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Autora: Nemui
Fandom: Saint Seiya
Gênero: drama, aventura
Classificação: 16 anos
Status: Completa
Resumo: A vida de Hyoga se transforma quando entra em contato com um mundo completamente diferente do seu.
Quando Hyoga recuperou-se fisicamente a ponto de reiniciar o treino, dois meses depois, Myles convocou uma nova reunião em sua casa para decidirem o destino de Shun na terra dos homofalcos. Apesar das buscas, não houve novos acidentes, nem pistas dos inimigos. Shun precisava retornar para Kohotek, pois abandonara o posto, importante à manutenção do poder do Santuário na Ásia.
“O que devemos fazer depois disso? Os ataques são esporádicos, não podemos ficar esperando eternamente que ocorram, pois temos outras obrigações. Devo permanecer mais um tempo para assegurar-me?”
“Você pode ficar”, respondeu Myles, “mas o problema é outro. Temo que, quando Shun for embora, tenhamos um segundo ataque.”
Hyoga bebeu um gole do vinho e cruzou os braços.
“Entendo o que quer dizer. Há a possibilidade de estarem nos vigiando. Só estão esperando o melhor momento para atacar. E esse ataque pode ser fatal. Athena não quis que mais cavaleiros viessem, por causa da lei que os prende como prisioneiros. O que podemos fazer?”
“Eu sei!”, exclamou Charis, do canto do quarto. Ela enfaixava uma mão machucada, enquanto ouvia a conversa dos adultos. “Vamos reconstruir o cristal!”
Olhares surpresos foram dirigidos a ela, mas Charis não se intimidou; correu e sentou-se à mesa, com uma expressão de esperança.
“Para recriarmos o cristal da verdade, precisaremos do poder da deusa Athena e da deusa Ártemis, estou errada? São nossas deusas protetoras.”
“Mas Charis”, replicou Myles, educadamente. “Podemos ter contato com a deusa Athena, mas não com Ártemis. Não sabemos sequer se ela vive no mundo terreno. Como podemos emprestar o seu poder?”
A menina cruzou os braços de um jeito infantil, mas pensava seriamente numa solução. Aproximou-se de Hyoga e de Shun.
“Eu tenho um pedido a vocês, cavaleiros de Athena. Poderiam me acompanhar?”
“Charis?”
“Como futura líder dos homofalcos, eu peço isso.”
Hyoga levantou-se, pronto para atendê-la.
“Muito bem. Se fala com essa autoridade, é meu dever como cavaleiro atender ao seu pedido, jovem homofalca.”
Shun seguiu o exemplo do amigo, sorrindo.
“Vamos ver que surpresa há de mostrar-me, Charis.”
“Eu não tenho certeza se dará certo, mas é a melhor teoria que posso dar… Espero não ser besteira. Venham comigo!”
Assim que saiu de casa, Charis abriu as asas e ergueu-se no ar, sem se afastar demais do grupo. Apontou para a floresta, sorrindo.
“Lá. Lá está Kedreatis, a senhora do cedro. Podemos ir até lá?”
Apesar de Myles não mostrar muita esperança em Charis, Hyoga acreditava na discípula. Se fosse uma suposição errada, certamente não seria absurda. Acompanhou-a pacientemente até parar diante da gigantesca árvore. Sua copa era tão imensa que as folhas filtravam todos os raios de Sol.
“Aqui estamos!”
“Charis, o que pretende fazer com a Kedreatis?”
“Eu quero ver se existe cosmos de Ártemis nela.”
“Mas Charis”, contestou Myles novamente, “se Athena plantou esse cedro, como pode o cosmos de Ártemis viver nele?”
“Eu não sei, é apenas um palpite. Não posso dizer, porque não consigo sentir os cosmos de animais e plantas. Mas o meu pai contou-me que Ártemis também é deusa da vegetação. Achei que valia à pena tentar…”
Shun passou a mão na casca firme da árvore, maravilhado com sua dimensão.
“Que enorme… Você disse que o nome desta árvore é Kedreatis, Charis? Não é a primeira vez que ouço, mas não me recordo de onde li…”
“Meu pai também disse uma vez que pessoas com cosmos muito fortes são capazes de sentir os cosmos das plantas e dos animais. Ele contou-me que Ártemis consegue ler os corações das árvores… Achei que vocês pudessem tentar…”
“Ler o cosmos da planta… Eu nunca fiz isso.”
“Não pode, Shun?”
“Uma vez conversei com um cavaleiro de ouro, o Shaka, a respeito disso. Ele me contou que de fato é possível sentir os cosmos das árvores e dos animais se o seu cosmos for bem desenvolvido. Ele conseguia essa proeza. Para poder ver o cosmos das plantas, era necessário possuir o cosmos supremo, Arayashiki, também conhecido como oitavo sentido, superior ao dos cavaleiros de ouro.”
Myles mostrou-se desanimado com a explicação de Shun.
“Então vocês não podem.”
Hyoga e Shun entreolharam-se e sorriram. Se puderam sobreviver à passagem ao inferno, certamente conseguiriam ler o cosmos daquela árvore.
“Myles, por favor, libere o meu cosmos.”
“Você vai tentar?”
“Sim.”
Com a permissão do líder dos homofalcos, Hyoga e Shun tocaram na árvore e concentraram os cosmos nela. As auras queimavam fortemente à sua volta, iluminando a sombra causada pela copa de Kedreatis. Com os poderes combinados, era mais fácil investigar o interior daquela árvore centenária e encontrar ali um vestígio de sua alma. Trabalharam sobre ela durante vários minutos, até que sentiram a resposta da árvore.
De repente, Hyoga e Shun gemeram e afastaram-se da árvore, com dor.
“O que houve?!”
Hyoga fitou a enorme copa, impressionado.
“O cosmos dela… É enorme. É gigante. O cosmos dela é tão extenso quanto o de um deus, mais puro que a água mais pura… O cosmos da Kedreatis…”
“Com certeza é de uma deusa”, completou Shun.
“Ela nos repeliu quando tocamos em seu imenso poder, mas não nos restam dúvidas. A cosmoenergia só pode ser de origem divina.”
“E ela não é de Athena.”
Charis animou-se e sorriu, maravilhada.
“Quer dizer que ela é de Ártemis?”
“Não é uma certeza”, respondeu Hyoga. “Não sabemos como é o cosmos da deusa Ártemis. Poderia ser de outro deus… Apolo, Deméter… Não necessariamente Ártemis.”
Shun parecia pensativo e logo se voltou ao grupo.
“Ah! Eu me lembrei! Kedreatis, a senhora do cedro. Quem foi que nomeou esta árvore?”
“Foi a própria deusa Athena, Shun”, respondeu Myles.
“Se foi Athena que o disse… Então o cosmos divino desta árvore é definitivamente de Ártemis!”
“Como você sabe?”
“Eu li nos arquivos do Santuário sobre os muitos nomes de Ártemis. Ela também era a deusa protetora das florestas, e muitas vezes era venerada sob o nome de Kedreatis, a senhora do cedro. Portanto o cosmos que esta árvore possui deve ser dela.”
Charis comemorou saltando no ar com suas asas e em seguida estendeu o braço para Myles.
“Myles, agora é a sua vez. Sabe o que fazer, não sabe?”
“Charis, não está pensando em utilizar minha espada para…? Não posso permitir que a tire da cidade.”
“O que está havendo?”, indagou Hyoga, sem compreender.
Myles tirou sua espada da bainha e mostrou a lâmina reluzente aos cavaleiros.
“Esta é Luna; uma espada forjada por Hefestos especialmente aos homofalcos a pedido de Athena, Hyoga. Ela é lendária e carrega um poder semelhante à corrente que você usa: absorve o cosmos de seu usuário e libera-o durante a batalha. É o símbolo de nosso poder e também a honra conferida apenas aos líderes. É um bem sagrado a nós.”
Sorrindo, Charis insistiu em seu plano:
“Luna é a única arma capaz de armazenar o cosmos de um deus, pois foi forjada por Hefestos, mestre. Se pudéssemos passar o cosmos de Ártemis para a espada e a enviássemos ao Santuário com o Shun, Athena poderia utilizar o seu poder para fazer-nos um segundo cristal!”
“E você supõe que Athena esteja disposta a tanto trabalho, Charis?”, questionou Myles.
“Eu não sei, mas acho que não custa nada tentar. Se Shun pudesse convencer a deusa disso, poderíamos até mesmo pedir ajuda aos demais cavaleiros, utilizando o poder do cristal ali mesmo para saber quem pode vir sem causar prejuízos aos homofalcos. Estamos num ponto em que Shun não sabe se deve voltar ou não, não é? Não acha que podemos tentar isso se ele resolver sair daqui?”
Os adultos entreolharam-se, pensando na proposta. Se Athena devolvesse-lhes o cristal e a ajuda segura dos cavaleiros, com certeza enfrentar as forças de Prometeu seria mais fácil. Myles voltou-se à pequena, ainda em dúvida.
“Mas Charis, não podemos pedir sem oferecer nada em troca ao Santuário…”
A garota pensou por uns instantes e logo um brilho surgiu nos olhos esperançosos.
“A alforria do mestre Hyoga!”
“O quê?!”
“É claro! O mestre Hyoga possui grande estima da deusa, não é verdade? Eu mesma vi quando ela o cumprimentou no Santuário. Se prometermos à deusa a alforria do mestre, tenho certeza de que Shun e a deusa colaborarão conosco. Diga-me, Shun, não presumi certo?”
“Se dessem a alforria a Hyoga… Mas é claro que ajudaria.”
“Viram? Tenho certeza de que Athena concordará”, concluiu, orgulhosa. “Mas é dever de Myles convencer Evan disso. O que me dizem?”
Confuso, Hyoga ainda tentou debater com a discípula, mas Charis estava excitada demais para ouvi-lo.
“Charis, lembre-se do que eu lhe disse sobre misturar sentimentos com…”
“Eu sei, mestre. Mas acredito que uma oferta dessa é a melhor que podemos oferecer à deusa Athena. Pense comigo, quem são as pessoas mais importantes à deusa? É claro que são os fiéis cavaleiros, que sempre estão prontos e dispostos a servi-la. O mestre Mu disse: veja a verdade visível. Nada é mais verdade que o olhar de carinho que ela lhe lançou naquele dia, mestre. É um acordo perfeito. Além disso, se o cristal voltar, poderemos saber se você ainda precisa usar as correntes de Prometeu.”
Shun sorriu e aprovou a idéia.
“Você com certeza será uma líder esplêndida, Charis. Parece que nossos interesses casaram com sua proposta. Eu, como cavaleiro, aceito levar a espada em segurança até o Santuário e providenciar a vocês um segundo cristal.”
“Espere”, interrompeu Myles. “Não se esqueçam de que a palavra final é minha.”
“Eu bem sei disso”, respondeu Shun. “A escolha está em suas mãos, Myles. Mas eu acho que devia considerar a proposta de Charis seriamente; ela não mente quando diz que Hyoga tem grande estima da deusa. Havia uma época em que vivíamos e lutávamos juntos; uma época em que nem sabíamos que Saori era a deusa Athena. Éramos amigos e tínhamos na amizade o alicerce de nossa batalha na época das Doze Casas. Saori seria capaz de morrer por nós, ela já nos provou isso.”
“Eu ainda preciso convencer o Evan disso. Não… Ele não será convencido. Dar a alforria de Hyoga em troca da ajuda de humanos? Ele nunca aceitará, Charis.”
“Mas precisa…”
“Não. Eu o conheço há anos, pequena. Sei que sua proposta é uma luz neste problema, mas… Como convenceremos Evan disso?”
Charis pensou um pouco e logo sorriu.
“Você tenta convencê-lo, Myles. Eu faço o resto.”
“O que quer dizer?”
“Confie em mim, Myles! Apenas vá até lá e tente convencê-lo. Se não conseguir, eu tenho um recurso que pode muito bem dar certo! Não se preocupem, eu prometo que tudo dará certo, mais cedo ou mais tarde!”
Dizendo aquilo, Charis saiu voando, animada com o curso que a história tomava. Sentia que ela podia mudar o destino dos homofalcos, mesmo não sendo a líder ainda.
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Evan mostrava uma feição irritada diante da proposta. Temeroso, Myles, perguntava-se até quando teria de insistir para que o cunhado perdesse a paciência e acertasse-lhe um soco no rosto.
“Pense bem, Evan. Cinco dos nossos morreram na avalanche, sabemos que não lidamos com inimigos normais. Não pense que vamos queimar nossos cosmos e resolver tudo num passe de mágica, como se o poder dos deuses não fosse maior ao dos humanos.”
O homofalco reencheu o copo de vinho pela quarta vez, mas não mostrava nenhum sinal de embriaguez; agia como sempre e até mais cauteloso, pois queriam tirar-lhe o escravo.
“Myles, você já tentou alcançar o Sol com suas asas? Já tentou secar as mãos com água? Não me peça o impossível. Eu não vou alforriar esse traste.”
“Eu sei que você tem o direito de recusar, mas estamos pensando no bem de toda a população.”
“O melhor para a população somos nós, Myles!”, replicou Evan, levantando-se energicamente. “Nós! Nossos cosmos! Nossas asas! Nossos corações! Não um bando de humanos!”
“Nós não temos poder suficiente para derrotar Prometeu, admita!”
“Nós podemos não ter poder, mas temos nossa persistência e o nosso orgulho como homofalcos! Eu lutarei até o fim e não me importo de virar um cadáver no campo de batalha se tiver lutado até a última fração de segundo possível!”
“Não vamos chegar a lugar algum brigando”, interveio Shun. “Evan, não vamos tirar a soberania dos homofalcos. Só queremos ajudá-los.”
“Fique quieto, cavaleiro imbecil. Eu tenho o meu orgulho como homofalco, Myles. A minha resposta inicial e final é e sempre será não. Não há absolutamente nenhuma maneira de convencer-me do contrário.”
“Lute comigo”, disse Shun. “Se eu vencê-lo num combate honesto, provarei que nós, os cavaleiros, estamos muito mais capacitados a proteger esta terra que você.”
“Disso eu não tenho dúvidas. Os cosmos de vocês são superiores aos nossos, Andrômeda. Mas você não entendeu. Não é questão de vencer ou não. Esta terra é nossa, nós é que carregamos a sagrada missão de defendê-la. De deuses e de humanos”
Evan fez questão de enfatizar a palavra ‘humanos’. Terminou outro copo e dirigiu-se à porta.
“Se vocês não têm outro assunto a tratar comigo, queiram retirar-se, por favor. Eu tenho trabalho pendente a fazer.”
Abriu a porta para expulsá-los de casa e deparou-se com Charis, sorrindo.
“Ainda não acabou, Evan”, disse ela. “Entrem, amigos.”
Aos poucos, simplesmente toda a população de homofalcos entrou na casa. Entravam em silêncio, com o olhar fixo no guerreiro que era exemplo para todos. Iam ocupando cada centímetro quadrado da cabana, mas faltava espaço para tantos indivíduos. Homofalcas que trabalharam com Hyoga, guerreiros que treinaram ao seu lado, companheiros de trabalho nas tarefas corriqueiras; todos apoiavam a alforria do siberiano.
“Você detém o direito sobre ele, Evan, todos sabemos. Mas todos esses homofalcos… Todos, sem exceção, vieram sob o meu convite. Eles podiam ter ficado em suas casas, mas todos vieram. Você sabe por que aconteceu isso, Evan?”
Todos os olhares caíam pesadamente sobre Evan, reprovadores num silêncio que perturbaria um deus. Irritado, Evan olhou para Charis, que o fitou friamente.
“Porque você é o único que ainda não compreendeu. Hyoga é um homofalco sem asas. Ele pode ser um humano fisicamente, mas a alma dele já pertence a esta terra, já está atrelada ao nosso modo de vida. Você é o único que insiste em torturá-lo por ter origem diferente. Nesse período, Hyoga trabalhou duro para conquistar a confiança de todos os homofalcos desta terra. Trabalhou com as homofalcas quando nenhum homem se atrevia a por o pé dentro de uma estufa, desistiu do orgulho de cavaleiro para treinar e enfrentar as mesmas dificuldades que seus discípulos, serviu a cada um de nós, por mais tolo que fosse o favor. O resultado de seu esforço é esta casa cheia de amigos. Você ainda tem o direito de mantê-lo como seu escravo, mas vai mesmo perder o respeito de tantos homofalcos?”
Evan riu e sentou-se à mesa, ignorando os presentes. Pegou a garrafa, derramou o resto do vinho no copo até a última gota e bebeu, como se estivesse entre amigos.
“Foi uma bela tentativa de intimidar-me, Charis. Nada como a filha de Ájax para passar-me tal pressão em minha própria casa. Pois bem. Você quer que eu aceite, pequena. Mas infelizmente, todos sabemos que o único interesse que você defende é o seu próprio! Você é discípula de Hyoga, é claro que é de seu interesse ele ser alforriado! Você não está preocupada com o orgulho ou com o futuro desta terra, Charis. Escutem, todos vocês. Charis pretende trazer um exército de cavaleiros humanos para esta terra, que caminharão livres e com seus poderes ao máximo entre nós. Ela acha que nós não somos capazes de defender a nossa própria terra!”
“Eles sabem disso”, respondeu Charis. “E eles concordam com minha decisão. Muitos estão com medo de perderem entes queridos, tudo será feito conforme o novo cristal de Athena. Você não pode tirar-lhes as crenças nas deusas, Evan.”
Os olhares homofalcos continuaram firmes sobre Evan. Entretanto, o homofalco manteve a resposta firme.
“Não adianta implorar. Minha resposta é não. Podem ficar me olhando o dia inteiro, a semana inteira, que a resposta continuará a mesma.”
“Então”, concluiu Charis, “devo partir ao último recurso.”
“Último recurso? Heh, a filha de Ájax é tão cautelosa assim? Tão nova e tão ardilosa é você. Aprendeu com o seu mestre?”
“Eu sou a filha de Ájax. Preciso manter o nome de meu pai com honra, Evan. Você diz que eu sou ardilosa. Mas você é um covarde por fugir da batalha com Shun. Aposto que fugiria de uma batalha comigo.”
Evan riu e levantou-se.
“Quer batalhar comigo? Garota, onde está o seu bom senso? Quer morrer?”
O desafio fora um susto até para Hyoga, que se aproximou da discípula e repreendeu-a com educação.
“Charis, não deve fazer isso. Você ainda não está pronta para enfrentar Evan num combate real e vencer. Além de perigoso, não trará resultado algum.”
“Eu sei, mestre. Mas eu jurei a você. Prometi que o alforriaria a todo custo. Eu jurei isso…”
“Você devia escutar o seu mestre, Charis”, respondeu Evan. “Ao menos uma vez na vida ele está dando o melhor conselho a você.”
“Não, eu não posso ouvi-lo. Neste momento, eu não sou a discípula. Estou desafiando-o como filha de Ájax e futura líder dos homofalcos. Vamos lutar, Evan!”
“Você me desafia. Mas a troco de quê? Se me vencer, eu alforriarei Hyoga. Mas se você perder… O que me dará em troca? Talvez… Queira passar o seu futuro título de líder para mim. O que me diz?”
“Não, Charis! Não faça uma idiotice dessas!”
Charis recuou; sabia que não podia apostar tanto sobre uma única luta. Vendo que hesitava, Evan aproximou-se.
“Talvez eu tenha sido duro demais na aposta. Você ainda é apenas uma criança, não está acostumada a jogar tão alto. Proporei algo mais divertido: o título de liderança e a alforria de Hyoga. Mas se você perder e eu ganhar a herança, permitirei que tente reavê-la quantas vezes desejar, pequena. Faremos quantas lutas quiser, quando quiser, pois garanto que você nunca me vencerá. Mas nesse período em que estiver tentando me superar, estará proibida de treinar e será a minha pequena escrava. O que me diz?”
Charis irritou-se e encheu-se de coragem com a certeza de que, em algum momento do futuro, conseguiria vencer Evan e libertar Hyoga.
“Você promete?”
“Com tantas testemunhas, acha que mentiria? Temos um trato?”
“Vamos ao campo de treino. Quero lutar agora mesmo, Evan.”
Satisfeito com a aposta, Evan saiu, seguido de toda a população de homofalcos. Hyoga deteve Charis por alguns segundos.
“Charis.”
“O que foi, mestre?”
“Você não está pronta para ele. Ele vai torturá-la até a morte para tirar-lhe o título.”
“Eu sei. Eu sei, mestre”, respondeu ela, tristemente. “Mas eu não posso mais deixar que isso continue. Um dia eu serei a líder dos homofalcos. Mas eles precisam sobreviver para que esse dia chegue. Eu preciso fazer isso, mesmo não estando preparada… Por favor, perdoe-me…”
Hyoga compreendia o tamanho do fardo que aquela garotinha de onze anos de idade precisava suportar sem um pai. Charis estava arriscando tudo naquela aposta, porque sabia que o orgulho dos homofalcos, principalmente o de Evan, certamente os levaria à ruína se alguém não tomasse a frente. Myles não tinha o perfil e a coragem para fazer aquilo. Restava ela, a filha única de Ájax, mostrar ao povo como um verdadeiro homofalco devia portar-se diante de inimigos mais fortes.
Os olhos temerosos fitavam-no, Charis tremia de medo. Aquela era uma escolha que ela fizera à sombra de sua futura vida como líder dos homofalcos, na necessidade de proteger todas aquelas pessoas em sua tenra idade. Hyoga suspirou, perguntando-se como deveria portar-se diante da pupila. Ele era o seu tutor: aquele que a ensinaria a guiar uma população inteira à glória, apesar de sua formação não ter seguido tal tendência. Ele fora educado para lutar e morrer; não para liderar. Tentou soar o mais gentil possível na resposta.
“A chave é o cosmos, Charis. Tenha isso em mente quando for enfrentá-lo. Vamos… Assistirei à sua luta de perto.”
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“Esse sujeito é um covarde”, reclamou Shun, ao lado de Hyoga. “Não tem coragem para enfrentar-me, mas corre ao campo de batalha para massacrar uma garotinha. Covarde ele é!”
Surpreso, Hyoga notou a expressão irritada do amigo, que esperava pelo começo daquela que seria uma das lutas mais injustas para ele. Ver Shun bravo era tão raro quanto ver neve derreter no inverno. O cavaleiro sempre fora gentil e controlado com todos à sua volta e nunca atacava alguém sem um motivo justo.
“Charis ainda não tem técnica e cosmos suficientes para derrotá-lo. Isso é ridículo.”
“Ele quer matá-la e conquistar o título de líder dos homofalcos. Se o fizer, com certeza sua primeira medida seria atacar os humanos.”
“O que desencadearia uma guerra entre homofalcos e humanos, entre eles e Athena.”
“E eu não sei o que faria. Charis precisa vencê-lo. Mas…”
“Ela não pode.”
Hyoga engoliu seco. Seu futuro estava nas asas de sua pequena aluna. Se ela morresse naquela aposta, ele ficaria entre os homofalcos e os humanos numa guerra completamente insana. Todos os homofalcos reuniram-se ao grande evento, mais importante que a final dos jogos esportivos dos homofalcos.
Evan pôs-se à frente da pequena homofalca, sorrindo e com as asas abertas, prontas para decolar. A garota sabia que, quando a luta fosse iniciada, teria de voar como nunca fizera. Lançou um longo olhar ao mestre, que a fitava preocupado.
Myles seria o juiz daquela batalha. Concordara com a batalha apenas se tivesse a autoridade para declarar o vencedor e o perdedor, independente da vontade dos guerreiros. Todos aguardavam o seu sinal, todos esperavam a palavra final dele; mas como avaliar o que era muito ou pouco numa batalha como aquela? Com certeza Charis não desistiria até o último minuto. Seria justo com a pequena homofalca? Charis e Evan fitaram-no na expectativa. Não, ele não podia mais voltar atrás.
“Comecem!”
Evan arrancou num vôo rasante tão veloz que Charis mal pôde desviar. O cosmos do homofalco queimou fortemente, exibindo o magma produzido por anos de treinamento, e preparou com as mãos bolas de fogo para serem atiradas à adversária. Charis decolou, pois assim se desviaria mais facilmente. Ele não estava sendo cauteloso como Hyoga lhe ensinara nos fundamentos de luta. Normalmente o oponente lutava com menos intensidade para estudar o estilo de luta do adversário. Evan nem se dava ao trabalho de seguir essa regra.
Devia ela fazer o mesmo? Não. ‘Por mais imprudente que seja o seu adversário, não se desespere. Estude os seus movimentos e descubra os seus pontos fracos’. As palavras do mestre alcançavam sua mente quase que instantaneamente durante a batalha.
Charis parou no ar e observou-o atentamente. O cosmos queimava à sua volta, facilitando-lhe a leitura dos movimentos de Evan. ‘Pare e olhe’, dizia Hyoga, nas lembranças do treino. ‘Um golpe não funciona uma segunda vez com o cavaleiro porque ele é perito em descobrir os pontos fracos das técnicas de seus inimigos, Charis. Você também deve ser assim.’ O cosmos de Evan tornou-se mais intenso, até que ele atirou bolas incandescentes em sua direção.
“Lava Bombs!”
A velocidade era imensa. Charis somente percebeu que as bolas estavam próximas tarde demais. Tentou desviar-se, mas elas não eram dirigidas ao seu corpo; mas às suas asas. No segundo seguinte, ela gritava de dor e recolhia as asas feridas. Entretanto, não teve tempo para agonizar; antes de chegar ao solo, Evan aproximou-se velozmente e aplicou-lhe um pesado golpe no estômago. O gosto de sangue chegou à boca, e Charis foi arremessada longe.
“Heh. É como lutar contra um aprendiz. Ou até mais fácil. Isso é tudo o que pode fazer, garota?”
Evan não perdeu tempo; avançou numa rasante que obrigou Charis a desviar-se correndo. Enquanto suas asas estivessem doloridas, para ela seria melhor continuar por terra. Não podia ficar parada, apenas fugindo. Precisava de uma estratégia para vencer o guerreiro mais poderoso da terra dos homofalcos. Se ele voava, e ela precisava permanecer no chão, só poderia contra-atacar no momento mais oportuno.
Queimou o cosmos, o mais forte que pôde. Baixou a guarda e esperou. Tomaria o seu mestre a mesma decisão diante de Evan? O homofalco sorriu e fitou a figura desarmada e frágil no centro do campo de batalha.
“Muito fácil. Você está pronta para perder, Charis?!”
O cosmos de Evan queimou-se, e ele tomou impulso para lançar o golpe que ela menos gostaria de ver naquela batalha.
“Magma Flood!”
Para Charis, não restou escolha a não ser voar. Todos os homofalcos levantaram vôo para evitar o magma que escorria pelo campo, e Hyoga e Shun saltaram sobre uma pedra, que não foi atingida. O desempenho do vôo estava prejudicado devido aos ferimentos das asas. Charis conseguia manter-se no ar, mas sua velocidade estava comprometida. O que fazer?
‘Esforçar-se numa batalha é importante, Charis, mas saiba quando deve fazê-lo. Se estiver com algum membro fraturado, um braço, uma perna ou até mesmo uma asa, não se atreva a passar dos limites se não for necessário. Use-os no último segundo possível para minimizar os danos.’ A lição encaixava-se perfeitamente àquele momento. Não podia depender de suas asas, a não ser no último instante. Queimou o cosmos de gelo e pôs-se a atirar golpes contra o magma do chão. Evan riu.
“Você não está pensando em congelar o meu magma, está? Charis, Charis… Seu cosmos é insuficiente, eu tenho muitos anos de treinamento a mais.”
‘Não é o tempo’, pensava Charis, ‘é a concentração. Eu posso, se usar o meu cosmos da forma certa.’
Aos poucos, um pequeno monte de gelo formou-se no lago de magma criado pelo homofalco. Charis aterrissou sobre ele. Podia parecer em desvantagem, mas Hyoga ensinara-a a manter o sangue frio em todos os momentos do combate. Uma vitória podia surgir na pior situação, se soubesse aproveitá-la.
‘O próximo golpe de Evan será o Magma Flood’, pensou. ‘Estou vulnerável, porque criei esse monte a muito custo. Evan deve achar que não sou capaz de defender-me sem voar. Isso é verdade, mas…’
Evan queimou o cosmos novamente, fazendo o que Charis previra. Vendo o jorro de magma sobre ela, saltou e voou, mas não para o lado. Queimou o cosmos para obter maior velocidade e realizou um trajeto em espiral em torno do golpe, na direção de seu oponente. No último momento, sentiu a asa doer tanto que gemeu, mas manteve o vôo firme e desviou-se para a lateral, até alcançar Evan.
“Diamond Dust!”
A rajada de ar congelado fora certeira, exatamente no alvo preferido de Charis: o pescoço. O gelo formou um espesso colar em Evan, que se defendeu do resto do ataque e contra-atacou com um rápido Lava Bombs. Dessa vez, Charis conseguiu defender-se de algumas bolas, como se fossem as pedras com que Hyoga lhe ensinara defesa. No entanto, não pôde evitar todas. Sentiu seu corpo queimar e caiu.
Antes de chegar ao magma, bateu as asas doloridas e evitou o fogo. Atirou outro golpe de gelo contra o magma e apoiou os pés rapidamente sobre o gelo antes que derretesse. Tomou o impulso e avançou sobre Evan novamente.
‘Acho que não vou vencer’, pensou; mas logo tratou de consertar: ‘não, eu posso! Mas preciso ver o Lava Bombs!’
“Lava Bombs!”
O Magma Flood, por ser um golpe mais devagar, Charis conseguia ver; contudo, o Lava Bombs era ligeiro, um golpe que para ela era indefensável. Queimou o cosmos, que já estava se desgastando, com todas as suas forças. Precisava ver através das bombas, precisava saber defender-se delas.
A primeira bomba chegou tão rápido que ela só pôde cruzar os braços sobre o peito e proteger o corpo. Os braços queimaram, mas ela encontrou ali a chave para desviar daquele ataque. Arrastada pela primeira bola, as demais não pareciam tão rápidas. Forçou as asas outra vez e desviou-se das bolas para atacar Evan com outro Diamond Dust.
O golpe atingiu-o no estômago. Charis insistiu com a rajada e lançou todo o ar congelado que podia sobre Evan. Contudo, sem saber de onde, um ataque perfurou sua asa com tanta violência que ela não pôde mais manter-se no ar. Mergulhar naquele magma foi tão doloroso, que imediatamente ela ergueu-se e saltou para o céu. Queimou o cosmos de gelo em torno para esfriar-se, mas os ferimentos já estavam feitos.
Foi a vez de Myles interferir:
“Charis, volte! Você perdeu!”
No entanto, Evan fez um gesto para que Myles se calasse.
“Charis, você perdeu?”
Ferida daquela forma, sem conseguir manter-se no ar, o mais lógico era declarar-se perdedora. Poderia desafiá-lo depois de recuperar-se, com novas táticas. Entretanto, que diferença haveria, se ela não poderia treinar antes? Não podia perder mais tempo.
“O mestre Hyoga uma vez ensinou-me: um cavaleiro luta até que o cosmos se extinga. E eu… Eu ainda tenho muito cosmos para queimar!”
Seu cosmos aumentou, mesmo estando esgotada. Se o cosmos era infinito, então ela podia levantar-se e usá-lo até morrer, certo? Bateu as asas doloridas, suportando toda a dor do corpo na direção de Evan. Aquele seria o último ataque. Ela não podia errar. A resposta de Evan foi enérgica:
“Lava Bombs!”
A técnica para desviar daquelas bolas incandescentes deveria ser a mesma: deixou que o primeiro golpe a arrastasse para observar os próximos ataques com atenção. O problema estava no passo seguinte. Pensou no sofrimento do mestre ao ser fustigado pelo chicote de Evan e aumentou mais o cosmos para avançar naquele ataque. Desviou-se das duas primeiras bolas. A terceira passou raspando por sua cabeça, mas agora ela podia vê-las claramente. A asa doía, mas ela simplesmente ignorou seu sofrimento; o único objetivo era atingir Evan.
O gelo acumulou-se na mão direita. Era uma farpa: uma única e sólida farpa que serviria de adaga. Evan estava próximo. Era só apunhalá-lo. A única forma de ganhar era matá-lo, somente assim o venceria. A última reação de seu inimigo fora totalmente inesperada:
“Magma Flood!!”
A explosão de cosmos ofuscou a vista de todos. Hyoga sabia que a luta não poderia prosseguir com Charis naquele estado.
“Myles! Myles! Interrompa a luta! Libere o meu cosmos!”
Imediatamente, seu pedido foi atendido. O cosmos de Cisne espalhou-se pelo campo de magma, esfriando tudo e permitindo-lhe invadir o campo de batalha. Correu até Evan, que aterrissava carregando a inconsciente oponente até o chão. Um fino fio de sangue escorria do pescoço do guerreiro.
“Evan! A Charis!”
“É toda sua. Pegue.”
Hyoga pegou Charis nos braços, condoído por seus ferimentos. As queimaduras certamente deixariam sérias cicatrizes; as asas estavam tão danificadas que ele duvidava da recuperação.
“Charis… Não precisava ter ido tão longe… Ainda mais quando pode tentar uma segunda vez.”
“Você acha que ela não precisava mesmo?”
“Ela foi imprudente, Evan. Deve medir riscos. Ela podia tentar de novo.”
“O resultado não seria diferente. Charis percebeu isso durante o combate.”
“Então… Terá de batalhar de novo e de novo… Sem nunca alcançar a vitória?”
“Do que está falando, cavaleiro? Ela ganhou.”
As palavras de Evan eram tão absurdas quanto dizer que ele não era um guerreiro orgulhoso.
“O que disse?”
“Ela ganhou. Você está livre.”
“Mas… Como?”
“Ela poderia ter me degolado no último ataque. Está vendo este corte fino no pescoço? Ela não me matou por compaixão, mas a vitória não foi minha. Como prometi, você não é mais o meu escravo, cavaleiro.”
Imediatamente, Evan abriu as asas e partiu para casa; não estava interessado em falar sobre a sua derrota. Hyoga fitou a discípula, coberta de sangue e de queimaduras. Quando Shun se aproximou, ergueu o olhar.
“Não fiquem parados, Charis precisa de um curandeiro!”
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