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[Saint Seiya] Prisão das Asas - Parte 14, escrita por Nemui

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Autora: Nemui
Fandom: Saint Seiya
Gênero: drama, aventura
Classificação: 16 anos
Status: Completa
Resumo: A vida de Hyoga se transforma quando entra em contato com um mundo completamente diferente do seu.


Livre do chicote e realizando trabalhos na cidade nos dias que era escravo de Myles, Hyoga conseguiu recuperar a forma física nos meses consecutivos. Ainda não tinha recuperado a confiança do povo; nem esperava que isso ocorresse, pois sabia que a ferida era funda demais. No entanto, continuou a trabalhar com empenho no conserto das casas e das estufas, realizando todo o trabalho necessário com a força dos braços.

Nos outros dias, Evan obrigava-o às piores tarefas possíveis. Embora no início o cavaleiro ainda contestasse as ordens do dono, os castigos e o tempo tornaram-no obediente. Hyoga já estava cansado de reclamar, e seu ânimo para tanto desaparecera por completo após a chacina de boa parte da população. Como o homofalco insistia em colocar a culpa do acidente sobre suas costas, preferia manter-se calado a machucar-se mais com aquela situação.

O treinamento de Charis avançava normalmente, com o aperfeiçoamento do cosmos. Já podendo congelar vários metais, Hyoga decidiu que era o momento de ensiná-la a usar o Diamond Dust. Sabia que ainda levaria pelo menos alguns meses de treino até que aprendesse, mas o entusiasmo da discípula depois que Hyoga passara a tratá-la de forma mais pessoal nos momentos de descanso parecia impulsionar o progresso de Charis.

Naquele dia, mandara Charis aperfeiçoar a técnicas com as farpas de gelo que ela mesma criara. Apesar de não possuir uma técnica semelhante, Hyoga aproveitava cada talento diferenciado para desenvolver novos golpes, que fossem mais adequados ao estilo de luta da discípula. Lembrava-se de que Camus fizera o mesmo quando ele e Isaac treinavam, desenvolvendo, cada um, técnicas diferentes.

Enquanto isso, trabalhava para consertar a casa de uma família homofalca, que teve dois dos filhos mortos na tragédia. Como o pai estivera ocupado demais com o treino e a investigação dos homofalcos, a casa continuava com diversos consertos pendentes. Hyoga, quando fora auxiliar das estufas, não chegara a conhecer a esposa, que trabalhava com os pescadores; apenas a vira passando perto de sua casa em algumas ocasiões.

Myles coordenava todo o trabalho de defesa e de manutenção da cidade, o que o tornava um estressado líder. Durante o dia, Hyoga ainda era supervisionado por um homofalco chamado Basil, que passava a cada meia hora para saber do andamento de seu trabalho. Se não fosse por ele, o soldado jamais o permitiria consertar a casa na presença da esposa, que estava sozinha com as crianças.

Hyoga tinha acabado de terminar o conserto do telhado quando desceu e entrou na casa, carregando as ferramentas. Parou à porta e esperou que a homofalca perdesse o medo que sua presença ainda causava.

“Senhora Hesper…?”

O olhar amedrontado da homofalca fez com que ele não saísse do lugar. Do outro lado da sala, ela amamentava um bebê, sentada próxima à lareira.

“Sim?”

“Já terminei o telhado. O próximo lugar é a parede. Será que eu posso?”

Hesper assentiu com a cabeça, e Hyoga entrou cautelosamente, procurando não assustá-la. Descobriu a parede, que estava protegida com um cobertor, revelando um enorme rombo causado pelos invasores. Contou rapidamente quantas toras de madeira precisaria para trocar e pôs-se a arrancar os pedaços quebrados. Um dos filhos da homofalca, curioso, aproximou-se e ficou ao lado do rapaz, observando o trabalho. Hyoga não se importou; continuou a trabalhar com disciplina: fazia poucas pausas e mantinha-se discreto como uma sombra.

Embora o conserto fosse simples, era demorado pelo tamanho do buraco e pelo perfeccionismo de Hyoga, que tentava realizar as tarefas que Myles lhe passava da melhor maneira possível, em agradecimento aos dias que se livrava de Evan. Quando o pai entrou em casa, ao final de mais um dia de trabalho, Hyoga ainda encaixava as toras de madeira no pilar.

“Cheguei, Hesper.”

“Que bom, Attis. Como foi o seu dia?”

“Normal. Não achamos nada ainda. Parece que Evan vai abrir mais o círculo de busca. Hoje ele estava com um péssimo humor. Mas mudando de assunto… o que ele está fazendo aqui?” perguntou, apontando para Hyoga.

“É o homem que Myles escalou para consertar a casa.”

“Mas o cavaleiro prisioneiro? É mesmo confiável?”

“Bem, ele me disse que não havia problemas…”

“Mas ele é escravo de Evan, que já não pensa assim.”

Aproximando-se com sua espada, o homofalco voltou-se a Hyoga, que continuava a trabalhar em silêncio, ignorando a conversa do casal.

“Rapaz.”

“Sim, senhor.”

“Saia daqui. Eu termino o serviço.”

“Meu senhor mandou-me trabalhar nesta casa hoje. Prometi que consertaria os estragos para que os soldados não se preocupassem com suas casas enquanto treinassem e cuidassem da defesa da cidade.”

“Não se preocupe. Eu só quero que você saia daqui. Agora.”

“Falta pouco, deixe-me terminar. Preciso honrar minha palavra com o meu senhor. Ou terei de voltar depois de amanhã.”

A lâmina da espada colou em seu pescoço, ameaçadoramente.

“Termine. Se tiver coragem.”

Por um momento, Hyoga perguntou-se se não era melhor encerrar o serviço e continuar outro dia. Contudo, de fato prometera que terminaria aquele conserto para Myles. Por viver numa cultura em que a palavra era sagrada, precisava respeitar cada promessa que fazia, por mais singela que fosse. Não sabia se a parede não estaria consertada quando voltasse.

Ignorando a ameaça, continuou a trabalhar. Attis pressionava-lhe a espada contra o pescoço durante todo o tempo, cortando a pele levemente e fazendo alguns fios de sangue escorrerem até mancharem a túnica. Mesmo com o machucado, Hyoga não demonstrou medo ou sinal de que recuaria. Corria mais risco de morrer se não cumprisse a ordem de Myles, pois uma promessa quebrada na terra dos homofalcos tinha como punição a morte.

Uma hora depois, terminou o conserto e guardou as ferramentas, calmo como se não fosse ameaçado. Mas assim que se levantou, Attis empurrou-o contra a parede e pressionou mais o pescoço, machucando-o.

“Está me provocando, miserável? Quer morrer?”

Desviando o olhar, ele não quis enfrentá-lo. Ele não mais possuía direitos entre os homofalcos.

“Só estou mantendo a força de minha palavra viva, senhor. Não tive a intenção de ofendê-lo. Se o fiz, peço desculpas. Como escravo, não tenho o direito de decidir se viverei ou morrerei em suas mãos.”

Nervosa, a mulher afastou a espada do pescoço de Hyoga.

“Pare com isso, Attis. Você não pode matar o escravo de outro homem!”

Sem soltá-lo, Attis continuou a encará-lo.

“Você é o professor de Charis, não é mesmo?”

“Sim, é verdade, senhor.”

“Acha mesmo que merece tal honra?”

Hyoga não quis responder, simplesmente porque não sabia se era merecedor. Ainda precisava descobrir aquela resposta no futuro, não queria dizer qualquer mentira. Diante do silêncio do rapaz, Attis enfureceu-se e golpeou-o no rosto, derrubando-o no chão.

“Responda! Acha que merece?! Um miserável como você! Se não fosse por sua missão estúpida, Evan teria lutado ao nosso lado e eu sei que todos aqueles homofalcos não teriam morrido. Os meus filhos também! Você também tinha a missão de proteger os homofalcos! Aposto como está do lado dos guerreiros de Prometeu.”

“Eu juro que não estou…”

“Mentiroso!”

Dando outro soco, Attis pensou em matá-lo. Mas sabia que Herse tinha razão quanto ao fato de matar o escravo de outro homem. Chutou-o para o meio da sala, irritado.

“Evan tem razão. Você é um traste.”

“Ele não é!”, gritou Charis, à porta da casa. “Por favor, Attis, pare de machucá-lo.”

“Charis… Você está sendo controlada por este homem. Tendo a sua confiança, ele pode controlar os homofalcos usando a autoridade sobre você como professor.”

“Meu mestre jamais faria isso, Attis. Por favor, deixe-o ir.”

“Você não tem o direito de dar-me ordens, pequena. O líder é Myles. Você só terá o trono daqui a vários anos.”

“Não estou mandando, estou pedindo, Attis. Conheço minha posição e sei que não tenho o direito de reivindicar o título de líder enquanto não merecer. Por isso… A única coisa que posso fazer por meu mestre agora é pedir que o deixe ir, por favor.”

Sentando-se no chão, Hyoga enxugou o sangue da boca. Olhou para Charis de forma fria.

“Charis, você não deve estar aqui. Volte e espere a minha volta. Já esqueceu que sou um escravo e que você não é ninguém além de minha discípula? Se não quiser que eu passe exercícios ainda piores, obedeça-me.”

Embora parecesse surpresa, Charis sabia que aquele era o seu mestre que ordenava, não o Hyoga das horas livres. Fechou os olhos em sinal de vergonha e retirou-se educadamente.

“Entendi, mestre. Peço desculpas por meu comportamento.”

Voltando-se a Attis, Hyoga levantou-se e pegou as ferramentas.

“Se o senhor não se opõe, gostaria de encerrar as minhas atividades por hoje. Tenho a sua permissão?”

Antes que o marido falasse, Herse colocou-se à frente.

“Sim, escravo, você a tem.”

“Então irei me retirar. Com licença.”

Hyoga saiu da casa, deixando o enfurecido Attis. Sendo objeto de ódio de inúmeros homofalcos, o melhor que podia fazer era obedecer e respeitar as regras, rezando para que sua vida não fosse exterminada por um homofalco vingativo. Passou a mão sobre o ferimento e viu o sangue cobrir os dedos, cena comum após um castigo. Retornou para casa e entrou na sala, já esperado por Charis.

“Mestre…”

“Como foi o treino, Charis?”

“Consegui farpas de dois metros, mestre, parecidas com cabos de lança.”

“E a resistência?”

“Ainda não é tão boa quanto lanças reais.”

“Então quero que continue trabalhando nisso. Seu objetivo agora é conseguir lanças tão fortes quanto aço.”

“Entendi, mestre. Trabalharei para isso.”

“Assim espero. Vamos encerrar o treino por hoje, Charis.”

Charis relaxou visivelmente e pegou a bacia com água morna que preparara.

“Então posso cuidar dos seus ferimentos?”

Sentando-se na cadeira, Hyoga tirou a túnica e mostrou as costas chicoteadas que ainda se recuperavam e o ferimento do pescoço.

“Por favor.”

Enquanto enxugava o sangue do pescoço, a discípula desabafou, angustiada:

“Você não é um traste.”

Hyoga riu, diante da sinceridade da discípula.

“Evan já me chamou disso tantas vezes que até sinto como se fosse verdade.”

“Mas não é, ele está errado! Eles não o conhecem…”

“Charis, não ligue para o que dizem. Se eu ligasse, enlouqueceria.”

“Não posso. Não posso, mestre… Eu me sinto tão impotente do modo como estou agora. Sou só uma discípula, não tenho poder ou autoridade para ajudá-lo. Ainda não tenho forças para enfrentar Evan e alforriá-lo. Não tenho como convencer o povo de que você nunca quis que eles morressem.”

“Charis…”

“Eu queria tanto…”

Percebendo que ela chorava, Hyoga virou-se. Charis parou de limpá-lo e passou a enxugar as lágrimas.

“É como se xingassem o meu pai. Dói tanto.”

“Eu não sou o seu pai.”

“Mas é tão importante quanto, mestre. Não é justo. Só porque é humano… Só porque não possui asas. Não acredito que eu também fui assim um dia. Você não é um traste. Não merece ser tratado assim. E eu não posso fazer nada, nem dizer que eles estão errados, mestre. Você não me permite, pois sei que sua posição lhes dá direito de maltratarem-no. Mas eu queria ajudar. De alguma forma, eu queria ajudar.”

Hyoga sorriu e ofereceu-lhe as costas de novo.

“Você já me ajuda tanto todos os dias. Do que está reclamando, Charis? Percebeu como é a única pessoa que eu deixo que limpe os meus ferimentos?”

“Mas a Eleni e a Aure, quero dizer, a Nyx…”

“Elas morreram. Só você pode fazer isso.”

Era verdade. Só restava Charis para ele. Ela continuou a tratá-lo, em silêncio. Ao final, preparou a mesa e serviu o jantar. Enquanto comiam, Charis olhava para a mesa, angustiada. Tentando acalmá-la, Hyoga iniciou outro diálogo.

“Sabe, quando você crescer e virar líder, Adelphos terá idade para iniciar o treinamento. Eu sei que a decisão é dele, mas gostaria que ele fosse um cavaleiro de Athena, para deixar discípulos para o futuro com as técnicas de Camus. Assim, daqui a cem anos, ainda existirão cavaleiros de Athena com as mesmas técnicas. Seria como se Camus e eu ainda servíssemos Athena por meio de seus corações. Essa continuação é importante para mim, já que sou seu único discípulo vivo.”

“Mas eu também terei discípulos no futuro, mestre. Suas técnicas continuarão vivas neles.”

“Eu sei, Charis. Fico feliz por ouvir isso. Mas é importante que elas passem aos futuros cavaleiros de Athena. A deusa sempre foi muito importante para todos nós. Deixar cavaleiros com as mesmas técnicas que desenvolvemos é manter a honra de nossos mestres.”

“Por isso deseja que Adelphos seja um cavaleiro de Athena. Isso o torna mais importante que eu, mestre?”

“É claro que não, Charis. Treinar você também é uma forma de honrar Athena, pois prometi que protegeria os homofalcos. Se você lutasse contra os nossos inimigos usando as técnicas que ensinei, seria o mesmo que eu lutar contra eles, dentro de você. E isso também faz parte de minha missão.”

“Mas mestre, você não se preocupa com o que eu vá fazer depois de virar líder?”

“Como mestre, não. Mas como pessoa… É claro que sim. Só que eu não tenho o direito de intervir, Charis. Você será a líder dos homofalcos e eu, um mero escravo, se ainda o for. Bem, se não for um escravo, serei um prisioneiro, não há muita diferença. Você deve governar honrando os ensinamentos de seu pai, Charis. Portanto, eu não poderei dizer-lhe o que fazer, será você quem decidirá o futuro dos homofalcos. Independente do que decidir, eu sempre viverei nesta cidade com a missão sagrada de protegê-los.”

“Sempre… Não sente nada por não poder voltar ao Santuário, mestre? Você ficou tão feliz quando foi até lá.”

“É, fiquei bem contente. É que sinto falta dos meus amigos, sabe? Nós arriscamos nossas vidas juntos para atingir um mesmo objetivo… Lutamos um apoiado na vida do outro. É o tipo de amizade que não se destrói, nem se um dia virarmos inimigos. Não sinto tanta falta de lugares, é mais das pessoas.”

“Não sente de nenhum lugar? Eu gosto destas montanhas geladas.”

“Há um local que me é especial. É a planície congelada do mar da Sibéria, perto da minha antiga casa, em Kohotek.”

“Eu sei! É o lugar onde está o navio de Natássia!”

Surpreso, Hyoga quase se levantou ao ouvir sobre o navio.

“O quê?”

“Foi Shun que me contou! Ele disse sobre uma mãe que tinha se sacrificado para salvar o filho num naufrágio. Ele comentou que estava cuidando do túmulo por respeito aos dois. É esse o local de que tem saudades, mestre?”

Hyoga demorou a responder, pois tentava controlar o choque. Por fim, sorriu tristemente.

“Sim, Charis. É esse. Sinto falta daquele túmulo.”

“Shun contou-me que o ato de heroísmo de Natássia sempre o inspirava a ser um cavaleiro melhor. Acho que é o mesmo com você, não é?”

“Ele não precisa de inspiração, Charis. Shun já é um grande cavaleiro.”

“Gostaria de voltar para lá de novo, mestre? Quando for líder, deixarei que vá para lá quando quiser!”

“Obrigado, Charis, mas sua permissão não é suficiente. Só posso sair daqui quando tenho uma missão de Athena a ser cumprida.”

Após pensar um pouco, Charis veio com outra idéia.

“Pois bem. Sei que é estranho falar sobre isso, mas é o mínimo que posso fazer, já que a palavra de Athena o prende aqui, mestre. Quando você morrer, independente de ser por causa da batalha ou do passar dos anos, prometo que o enterrarei naquele navio, se essa idéia o agradar, o que acha?”

Mais uma vez surpreso, Hyoga ficou sério e desviou o olhar, sentindo os olhos arderem. Charis não tinha idéia da importância da promessa que acabara de fazer.

“Seria maravilhoso, Charis.”

“Então assim o farei, mestre! Mas espero que só seja daqui a muitas décadas! Assim eu cuidarei do seu túmulo e o de Natássia ao mesmo tempo.”

Terminando de comer, Hyoga recolheu o prato. Charis ainda levantou-se para ajudá-lo, animada.

“Shun ensinou-me que um cavaleiro não precisa conhecer a pessoa para ajudá-la e que foi por isso que você me ajudou anos atrás, mesmo pagando o preço de morar aqui. Shun também não conhece Natássia, mas mesmo assim cuida do túmulo dela, leva flores, reza… Os cavaleiros são mesmo incríveis.”

Suspirando, Hyoga lavou a louça e voltou-se em seguida para a pupila.

“Charis… Para você chegar até o navio, precisa quebrar uma camada de gelo enorme, vencer a fortíssima corrente marítima que existe naquela região e a profundidade. Precisaria ser tão forte quanto um cavaleiro de ouro.”

“Não importa. Se prometo, cumpro. Se preciso ser tão forte quanto um cavaleiro de ouro, assim serei, mestre.”

O rapaz sorriu de novo e pousou a mão sobre o ombro dela, gentil.

“Charis, se fizer isso, quero que faça mais uma coisa.”

“O que quiser, mestre.”

“Sabe o rosário que sempre carrego?”

“Sim, que possui um grande valor para você. Lembro-me bem disso.”

“O dia que me enterrar naquele navio, pegue o rosário e leve-o com você.”

“Mas ele é importante para você, mestre.”

“Eu sei. Mas Charis… Natássia é a minha mãe.”

Foi a vez de a discípula ficar surpresa; até deu um passo atrás após ouvir a revelação.

“É verdade, mestre?”

“Sim. Portanto, se me enterrasse lá, seria o maior presente que poderia me dar. Maior do que qualquer ajuda, maior do que minha alforria. Se o fizesse… Eu nem sei como poderia agradecer-lhe. Portanto, eu gostaria que levasse o meu rosário como prova do sentimento de gratidão.”

Enfim, Charis percebeu como era importante para Hyoga a promessa que acabara de fazer. Decidindo que devia ser uma guerreira tão forte quanto um cavaleiro de ouro para cumprir sua promessa, sorriu.

“Eu o levaria com muita honra, mestre! Eu prometo a você!”

Mantendo presas as lágrimas que queria derramar, Hyoga respondeu, emocionado:

“Obrigado, Charis. Muito obrigado…”

——————————————————————-

Geralmente, Myles ocupava-se de todo o trabalho de líder sem precisar consultar Hyoga para nada, mantendo o contato de tempos em tempos com o Santuário. A resposta de Athena a Hyoga sobre o sonho ainda não chegara, embora Hyoga tivesse insistido no retorno. Desanimado, o rapaz preferiu concentrar-se nos consertos e no treino de Charis, deixando o resto em segundo plano.

Os preparativos para a competição envolviam o trabalho de todos, inclusive de Hyoga, que ajudou a reformar o pequeno coliseu existente na cidade. Mesmo Evan era obrigado a ajudar na construção e por isso Hyoga teve um descanso reparador dos castigos de Evan, que o colocava para trabalhar com todos.

A data da festividade chegava, quando outro incidente chamou a atenção dos homofalcos. Hyoga ajudava a erguer um pilar de madeira com outros homofalcos, forçando todo o corpo contra a sua base. De repente, todo o apoio na parte superior desapareceu, assim que os homofalcos saíram voando em direção à entrada da cidade, ao chamado dos soldados. Sem o cosmos, não havia como suportar aquele peso sozinho, e Hyoga se viu obrigado a desviar para o lado e deixar o tronco cair.

Curioso, foi atrás dos demais para descobrir o que ocorrera. Ficou chocado ao ver que os soldados tinham prendido mais dois homens que ocasionalmente foram parar ali. Myles levava uma das mãos à cabeça, perturbado.

“Isso não é normal. Em dez anos, surgem três homens. Em dois, mais quatro. E o pior é que não temos mais o cristal.”

“Como assim, senhor?”

“O cristal foi destruído no ataque, Hyoga. Não temos mais como saber se esses homens trarão mal aos homofalcos. Ainda estou preocupado com aquele que fugiu também.”

“E o que fará agora, então?”

“Exatamente o que Ájax faria. Transformá-los em prisioneiros permanentes.”

“Vai deixá-los até a morte?”

“Não há outro jeito. Mas dará trabalho cuidar desses caras por cinqüenta anos até que morram de velhice. Você tem alguma sugestão?”

“Mandá-los ao Santuário?”

“Eles seriam executados por invadir território proibido do Santuário. Assim seria mais fácil se nós os matássemos de uma vez.”

“Entre matá-los e mantê-los por cinqüenta anos… Prefiro deixar que vivam.”

“Pacifista você, hein? Mas também não estou interessado em tirar vidas sem motivo. Não sabemos se eles são bons homens, nem se são mentirosos. Pode fazer o favor de conversar com eles depois de mim? Acho que é o seu dever como cavaleiro responsável do Santuário.”

“Tem razão. Eu irei com você.”

Jogados na prisão, os homens gritavam desesperados para serem soltos, enquanto os soldados apontavam as lanças para eles, exigindo silêncio. Hyoga notou, enquanto os via reclamarem, como fora bem comportado comparado aos demais. Sabia que de nada adiantaria espernear e reclamar, quando havia dezenas de soldados em volta, prontos para detê-los.

Myles parou diante deles, com Hyoga. Imediatamente os homens olharam para Hyoga, como se o reconhecessem.

“Você! Você! Por favor, tire-nos daqui! Foi você que nos trouxe até aqui!”

Surpreso, Hyoga percebeu que falavam de seu clone.

“Eu?”

“Sim, foi você que nos disse que haveria abrigo nesta vila! Por favor, tire-nos daqui! Nós só buscamos ajuda!”

Hyoga e Myles se entreolharam, confusos.

“O que acha, Hyoga?”

“Você sabe que não saí daqui. Não posso tirar a corrente e trazer outros homens pra cá. É o mesmo impostor que atacou os homofalcos da última vez.”

Voltando-se aos prisioneiros, o líder colocou-se à frente.

“Vocês estão enganados. Hyoga é nosso prisioneiro, como vocês. É impossível ele sair desta cidade sem que eu saiba.”

“Mas nós vimos. Estávamos perdidos nas montanhas, procurávamos ajuda. Não tínhamos comida nem água! Então ele surgiu à nossa frente sorrindo e disse que aqui encontraríamos abrigo e ajuda!”

“E depois? O que aconteceu com ele?”

“Desapareceu no meio da neve, eu juro! Por favor, solte-nos.”

“Infelizmente eu não posso fazer isso. Deixe-me explicar-lhes, humanos. Esta é a cidade dos homofalcos, criaturas mitológicas, meio humanas, meio pássaros. Vivemos sob a proteção sagrada das deusas Ártemis e Athena. Este território é proibido aos humanos sob a pena de morte e pertence à deusa Athena.”

“Por favor, não nos mate! Não sabíamos que era proibido.”

“Fiquem calmos. Aqui, na cidade, nós somos os donos da lei. Portanto, enquanto não quisermos matá-los, vocês estarão bem. Basta obedecerem nossas leis.”

“E que leis são essas?”

“A lei mais importante dos homofalcos é honrar as palavras. Não importa o que aconteça, um mentiroso, quando descoberto, deve ser morto. Nós, homofalcos, prezamos a honra da promessa acima de tudo e nunca mentimos. Se descobrirmos que um de vocês mentiu, imediatamente o degolaremos como punição.”

“Se obedecermos a essas regras, irão nos soltar?”

“Não. Nós precisamos nos proteger contra humanos. Não sabemos o que os homens podem fazer depois de deixarem este local sagrado. Portanto, vocês ficarão como prisioneiros nossos pelo resto de suas vidas.”

“Não!”

“Ou se preferirem, podem pedir a clemência de Athena. Mas isso terão que negociar com o Hyoga. Ele é o cavaleiro de Athena responsável pela segurança dos homofalcos.”

“Mas você disse que ele era um prisioneiro como nós.”

“Sim, eu sou”, respondeu Hyoga, calmamente. “Devido a alguns acidentes com o meu clone, fui feito prisioneiro por medida de segurança. Mas isso não muda o meu título e a minha honra. Como cavaleiro de Athena, minha missão é proteger os homofalcos com a vida e respeitar suas leis e líderes.”

“Por favor, ajude-nos, amigo. Somos meros alpinistas, só viemos para conhecer as montanhas. Temos família, temos uma vida a cuidar.”

“Bem, como Myles disse, vocês podem enviar uma carta ao Santuário pedindo por clemência. Se forem perdoados, serão transferidos para lá, onde ainda serão prisioneiros, mas terão mais liberdade. Provavelmente serão obrigados a auxiliar os cavaleiros como servos.”

“Isso é ótimo, senhor!”

“Mas… Há 95% ou mais de chance de serem considerados culpados de seus atos. Se assim acontecer, receberão a pena de morte e serão executados. O que preferem?”

Atônitos, eles calaram-se.

“Eu sugiro que se acalmem”, continuou Hyoga. “Enquanto forem prisioneiros, receberão tudo que necessitarem; comida, cobertores.”

“Mas precisamos voltar, cavaleiro! Temos família!”

“Eu sinto muito. Vocês atravessaram um território proibido. Antes virem para cá, provavelmente passaram por uma pequena aldeia, chamada Kohotek. Eles deveriam tê-los avisado de que este é um território proibido”

O homem que estava mais desesperado para sair respondeu:

“Mas eles não nos avisaram! Não sabíamos de nada!”

“Em Kohotek? Há um cavaleiro ali, chamado Shun. Ele é um grande amigo meu, que atualmente está encarregado de avisar todos os turistas. Está dizendo que ele não cumpriu com as obrigações?”

“Não, não cumpriu! Não sabíamos deste local.”

Voltando-se ao segundo homem, Hyoga indagou:

“Você. Seu companheiro está dizendo a verdade? Responda.”

Myles ainda tirou a espada da bainha, ameaçando-os.

“Sabe que todo mentiroso é degolado em nosso território. Nós temos como descobrir a verdade, humano.”

Nervoso, o homem encolheu-se.

“É… mentira. Nós encontramos o Shun, ele nos disse que era proibido… Mas Sofon quis explorar terras desconhecidas. Por favor, perdoe-nos.”

Irritado, o companheiro avançou sobre ele, dando-lhe um soco.

“Maldito seja, Egor, pare de mentir!”

“Já chega!”, interpôs Myles, irritado. “Guardas, separem-nos em prisões diferentes. É óbvio que um deles está mentindo, resta sabermos qual dos dois é. Envie uma carta ao Shun, perguntando a verdade. Assim que soubermos, um deles morrerá. Mas que nojo que me dá.”

Naquele momento, Hyoga sentiu-se igualmente enojado. Quando vivia com os humanos, era normal ver mentiras, até em cavaleiros em missão. A mentira ainda era vista como justa na tática de luta dos cavaleiros em guerra contra os demais deuses. Contudo, o convívio com aquele povo mudara seu conceito aos poucos. Agora, Hyoga sentia-se profundamente enojado com a falta de honra daqueles homens, que não sabiam pagar por suas palavras. Começava a compreender a aversão que os homofalcos possuíam pelos humanos, que mentiam a toda a hora para obter vantagens e lucros. Deu as costas e seguiu Myles, que caminhava de volta à construção.

“Que nojo que eles me dão, Hyoga!”

Em silêncio, Hyoga devorava aquela sensação de podridão que infestava o mundo dos humanos. Percebeu, então, que não era mais um humano. Já estava tão acostumado a honrar a palavra e dizer a verdade que a mentira estava longe de seu perfil. Já sabia que Sofon era o mentiroso, pois Shun jamais faltaria com suas obrigações como cavaleiro. Tal mentira era uma ofensa ao amigo, deixando Hyoga revoltado com a falta de honra nos humanos.

“Aqueles humanos nojentos. Tantas palavras blasfemadas! Hyoga, não acredito que você tolera coisas assim naquele lugar!”

A aversão de Hyoga não era falsa. Convencido de que não mais poderia viver ao lado dos humanos, respondeu:

“Também não acredito. Mas também fiquei com nojo da mentira deles. Eu nunca imaginei que sentiria tanta raiva por alguém mentir. Eu não conhecia, ou pelo menos não honrava a palavra antes de vir para cá. Já cheguei a mentir, senhor, não aqui, é claro, mas em Kohotek. Mentiras que usamos para não ferir os sentimentos dos outros. Mas agora… Eu sinto raiva até dessas mentiras. Sinto que a palavra de fato é sagrada, de fato nos faz fortes. Se não pode manter a palavra, você é um fraco, um mero sobrevivente.”

“É claro. Todos morremos um dia. Forte é aquele que vive em paz com sua palavra, que cumpre suas promessas e luta por elas até a morte. Um homem assim é que merece crédito. Ájax foi assim.”

“Quem mente, merece morrer. Se aquele Sofon estiver mentindo…”

“E provavelmente está. Então a honra de Shun está sendo manchada.”

“E eu fiquei com raiva por isso. Pensei, ‘um homem que mente assim merece morrer’. Foi a primeira vez que isso veio à minha mente. Acho que é porque faz tempo que vivo com os homofalcos, respeitando a lei da palavra sagrada.”

“Você acostuma, não é? Bem, Hyoga, você já pode ser considerado um homofalco depois dessa. Finalmente compreendeu a importância da nossa lei.”

Pensando em Nyx, Hyoga parou de andar e encarou Myles, entristecido.

“Mas… Mesmo compreendendo isso… Ainda acho que é uma lei triste, senhor. Nyx não teve escolha senão mentir. Era ela mesmo culpada?”

“Ela era”, respondeu Myles, sem hesitar. “Você sabe que era. Mas Hyoga, a lei dos homofalcos não é a mesma para os homens. E nenhuma lei é justa de verdade, pois muitos criminosos não sabem por que estão errados. É uma questão de ponto de vista. Venha, vamos continuar. Daqui a alguns dias, homofalcos sorridentes preencherão o coliseu. É dever meu dar-lhe ao menos um pouco de alegria.”

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