dos homofalcos. Sentia que aquela avalanche não podia ser um simples fenômeno da natureza. Se fosse, não se sentiria tão inseguro quanto naquele momento. A cada cavada, imaginava a onda de neve caindo sobre aquelas casas, arrastando homofalcos e plantações para a morte certa. Às vezes, olhava para trás, apenas para conferir a rigidez da camada de gelo que o Freezing Coffin gerara na montanha.
‘Devo estar paranóico’, pensou ele, após se virar uma terceira vez. ‘Fiz questão de criar uma camada de gelo mais grossa que a do Mar da Sibéria para que nenhum tremor venha a desestabilizar a estrutura. No entanto…’
Ele olhou mais uma vez. Tudo estava em ordem. Então por que se sentia tão inseguro? Se os homofalcos estavam tranqüilos, se tudo o que lhe restava era limpar aquela lama, por que tinha a impressão de que tudo viria abaixo ao menor sopro?
‘É paranóia’, concluiu. Acho que me restou algum trauma desse incidente todo. Uma noite bem dormida me deixará mais tranqüilo. Mas só depois de limpar isso tudo.’
“Tem algo errado”, comentou Evan, quando se a aproximou para verificar o trabalho. Hyoga estranhou seu modo de falar, pois o dono sempre chegava com socos e maus tratos que eram posteriormente motivos de preocupação ao rapaz, quando tratava os ferimentos.
“Senhor?”
“Eu sei o que fez com a montanha. E sei que pareço duvidar de sua capacidade, cavaleiro. Mas juro que não é isso, e você sabe que sou um homofalco com todas as letras. Não minto para ninguém.”
“Meu senhor, há algo que o incomoda?”
“Sim. A cada momento, tenho a impressão de que aquela montanha desabará sobre nós. Sinto que há algo errado. Você pode chamar isso de intuição, de impressão… Mas definitivamente há algo errado. Diga mais uma vez, cavaleiro: há a possibilidade de uma segunda avalanche?”
Hyoga olhou para o lado. Precisava escolher as palavras com cuidado, pois qualquer mentira podia lhe arrancar a cabeça. Não convinha ser sincero quando ele mesmo duvidava de seu trabalho.
“Em teoria, não. Mas esse mal-estar de que o senhor fala também me aflige. Cada vez que olho para a montanha, sinto que se quebrará ao menor descuido, como um vidro a espatifar-se no chão. Fiz questão de dar à montanha uma grossa capa de gelo para segurá-la. Mas o receio não me permite dizer com certeza se está segura ou não.”
“Então duvida do próprio trabalho?”
“Não. A técnica que utilizei foi herdada de meu mestre, que é considerado o melhor cavaleiro de gelo entre todos. Chama-se Freezing Coffin. Envolvemos o oponente com gelo, uma camada tão fina e densa que nem mesmo os cavaleiros de ouro são capazes de quebrá-la, por mais que a golpeiem. Nem a montanha da minha aldeia é tão rígida. Em teoria, ela é impenetrável aos guerreiros, mas eu não consigo me acalmar, senhor. Isso porque acredito que a montanha foi quebrada de propósito.”
“Então você também pensa assim. Muito bem. Devemos ficar de guarda até lá. Continue a limpeza, escravo.”
Hyoga obedeceu e prosseguiu a limpeza. Muitos homofalcos podiam até pensar que ele fazia aquilo por obrigação, quando na realidade o fazia de boa vontade. Já morava com os homofalcos há mais de dois anos; já fincara suas raízes naquela terra e até desenvolvera espírito próprio dos homofalcos. O mesmo horror a mentiras que os seres alados possuíam tomara conta de Hyoga com o convívio.
Passaram-se horas de desconforto com relação à montanha, quando ele ouviu um tremor do outro lado. Era exatamente o que temia acontecer. Imediatamente, dezenas de homofalcos voaram para lá. Alguns até comentaram sentir um cosmos naquela direção.
Como cavaleiro, sua obrigação era partir para ajudá-los imediatamente. Largou a pá e tentou correr, mas percebeu que poucas forças lhe tinham restado. Tropeçou na terra e desabou no chão como um galho de árvore. Tentou se levantar, mas não pôde. Assim que se sentou no chão, percebeu que o fluxo de homofalcos invertera-se: todos voavam de volta.
“Fujam! Avalanche! Avalanche!”
Quando levantou o olhar, deparou-se com os enormes blocos de gelo caindo na direção da cidade. A neve jorrava como numa cachoeira, engolindo árvores, pedras e soldados homofalcos. À sua volta, havia uma confusão de penas cortantes numa desesperada fuga.
Passou pelos civis e observou em volta. As primeiras pedras caíam sobre a cidade, derrubando telhados, árvores, ferindo pessoas. Hyoga não podia abandoná-los. Correu à frente e queimou o cosmos, que Myles acabara de libertar. Podia ao menos atrasar aquela neve para dar tempo à evacuação. Lançou o Diamond Dust com todas as forças e congelou pontos em que onde avançava com mais fúria. Entretanto, ela era como uma areia movediça; engolia seu cosmos e deixava para trás enormes blocos de gelo, que nada significavam diante da enorme quantidade de terra.
Notou que Evan e Myles voavam no entorno, resgatando homofalcos. Um estalo veio à mente: E Lyris? Provavelmente voara para salvar-se junto com todos, não devia se preocupar. Mas a visão daquela onda de neve e de terra avançando em sua direção só o deixava mais inseguro. E se acontecera algo com sua esposa?
“Mestre!”
Charis voava em segurança com Adelphos nos braços. Felizmente, nada ocorrera a eles.
“Mestre! Volte! Volte logo, ou será engolido pela neve!”
Não havia escolha. Não sabia se Lyris estava ou não ali. O Diamond Dust desgastara-o tanto que mal havia forças para salvar-se. Virou-se e tentou correr no caminho de volta. A neve era alta e já chegava à cintura. Com todas as suas forças, tentava fugir, mas mesmo um cavaleiro não poderia sobreviver facilmente a um desastre como aquele. Não podia parar.
Quando a neve cobriu-o até o peito, achou que morreria. Entretanto, subitamente foi puxado por um homofalco. Olhou para cima e viu Evan. Ser salvo pelo homofalco que sempre o torturava era tão estranho quanto Myles agir de forma estúpida.
“Evan!”
“Cale-se, imbecil. Se você morrer aqui, não poderá ser castigado por ter feito um péssimo trabalho. Você ainda me paga. Você mentiu quando disse que mesmo os cavaleiros de ouro não poderiam quebrar aquela parede. Eu mesmo quero fincar a espada em seu pescoço, cavaleiro miserável.”
Havia algo errado. Não mentira quanto à técnica utilizada; sabia que quem derrubara aquela montanha possuía uma força superior à dos cavaleiros de ouro. Um cosmos que chegava a ser quase tão poderoso quanto o de um deus.
“Espere, Evan, você viu Lyris?”
“Ela ficou para trás.”
“O quê?!”
“Ela torceu o pé quando ia decolar, e a neve engoliu-a num segundo. Tentei salvá-la, mas já era impossível. Eu sinto muito.”
“Onde foi isso?”
“Perto da estufa da antiga casa de Ájax.”
Hyoga olhou para trás e viu que só restara o telhado da casa para fora. Agitou-se e decidiu que não era hora de ficar parado.
“Evan, solte-me! Eu vou salvá-la! Solte-me!”
“O.K.”
No segundo seguinte, Hyoga estava em queda livre. Evan não hesitara soltá-lo, e Hyoga sentia-se grato por sua compreensão. Mergulhou na neve por completo e atirou-se na terra, cavando com as mãos e procurando por Lyris. Ela não podia simplesmente ter morrido na hora, podia?
‘Se eu tiver sorte, poderei salvá-la! Athena, por favor! Dê-me este milagre!’
Não enxergava nada naquela profundidade. Contava apenas com o cosmos e a força dos braços para encontrar sua esposa. Os braços queimavam com o gelo, mas não se importava; precisava encontrá-la a todo custo. Procurou a árvore que havia próxima e encontrou-a tombada. Esperava que Lyris tivesse se agarrado a um dos galhos. Não a encontrou.
Quando pensava em desistir, sentiu um cosmos. Era um cosmos reconfortante e conhecido. Era o cosmos de Athena, que o envolvia com tranqüilidade. Hyoga fechou os olhos e concentrou-se naquele poder tão familiar. Athena protegia seus guerreiros, assim como aqueles que lhes eram caros. Viu uma silhueta brilhante à sua direita e lançou seu próprio cosmos naquela direção. Era uma pessoa.
Imediatamente, Hyoga lançou-se naquela direção, cavando com fúria contra a neve que o cobria. Sentia-se como uma toupeira a arquitetar túneis subterrâneos. No entanto, aquele era apenas um ato desesperado de salvamento. Os metros eram quilômetros, naquela busca que parecia nunca terminar.
Ao alcançar a mão da homofalca, confirmou sua suspeita. Era Lyris. Mais desesperado, puxou-a para fora e notou que estava preso no rio de neve no meio da avalanche. Queimou o cosmos e conseguiu deter o gelo à sua volta, dando-lhe tranqüilidade para cuidar da esposa. Sacudiu-a cheio de temor e suspirou aliviado quando Lyris tossiu, cuspindo lama.
“Lyris!”
“O quê… Hyoga…?”
“Você está bem?”
“Mas o quê… Eu caí e torci a perna. Então a neve veio…”
Hyoga sorriu aliviado. Estava tão contente por revê-la que não se importou com a frieza do relacionamento que tinham; acariciou-a no rosto com delicadeza e abraçou-a com força.
“Não se preocupe. Vou tirá-la daqui. Estará segura comigo, eu prometo. Vamos.”
Ajeitando-a nos braços, tomou cuidado com a perna luxada e fez seu caminho na neve até alcançar a superfície. Charis abriu um largo sorriso ao vê-lo sair de lá com Lyris consciente; ao seu mestre só desejava a melhor das felicidades, embora a vida na cidade dos homofalcos fosse cruel demais a um cavaleiro de Athena.
“Mestre! Você conseguiu!”
A avalanche cessara, e os homofalcos sobrevoavam a região, sãos e salvos. Se fossem meros humanos, não teriam sobrevivido, mas as asas minimizaram os estragos. Todavia, Evan e Myles não descansaram: organizavam equipes de busca para encontrar as vítimas e averiguavam a estabilidade das rochas e blocos que pararam no meio do caminho.
Charis voou alegremente para encontrá-lo, mas parou ao ver que a neve que Hyoga detivera rachou-se e quebrou-se repentinamente sobre o casal. Por estar próxima demais, também seria atingida. O cosmos de Hyoga queimou mais uma vez quando percebeu, mas o cavaleiro sabia que não havia mais como deter aquelas pedras. Pensou, em primeiro lugar, no bem estar da pupila e lançou-lhe um ataque que a afastou do perigo. Em seguida, pôs Lyris no chão e cobriu-a com o corpo. Diante de seus olhos assustados, tentou tranqüilizá-la.
“Não se preocupe.”
Foi a única frase que pôde dizer antes de ser atingido pelos enormes blocos de gelo.
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Charis alimentava a lareira da casa com galhos secos trazidos da única floresta de que dispunham quando Hyoga abriu os olhos. Desorientado, observou em volta e tentou sentar-se na cama. Uma dor lancinante o fez desistir do movimento, e ele notou que a corrente de Prometeu estava amarrada em volta da cama, impedindo-o de mover-se.
“O que é isto?”
“Mestre! Você finalmente acordou!”
Charis correu para perto da cama e sorriu aliviada.
“Eu fiquei tão preocupada… Como se sente?”
“Como uma massa de dor. Por que estou preso?”
“Você não deve se mexer ainda, mestre. O curandeiro disse que quebrou duas costelas. Além disso, a perna também… Não tente se levantar, apenas descanse. Myles prendeu-o porque você não parava de se mexer no sono.”
“E Lyris?”
“Não se preocupe, ela está bem. Graças a você, só saiu com uma torção na perna. Aliás, ela nem está em casa agora.”
Aliviado, Hyoga finalmente sorriu.
“Que bom. E quanto aos outros?”
“Cinco soldados morreram. Egor, o prisioneiro humano, também morreu com o acidente. Os outros foram resgatados com vida e já estão se recuperando. As estufas… Estão todas destruídas, mestre. Perdemos quase todas as plantações.”
“Todo o nosso trabalho… Mas começaremos de novo e tornaremos nossas terras produtivas de novo. Preciso falar com Myles.”
“Irei chamá-lo. Precisa de algo antes?”
“Não. Apenas o chame. Estou louco para livrar-me destas correntes. Parcialmente.”
Depois de vê-la partir, Hyoga concentrou-se na intensa dor de respirar. Era como se seu corpo implorasse para que não respirasse, mas sabia que não havia como contornar o sofrimento. A perna também doía sem parar. Por estar numa rústica vila, não tinha como obter remédios que atenuassem a dor de forma tão eficiente quanto os japoneses. Não precisava de alguém para mandá-lo ficar imóvel. Sabia que não estava em condições de levantar-se.
Estava satisfeito por ter conseguido proteger Lyris. A promessa sagrada que fizera no dia em que casaram estava mantida. Protegera-a com a própria vida, como um nobre homofalco faria sem hesitar, e como ele, na posição de cavaleiro, devia fazê-lo. Tinha esperanças de que aquele infeliz incidente trouxesse ao menos um pouco mais de intimidade entre os dois.
Myles surgiu após alguns minutos e logo soltou a corrente de Prometeu da cama.
“Desculpe. Foi para a sua própria segurança.”
“Isso não importa. Myles, como faremos com a cidade agora?”
“Sinceramente… Estou perdido. Só nos restaram menos de trinta estufas. É pouco para sustentar todos. A neve engoliu casas, homofalcos, muitos estão abrigados aos montes nas cabanas que não foram atingidas. Organizei o grupo para buscar comida e consertar os estragos. Os ventos estão fortes, temo que haja mais conseqüências às nossas plantações.”
“O desastre veio depois… Mas… Não era para ter desabado.”
“Você não sentiu o cosmos?”
“Cosmos?”
“Sim. No momento da explosão, um enorme cosmos chocou-se contra a montanha. Era tão imenso que tive medo de que nos atacasse logo em seguida. Você estava ferido e inconsciente, Evan talvez não fosse capaz detê-lo…”
“Não senti porque estava desesperado para salvar Lyris. Mas… Só podia ter sido um artefato com poder divino… Ou um guerreiro mais forte que cavaleiros de ouro.”
“Mais forte que um cavaleiro de ouro… Se estamos enfrentando um oponente tão forte… Não sei como será o próximo ataque.”
A preocupação era aparente em Myles. O homofalco ficou em silêncio, desviou o olhar e tentou encontrar uma solução em sua mente. Hyoga, por sua vez, lançou sua proposta.
“Myles, peça ajuda a Athena. Sei que os homofalcos são um povo orgulhoso, mas seria melhor deixar os cavaleiros de Athena assumirem a responsabilidade desse problema.”
“Está insinuando que não somos capazes disso, Hyoga?”
“Eu estaria mentindo se dissesse que são capazes de enfrentar tais inimigos sozinhos. Mesmo que se sinta ofendido, preciso honrar minha promessa de sempre dizer a verdade.”
Cheio de raiva, Myles agarrou-lhe a túnica, mas não realizou qualquer outro movimento. Fitou-o nos olhos, e Hyoga manteve-se firme em sua opinião. Depois de acalmar-se, o líder soltou-o.
“Talvez tenha razão. Não me agrada essa idéia, pois queremos ter nossa soberania. Mas… Precisamos de ajuda, Hyoga. Por favor, entre em contato com seus amigos e peça ajuda. Não estamos lidando com simples guerreiros.”
“Obrigado por compreender.”
“Como líder, devo pensar na sobrevivência do meu povo. Mas… Não gosto disso.”
“Eu sei. Por favor, acredite neles. Não queremos prejudicá-los.”
“Ájax contou-me… Que você recebeu uma luz vermelha do cristal num interrogatório. Ele perguntou-lhe se sempre manteria a palavra verdadeira e firme. E o cristal respondeu que não, que você mentiria para nós num determinado momento. Então… fica difícil acreditar em você, Hyoga. Sei que é um bom guerreiro e homem, mas também sei que o cristal não mente. Eu acho… Que você deve tomar muito cuidado para que não descubramos sua mentira, seja lá qual for. Porque conhece a lei homofalca. Aquele que mente deve ser executado.”
“Eu nunca menti. Isso irá acontecer mesmo? Não posso mudar o destino?”
“Talvez. Mas acho pouco provável.”
Myles saiu do quarto, deixando a última observação como uma espécie de ameaça. No entanto, Hyoga tinha, pelo menos por enquanto, a consciência completamente limpa. Tomara o cuidado de dizer apenas verdades, mesmo que ofendesse alguém e fosse punido por isso. Os homofalcos acreditavam que a verdade estreitava os verdadeiros relacionamentos e evitava os falsos, de modo que todos suportassem as conseqüências de seus atos e pensamentos.
Lyris chegou um pouco mais tarde naquele dia, quando Charis saíu para treinar um pouco. Aproximou-se com a feição preocupada; mas nenhum sorriso.
“Como se sente, meu marido?”
“Com dor… Mas aliviado por vê-la bem. E a sua perna?”
“Logo melhora. Tarasios emprestou-me essa bengala de sua falecida mãe. É fácil andar e cuidar da casa assim.”
“Dê a ele o meu agradecimento. Mas sinto-me frustrado por não poder cuidar de você depois desse acidente. Queria que não tivesse de forçar a perna para cuidar do Adel e do resto. Perdoe-me.”
“Você se machucou para salvar-me. Por que se desculpa?”
“Fiz o que deveria fazer.”
E depois de uma breve pausa, acrescentou:
“Tive medo de perdê-la.”
Sua declaração constrangeu Lyris, que desviou o olhar e voltou-se à mesa, ocupando-se com a arrumação. E como se um sentimento de raiva brotasse dela, virou-se de novo.
“Isso é… Aquilo que vocês humanos chamam de hipocrisia.”
Chocado, Hyoga sentiu o ar faltar.
“Como assim?”
“Não é? Dizer algo bom, mas falso. Por ser meu marido, você sente a responsabilidade de sempre ser amoroso. Mas isso não é ser hipócrita? Afinal, casou contra a sua própria vontade porque eu o forcei a isso.”
“Mas não é falso.”
“Você diz que não. Mas que garantias eu tenho com um humano?”
A fria resposta de Lyris ferira-o no fundo. Era como se todo o sentimento que ele cultivara por ela naqueles meses fosse jogado no lixo apenas por ser humano.
“Pensa mesmo assim…?”
Lyris deixou mostrar o nervosismo e tentou virar-se para continuar a arrumação. Mesmo que o movimento arrancasse dor das fraturas, Hyoga segurou-lhe a mão.
“Não é falso, Lyris. Não é.”
Ela parou e deixou-o tocá-la. Não era um toque agressivo, que impunha suas palavras. Segurava-a de leve, gentil, como se implorasse por atenção.
“Mas se acha que sou falso… Se tem a certeza de que minto para você… Devia pegar uma faca e cravá-la em meu pescoço. Porque qualquer um que minta na terra dos homofalcos deverá ser executado. Só que a verdade… A verdade absoluta não se encontra em você, Lyris. Você pode apenas pressupor que minto, que sou falso. Pode achar que me conhece porque mora sob o mesmo teto, mas não tem a menor noção dos meus sentimentos, dos meus medos e de meus objetivos. E me magoa com palavras tão duras.”
Ainda sem fitá-lo, ela soltou-se e prosseguiu os afazeres.
“Perdoe-me por duvidar de seus sentimentos, meu marido. Não o farei de novo.”
O que seria pior para ele. Como discutir uma relação cujas verdades permaneciam adormecidas? Lyris evitou fitá-lo pelo resto do dia, deixando uma desagradável sensação de que nada havia sido resolvido entre eles.
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