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[Saint Seiya] Prisão das Asas - Parte 13, escrita por Nemui

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Autora: Nemui
Fandom: Saint Seiya
Gênero: drama, aventura
Classificação: 16 anos
Status: Completa
Resumo: A vida de Hyoga se transforma quando entra em contato com um mundo completamente diferente do seu.



Adelphos berrou no meio da madrugada, despertando tanto Charis, que se mudara para a cabana do mestre, quanto o próprio, que era obrigado a ocupar a posição de mãe. Sonolento, Hyoga levantou-se e pegou a bengala de madeira, que fizera para ajudá-lo a caminhar, enquanto se recuperava da fratura. Tirou um copo da chaleira contendo uma leve sopa que ele usava para substituir o leite e molhou um lenço. Até então, aquela era a forma mais prática de cuidar do pequeno, que ainda só sabia sugar.

Sentou-se na cadeira em frente à lareira e ofereceu a ponta do lenço, que Adelphos sugou vigorosamente. Charis levantou-se, zonza com a súbita mudança de posição.

“Mestre? Precisa de ajuda?”

“Não, estou bem. Volte a dormir, Charis.”

“Está bem.”

Hyoga continuou a alimentá-lo, cada vez com mais sono. Ao final do copo, não resistiu e dormiu de novo, sendo despertado logo em seguida com novos choros. Sem querer incomodar Charis, que se empenhava cada vez mais no treinamento, saiu casa carregando o protegido. Parou ao lado de um arbusto, deixando que Adelphos brincasse com um galho.

Sentia-se cansado. Não apenas por cuidar do bebê de Seema; mas por todos os acontecimentos. O apetite diminuíra, sua forma física decaíra visivelmente. A fratura obrigava-o a mancar; talvez não mais pudesse caminhar normalmente depois de sarar. O ódio de muitos homofalcos que foram atacados por seu clone deixava-o psicologicamente desgastado. Não podia mais se considerar um jovem saudável.

Aure iniciara um relacionamento com Evan, talvez em breve se casariam. Na sua posição de escravo, Hyoga também precisava servi-la, fato que não o incomodava tanto quanto imaginar Nyx apaixonada por alguém como Evan. Mas o que realmente o destruía, pouco a pouco, eram os castigos cada vez mais rigorosos do homofalco. Evan fizera questão de devolver dez vezes mais cada insulto que levara durante a viagem e cada sentimento de revolta com a chacina da metade da população de homofalcos. E como Hyoga podia justificar tal desastre?

Ajustando Adelphos contra o peito, andou mais um pouco, até ver o caminho que terminava nas estufas. Muitas das construções ainda estavam destruídas, exigindo da população esforço e lágrimas para consertar tudo. Fazia três meses desde o ataque, mas pouco da paisagem destruída fora alterado, pois muitos ainda careciam de forças para superar as perdas.

O bebê encolheu-se de frio e fechou os olhos, sonolento. Hyoga agradeceu aos céus por Adelphos acalmar-se rápido e cobriu-o melhor.

“Finalmente resolveu dormir, garoto. Vamos voltar.”

Assim que deu meia volta, notou que sua sombra estava dividida em duas. Olhou para trás e sentiu-se como se olhasse um espelho. Havia outro Hyoga, que o encarava sem medo.

“Parece que estou num estado bem melhor que o seu. Deveria ter vergonha, já que é o Hyoga original.”

“Quem é você?”

Hyoga deu alguns passos atrás, segurando o bebê com os dois braços para protegê-lo melhor e derrubando a bengala.

“Não se preocupe. Não vou atacá-lo. Só estou aqui como mensageiro do senhor Prometeu, cavaleiro de Athena.”

“Foi você que atacou os homofalcos, três meses atrás. Vocês são assassinos!”

“É, aquilo foi divertido. Há tempos queria vingar-me desses homofalcos imbecis.”

“Seu desgraçado! Por que estão fazendo isso? Por que Prometeu quer acabar com os homofalcos?”

“Não sei, sinceramente. Prometeu só parece estar muito chateado com a existência dessas bestas. Mas não vim aqui para isso. Só vim aqui para dizer isto: Athena, esta é a resposta por interferir nos meus planos. Homofalcos são sacrifícios que devem ser feitos pelo bem da humanidade, que nós dois protegemos. É um paradoxo tentar ajudá-los, pois eles invadirão a terra sagrada dos homens para devorá-los. Retire o seu cavaleiro da terra dos homofalcos e ofereça-os como sacrifício em minha homenagem. Essas foram as palavras de Prometeu a Athena. Seu dever é transmiti-las, cavaleiro de Athena.”

O falso Hyoga ainda acrescentou, com uma risada irônica:

“Já que lutar você não pode mais.”

O cosmos do inimigo floresceu, e Hyoga sabia que não poderia escapar se fosse atacado. No entanto, quando foi tocado pelo poder do clone, perdeu a consciência e logo despertou novamente, como se tudo tivesse sido um sonho. Estava em sua casa, sentado na cadeira, com Adelphos no colo. Segurava o copo com a sopa e o pano, revivendo o momento em que caíra no sono ao alimentá-lo. Levantou-se, tentando acalmar o choro do bebê. Era um fortíssimo deja vu, que Hyoga desconfiava não ser uma simples impressão. Saiu de casa e parou ao lado do mesmo arbusto. Adelphos brincou de novo com o mesmo galho.

Desejando saber até onde chegaria naquele deja vu, Hyoga caminhou em direção às estufas, repetindo cada movimento seu como bem lembrava. Esperou até que Adelphos acalmasse, mas o bebê estava mais agitado que o normal.

“Você também está desconfiado, garoto? Venha, vamos voltar.”

Retornou para casa e colocou Adelphos no berço, cobrindo-o com a manta. Em seguida deitou na cama e cobriu-se. Sabia que não conseguiria dormir depois daquele pseudo-sonho; só buscava o conforto da cama para pensar com mais calma. Precisava contar sobre aquele encontro a Myles, mesmo parecendo apenas um sonho real demais.

—————————————————————-

“Mas você não sabe se foi um sonho”, contestou Myles. “Pode ter sido apenas um falso alarme, preocupação com o desastre.”

Era de tarde quando Myles arranjara tempo para falar sobre o assunto. Hyoga pendurava as roupas lavadas de Evan na entrada lateral da casa, sob a ameaça de terminar todo o trabalho até que o homofalco retornasse do treino, caso não quisesse mais surra. Ferido como estava, tentava terminar o mais depressa possível para retornar ileso, ao menos uma vez.

“Foi tão real que não consigo deixar de pensar que Prometeu de fato entrou em contato comigo. Mesmo que seja apenas um alarme falso, devo informar Athena sobre isso.”

“Entendo. Mas e depois? O que acontecerá, Hyoga?”

“Não sei. Caberá a Athena decidir.”

“Eu tenho medo de que sejamos uma desculpa para iniciar uma guerra entre Athena e Prometeu. Nós não queremos guerra, Hyoga, só paz. Já estou cansado disso. Perdi Eleni, perdi Tibalt. Achei que sua vinda era apenas a inclusão de um bom humano em nosso meio, mas há muito mais. Você atrai a guerra entre Athena e Prometeu, Hyoga, ainda mais com essa ordem de não poder sair da cidade dos homofalcos. Não posso matá-lo, pois assim atrairia a ira de Athena. Mas isso só deixa Prometeu mais furioso!”

“Se eclodisse uma guerra contra Prometeu aqui, Myles… Seria possível um único cavaleiro lutar contra tantos inimigos?”

“É por isso que consideramos sua presença uma ajuda praticamente simbólica. Agora, que está magro e fraco, ainda mais.”

“Athena não é o tipo de pessoa que enviaria uma ajuda assim apenas para dizer que fez algo, Myles. Ela só me mandou permanecer porque eu não poderia mais voltar ao mundo dos humanos quando fui feito prisioneiro. Resolveu dar-me uma missão, importante e necessária. Mas acho que ela não designou mais nenhum cavaleiro para isso porque todo humano que aqui entra não pode mais sair. Além do mais, não são todos os cavaleiros de Athena confiáveis.”

“Está dizendo que você é confiável? Não me interprete mal, Hyoga, mas depois que Eleni morreu, você deixou de ser confiável para mim. É por isso que precisa continuar na posição de prisioneiro.”

“Eu sei. Já não me importo com a corrente ou com minha posição na cidade. Não importa o quanto lute, nenhum homofalco voltará a confiar de mim depois que o meu clone apareceu. O que mais me preocupa agora é prepararmos uma defesa forte contra Prometeu e dar continuidade ao treinamento de Charis. O resto é o resto.”

Naquele momento, Hyoga pendurava a última peça de roupa. Particularmente, estava satisfeito por conseguir terminar todas as tarefas cedo e livrar-se da surra de Evan. Contudo, este chegou voando, sorrindo.

“Quer dizer que você ainda não terminou, cavaleiro?”

“É a última peça, senhor. Fiz do jeito como pediu.”

“Mas cheguei em casa antes que você pudesse guardar a cesta, escravo. Ajoelhe-se para receber a punição.”

Depois de um profundo suspiro, Hyoga tirou a túnica e ajoelhou-se na neve, oferecendo as costas, já feridas. Observando os cortes, Myles compreendeu por que as condições de Hyoga tinham piorado tanto depois do ataque. Antes que Evan iniciasse a punição, interrompeu.

“Evan.”

“O que foi, meu futuro cunhado?”

“Eu suponho que você esteja disposto a qualquer coisa para conseguir a minha permissão para Aure.”

“Está começando bem nossa relação familiar. O que vai querer para ter Aure em minha cama?”

“Você possui um escravo de ótima qualidade.”

Evan riu e apoiou o pé na nuca de Hyoga, que permaneceu calado, suportando o peso da humilhação. Não estava em condições de reclamar e depois receber o troco em chicotadas.

“Ele é um traste. Você sabe, nunca faz o que mando. Agora mesmo, ele demorou demais para terminar de arrumar a minha casa. Um lixo.”

“Então eu suponho que ele seja um preço barato pela mão de Aure.”

“Um preço barato? Ah, Myles, meu amigo… Você sabe que o valor material do escravo em si é muito pouco, comparado com o que posso oferecer-lhe. Posso dar armas, soldados, discípulos. Dou-lhe meu serviço, que é um dos melhores. O que vai querer com um escravo magro e preguiçoso?”

“Ele pode ajudar bastante em casa.”

“Desculpe, Myles, não quero ofendê-lo. O valor do meu amor por Aure não pode ser comparado a uma besta como esta. Vou dar-lhe mil lanças e mil espadas pelo amor de Aure, além de meus fiéis serviços de guerra. Se ainda acha pouco, destacarei cem homens para serem subordinados diretos seus, o que me diz? É uma oferta que julgo a altura de Aure.”

“De fato. É uma oferta tão generosa que tenho medo do peso que ela fará sobre suas costas. É exatamente por isso que peço o escravo como simples presente. Um presente tão simples quanto o amor que vocês possuem.”

“Não se preocupe, Myles. Não é penoso dar-lhe fidelidade militar. E vai necessitá-la mais para frente. Meu escravo é apenas um passatempo divertido que possuo, uma forma de descontrair.”

“Pois eu também gostaria de sentir o prazer de ter um escravo. Você sabe, o último prisioneiro que tivemos desapareceu no ataque. Sempre tive a curiosidade de ter um escravo por perto, sempre disposto a servi-lo, caro amigo. E acontece que você é o único que possui tal privilégio.”

Apesar da estranha troca de gentilezas, Hyoga sabia que Evan era capaz de matar Myles para não entregá-lo.

“Pois posso emprestá-lo para tirar sua curiosidade, Myles. Leve o escravo por uma semana e divirta-se.”

“Pois tenho a impressão de que esse escravo vale mais que mil espadas e mil lanças para você, Evan. Ou estou errado?”

Evan calou-se. Sabendo que poderia morrer se mentisse e dissesse que sim, foi obrigado a ceder mais.

“Se possui tanta curiosidade, Myles, diga o seu preço. Infelizmente, não posso dar-lhe meu escravo, pois jurei que vingaria a minha família pelo desastre que lhe ocorreu quando eu era ainda uma criança. Eu tenho certeza de que sabe como minha alma dói com este incidente. Eu espero, portanto, que compreenda a importância de ter este traste como escravo meu.”

“Entendo. O que me diz de dividirmos? Permita que o escravo alterne os dias trabalhados, entre a sua casa e a minha, de forma a criarmos um laço de amizade único. Eu também carrego um terrível ódio contra os humanos que nos atacaram, três meses atrás. Se assim o fizer, e se o escravo estiver em condições de trabalhar em minha casa após o seu dia, garantirei a mais linda festa de casamento que poderá sonhar, meu amigo.”

Sem ter mais como negociar, pois tratara Hyoga como se não tivesse valor, Evan cedeu.

“Está bem, meu amigo. Amanhã, o escravo estará em sua casa para trabalhar. E você também precisa honrar minha palavra, pois lhe prometi que deixaria cumprir as tarefas devidas, no caso, treinar a filha de Ájax. Espero que compreenda.”

“Entendo perfeitamente, Evan.”

“Bem… Para selar nosso contrato, por que não o castiga em meu lugar? São justos trinta… não; quarenta chicotadas. Mostre a ele como escravos devem ser tratados.”

Aquela era a vingança de Evan por ter sido obrigado a ceder sua posição de dono. Myles sabia que não podia recusar depois de tanta insistência. Empunhou o chicote e estalou-o contra as costas de Hyoga com força. Não podia demonstrar compaixão pelo escravo, apesar de sua intenção ser oposta. Hyoga suportou em silêncio, esperando que pudesse ser recompensado mais tarde por tão rigoroso castigo.

Atordoado, tombou na trigésima chicotada. Evan chutou-o, nervoso.

“Seu traste, levante-se agora!! Você deve obedecer ao Myles, que também é o seu dono! Seu lixo inútil!”

As costas já estavam completamente molhadas de sangue, que escorria pelo resto do corpo. Hyoga forçou os braços para cima e voltou à posição para terminar de receber o castigo. Myles continuou, sem demonstrar compaixão.

Quanto terminou, Evan chutou-o no rosto mais uma vez, expulsando-o da casa.

“Seu traste, dê o fora daqui! Suma da minha frente!”

Hyoga obedeceu, embora não tivesse mais forças para permanecer de pé. Arrastou-se para fora de casa e pegou a bengala, que se transformou no único apoio para o peso do corpo inteiro. Myles despediu-se cordialmente antes de segui-lo.

“Muito obrigado por sua bondade, Evan. Jamais esquecerei o presente que me ofereceu.”

“Eu tenho certeza que não.”

“Agora, com a sua licença. Preciso dar instruções ao escravo sobre o trabalho de amanhã.”

“Diga duas vezes. Ele é muito burro para entender.”

Gemendo, Hyoga caiu no meio da rua, sem forças. Cada vez mais, sentia que sua saúde piorava e que a morte não estava tão distante daquela idade. Myles parou ao seu lado.

“Hyoga.”

O rapaz não respondeu. Simplesmente não tinha mais condições para continuar naquela vida.

“Hyoga, vou ajudá-lo. Se continuar assim, morrerá em pouco tempo. Mesmo que o odeie pelo que aconteceu, tenho certeza de que Eleni o ajudaria.”

Myles colocou-o nas costas e pôs-se a andar no caminho de volta. Hyoga perdera a consciência e pouco se importava com o que lhe aconteceria. O homofalco não sabia dizer se aquela ajuda realmente adiantaria de algo. Ao aproximar-se da casa do cavaleiro, notou que Charis já tinha preparado tudo para tratá-lo.

“Myles, como está o meu mestre?”

“Ele está fraco. O que está havendo, Charis? Ele não está se alimentando direito?”

“Ele anda preocupado com os homofalcos. Desde o ataque, tem se sentido culpado por tudo que aconteceu. Por favor, Myles, não o culpe pelo que houve. Meu mestre não demonstra, mas gosta das pessoas daqui. Ele sentiu o peso da morte de cada homofalco, culpou-se por cada um. No início, eu o culpava… Mas agora percebi que esse sentimento só o machuca mais e não traz ninguém de volta. Ele sempre nos ajudou. Agora precisa de nossa ajuda.”

“Como quer que eu não o culpe, Charis? Minha vida acabou depois do ataque.”

“Você está errado. Quando o meu pai morreu, uma parte de mim morreu junto. Mas a minha vida apenas começou de novo. Hyoga ensinou-me que a morte de meu pai significa o início de uma nova luta. Eu só poderei chorar pela morte dele depois de vencer.”

Consternado, Myles não respondeu; entregou Hyoga nos braços da discípula e retornou para casa.

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Quando Hyoga despertou, Charis estava quase sobre ele, observando-o atentamente. Demonstrava tanta ansiedade que ele achou se tratar de alguma novidade.

“Charis?”

“Mestre, tenho um pedido a fazer-lhe”, respondeu ela, sorrindo.

“Pedido? Mas que pedido?”

“Promete que irá deixar que eu cuide de sua saúde até achar que voltou a ser como era antes? Você está muito magro. Promete?”

Reunindo a força do corpo, Hyoga sentou-se na cama e notou que Charis preparara um caprichado café da manhã, que ele jamais prepararia numa manhã por pura preguiça.

“Fez tudo isso?”

“É porque você está pele e osso, mestre. Não vai agüentar por muito tempo se continuar assim. Estou preocupada.”

“Não é para se preocupar. Vou treiná-la até o fim, assim como o Adelphos. Mesmo que eu fique fraco.”

Ressentida, Charis mostrou-se triste. Hyoga não compreendia ou fingia não compreender.

“Mestre, não é pelo treino. Você é como se fosse um segundo pai para mim. Eu disse que queria ser forte para proteger todos os homofalcos. E isso porque todas as pessoas que amo estão aqui. Mas enquanto não fico mais forte, quero fazer o possível por elas. Por favor, mestre, deixe-me ajudá-lo.”

“Charis, eu já disse que você não pode aproximar-se mais, sabe por quê.”

“Pois vamos fazer assim, mestre! Se algum dia você se tornar o meu inimigo… Se algum dia voltar-se contra o meu povo… Juro que irei derrotá-lo com minhas próprias forças, independente do que me deu! Se for preciso matá-lo, assim o farei. Foi por isso que você não me queria por perto, não é?”

“Quem disse isso?”

“Foi o Shun, antes de voltarmos. Ele contou sobre o mestre Camus e sobre o problema que você teve. Eu vou superar isso, pois sei que também faz parte do meu treinamento.”

Naquele momento, Hyoga sentiu que Charis almejava uma posição superior à dele como guerreira. Desejava ser perfeita e amorosa, impiedosa e gentil. Tal equilíbrio era raro num cavaleiro de Athena.

“Você só irá afundar se for por este caminho, Charis. Não vai dar certo. Você tem o coração mole demais.”

“Mas eu honro a minha palavra!”

“Charis…”

“Desde o início do treinamento, você sempre impôs limites para que eu pudesse transpô-los, mestre. Pois vejo esse como mais um obstáculo a ser superado, como mais um exercício. Eu o respeito acima de tudo, mestre, mas minha missão como futura líder dos homofalcos está além de qualquer sentimento pessoal meu. Eu vou provar isso, mestre, serei digna de seus ensinamentos!”

Talvez fosse impossível apenas porque aquele era um obstáculo que Hyoga não conseguira superar por completo. Para Charis, qualquer coisa era possível, até o equilíbrio considerado ideal para muitos cavaleiros. E se ela superasse a barreira dos sentimentos pessoais, seria maior do que ele mesmo.

“Como pretende fazer isso, Charis?”

“Treinamento é treinamento, mestre. A chave é não confundir sentimentos e deveres. Meu pai sempre me ensinou isso muito bem. Mesmo que seja a pessoa que mais amo. Se ela falhar com a palavra, devo matá-la, em nome da honra dos homofalcos. No treino, sou sua discípula e devo agir com rigor e disciplina. Mas aqui… Eu só quero ser uma boa irmã para você, mestre.”

“Charis, o que você diz é verdade. Mas sabe que não confundir sentimentos com deveres não é tão fácil quanto pensa. Esse é um obstáculo que nem mesmo eu consigo superar.”

“Eu compreendo, mestre. Mas eu já decidi que irei superá-lo, ou não poderei ser a líder dos homofalcos. Por favor, mestre, ajude-me neste exercício. Talvez eu possa ajudá-lo também. Meu pai sempre foi muito bom nisso, Myles está se esforçando também. Eu tenho certeza de que você também pode, mestre.”

“Eu não acredito que você esteja me dizendo isso.”

“Por quê?”

‘Porque é como se me desse um sermão’, respondeu na mente. ‘Como se eu fosse um pupilo.’ O equilíbrio entre emoção e profissão era raro em cavaleiros. Mesmo seu mestre Camus mantinha a frieza e a distância nos momentos mais simples para evitar o vínculo sentimental com Hyoga. Somente Dohko conseguia manter o calor paternal com Shiryu e reservar o momento dos treinos para ser um profissional frio e sem sentimentos.

“Mestre?”

Se alcançasse tal equilíbrio, seria ele um mestre melhor? Certamente, para os cavaleiros, era um item descartável, desde que o guerreiro cumprisse seus deveres com Athena. Portanto, os cavaleiros podiam ser frios em tempo integral para evitar o sentimentalismo na batalha. Entretanto, não era o ponto de equilíbrio entre emoção e dever, apenas pendia a este. Para os líderes homofalcos, o equilíbrio era vital, pois eles precisavam demonstrar carinho e simpatia pelo povo.

Se Charis precisava desse equilíbrio, ele tinha o dever conquistá-lo para ensinar-lhe melhor.

“Está bem”, sorriu ele. “Vou me esforçar para isso.”

Charis afastou-se num salto, radiante. Pensou em abraçá-lo, mas percebeu que não conseguia mais. Estava acostumada àquela distância. Mesmo assim, sentia que podia descobrir um pouco mais do lado humano de seu mestre.

“Obrigada, mestre! Então promete que me deixará cuidá-lo?”

“Eu sei me cuidar. Mas nada a impede que me ajude. Aliás, já que está morando aqui até que sua casa seja consertada… Tem a obrigação, não?”

“É claro, principalmente agora, que está tão debilitado.”

“Mas não se esqueça de tratar-me como um inimigo nos treinos, Charis.”

“Eu prometo. É isso que desejo, mestre. Quero ser a melhor líder, para que meu pai se orgulhe de mim. Já chega de lamentar a morte dele. Agora só penso em crescer em sua homenagem.”

—————————————————————–

Quando Myles chegou ao campo de treino para observar o trabalho de Hyoga e de Charis, na única hora de cosmos liberado do cavaleiro, surpreendeu-se com as expressões sérias e frias. Os cosmos estavam tão pesados e agressivos que ele até achou que tinham brigado. Hyoga devolvia cada golpe de Charis com tanta brutalidade que a discípula cuspia sangue a toda hora. Da mesma forma, ela tentava atingi-lo com os golpes mais cruéis e fatais, sem se importar quando o atingia e o machucava. Hyoga não se importava. Mesmo com o corpo debilitado, lutava como se estivesse saudável.

Aquela frieza só desapareceu ao término do treino. Charis caiu no chão, ofegante, e Hyoga aproximou-se.

“Naquele chute lateral, faltou velocidade, que eu sei que você tem. Isso me permitiu contra-atacar com mais força. Está doendo?”

“Eu não me importo, mestre. Tenho um objetivo a cumprir, devo esquecer a dor.”

“Então se levante. O que está fazendo aí, deitada? Acha que vai ter tempo para descansos assim no meio da guerra? Acha que seu inimigo irá esperar que descanse para atacar?”

“Desculpe, mestre.”

Charis levantou-se e colocou-se à disposição para novos exercícios. Com isso, Hyoga encerrou as atividades da manhã.

“Muito bem, treino encerrado. Passarei os exercícios seguintes depois do almoço.”

“Entendido. Obrigada, mestre.”

Charis sorriu e esticou as asas, espreguiçando-as. Em seguida, aceitou o cantil que Hyoga lhe ofereceu.

“Mestre, vai querer algo especial para o almoço? Ou precisa partir cedo para a casa de Myles?”

“Isso dependerá dele. O que me diz, senhor?”

“Mais tarde”, respondeu o surpreso homofalco. “Só vim observar o treino. Mas… o que houve com vocês dois? Charis, você está usando golpes cruéis demais. E você, Hyoga… Não era tão gentil com Charis.”

“Aqueles golpes eram os mais eficientes no momento. Não importava se o meu inimigo era o mestre Hyoga.”

“Eu também estou em treino”, respondeu Hyoga. “Se não se importa, Myles, pode vir conosco. Já que a Charis vai cozinhar, posso chamar a cidade inteira.”

“Isso é maldade, mestre!”

Hyoga riu, dirigindo-se para casa. Charis caminhou ao seu lado, e Myles, curioso, resolveu segui-los. Subitamente, o clima entre professor e pupila tornara-se leve, quase como se fossem irmãos. Adelphos chorava no berço quando chegaram, já acordado, e Hyoga segurou-o nos braços, acalmando-o.

“Espero que ele tenha o mesmo discernimento que você quando crescer, Charis.”

“Ele terá, mestre, eu tenho certeza. Basta lhe ensinar.”

“Vou cuidar dele enquanto você prepara as coisas.”

“Certo, mestre.”

Enquanto Hyoga ocupava a cama para trocar a fralda do filho de Seema, Charis andava de um lado ao outro da cozinha, preparando o almoço. Enquanto ele os observava, estupefato. Antes do acidente, Hyoga tinha uma relação tão fria com Charis que dava até a impressão de ele não ligava se ela morresse. Jamais aceitava ajuda além do tratamento e sempre dava bronca quando ela tentava demonstrar afeto. Agora, pareciam uma família.

“Mas o que houve com vocês?”

Foi logo ignorado. Hyoga terminava de limpar Adelphos, entretendo-o de tempos em tempos. Charis continuou a cozinhar, sempre sorrindo. E ele, sem entender nada.

Hyoga aproximou-se e pegou a panela com a sopa do bebê, dividindo o espaço com a discípula.

“Charis, onde você deixou o lenço do Adel?”

“Está na gaveta, mestre. Acabaria perdido se eu não guardasse.”

Pegando, Hyoga foi alimentar o bebê, como se cuidasse de um filho. Myles logo reparou que havia algo de diferente na maneira de segurá-lo. Logo notou que agora transmitia mais carinho em seu abraço. Sentando-se na cadeira da sala, observou-o.

“Você está mais aberto às pessoas, Hyoga.”

“Sim, mais ou menos. Isso também faz parte do meu treino.”

“Seu treino?”

“Sim. Há algumas diferenças entre treinar um cavaleiro de Athena e uma líder dos homofalcos. Então, para poder treinar Charis com mais eficiência, também preciso me treinar. Assim, nós dois cresceremos.”

“Treinar significa ser mais gentil com as pessoas?”

“Não, significa encontrar o ponto de equilíbrio ideal para um líder. Você deve saber, já que é um.”

Surpreso, Myles não respondeu. A súbita mudança de Hyoga era mesmo pelo bem de Charis? Parecia que Hyoga realmente se divertia sendo mais aberto com Charis e Adelphos. Era de uma forma especial, quase paternal, como se tivesse uma família. E o que era aquilo, além de uma família composta de três órfãos?

“Você gosta dele também.”

“Sempre gostei”, sorriu Hyoga. “Mas não podia demonstrar porque um cavaleiro é treinado para ser frio com todos, o tempo todo. E acontece que isso está me atrapalhando no treino. Charis não será uma amazona, que precisa ser distante e disciplinada com tudo, a terra dos homofalcos não exige tanto rigor. Desde que cheguei, vi Ájax ser um líder gentil e atencioso com todos, capaz de trabalhar com enxada e ajudar na pesca quando necessário. Depois de tudo, ainda ia divertir-se na taverna com seus companheiros. Você também sempre os trata com educação, tentando ser o mais prestativo possível.”

“Bem, assim devem ser os líderes dos homofalcos, já que somos um grupo pequeno. Conhecemos os nomes de vários de nossos companheiros, convivemos com eles, trabalhamos com eles. A posição de nada serve ao líder se ele não possui essa proximidade com o povo. Mas o que isso tem a ver com a educação que você dá a Charis? Essa é uma lição que ela já aprendeu com Ájax.”

“É, mas ela o perdeu agora. Charis indiretamente me pediu para cobrir o espaço vazio que Ájax deixou, tentando superar a morte do pai. Ela não quer que eu a eduque para ser apenas uma guerreira forte. Ela quer que eu a torne uma líder para os homofalcos, mais do que uma grande guerreira. Como ela parou de receber as orientações do pai, está sentindo falta desse apoio.”

“E você sabe como fazer isso?”

“Na verdade, ela já sabe o suficiente. Mas Ájax costumava treiná-la assim para ser uma líder. Uma hora era um pai carinhoso; noutra, um altivo líder. A busca desse equilíbrio é essencial para que ela cresça. Charis está buscando isso sozinha, sem que eu a oriente. O desejo que ela possui é forte demais para que eu recuse. Preciso respeitar as decisões que toma, independente de quais são.”

“Mas você não é assim.”

“Não. E vai contra tudo o que meu mestre me ensinou também. Mas talvez… Eu possa aprender algo com ela.”

“Bem, é certo que os ensinamentos de seu mestre não podem ser aplicados da mesma forma. O Santuário é uma instituição enorme, gigante. A frieza, o rigor, a disciplina… São requisitos necessários aos cavaleiros, sua educação foi a adequada. Mas aqui… Isso só o tornaria mais estranho.”

“Tem razão. Mas um mestre pode ser gentil e rigoroso ao mesmo tempo, há alguns que assim o são. Os resultados são tão bons quanto e os discípulos tornam-se cavaleiros respeitáveis, que seguem o decoro tão bem quanto os demais.”

“Quer ser assim com Charis?”

“Eu só quero responder a pergunta que sempre faço a mim mesmo: que tipo de mestre quero ser?”

Myles sorriu e observou Charis trabalhar na cozinha.

“Ela ficou desesperada quando Ájax morreu, mas acho que está se recuperando por sua causa.”

“Um dia ela terá de libertar-se da minha proteção para agarrar o seu sonho. Mas começo a acreditar que não terá problemas para isso. É uma garota forte.”

“Charis, a líder dos homofalcos. Imagino que meu amigo Ájax esteja sonhando com isso do outro mundo.”

“Ele me assombrará como uma maldição se eu não fizer um bom trabalho.”

“Por falar em trabalho, preciso que você continue a reconstrução das estufas hoje também.”

“Esse é um trabalho de que gosto. Estou louco para apagar os rastros do ataque.”

“Apagar o seu erro?”

Ferido, Hyoga desviou o olhar e permaneceu em silêncio.

“Hyoga, as mortes não podem ser apagadas. Se pudessem, ninguém estaria bravo com você.”

“Eu sei. O que me incomoda… É que tudo ocorreu ocasionalmente. Se eu soubesse que uma chacina dessas ocorreria… Teria pedido ajuda a Athena, ficaria aqui ou criaria uma defesa com os cavaleiros de Athena. Eu não queria que ninguém morresse. Nunca quis…”

“Bem, o passado é imutável. Só nos resta mudar o futuro.”

“Um futuro que é uma incógnita. Mas eu prometo que lutarei por vocês até a morte, obedecendo ao meu sagrado juramento a Athena.”

“Veremos, Hyoga.”

Charis, que terminava de cozinhar, preparou a mesa. Hyoga colocou Adelphos no berço e ajudou-a.

“Senhor, sinta-se em casa. Vinho?”

“Obrigado.”

Enquanto almoçavam, o assunto tornou-se uma competição esportiva realizada entre homofalcos, derivada das olimpíadas gregas. Tratava-se de um campeonato que envolvia os soldados mais bem destacados do exército homofalco, entre eles Evan e o próprio Myles, envolvendo competições pacíficas e batalhas entre os inúmeros guerreiros. Convidado a participar, Hyoga recusou, dizendo que nem sequer tinha terminado o treino de homofalco para merecer a participação. Charis parecia desejar entrar no torneio, mas resolveu não se inscrever. Havia um objetivo muito maior a alcançar, que era a posição de líder dos homofalcos.

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