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Autora: Nemui
Fandom: Saint Seiya
Gênero: drama, aventura
Classificação: 16 anos
Status: Completa
Resumo: A vida de Hyoga se transforma quando entra em contato com um mundo completamente diferente do seu.
Antes de partir, Hyoga deixou um maço de flores no túmulo de Nyx, esperando que a morte apagasse quaisquer ressentimentos dos homofalcos sobre ela. Sabia que alguma raiva ficaria, mas queria que as pessoas compreendessem o sofrimento que ela passara nas mãos de Éolo.
Voltou ao grupo, que se reunia numa das entradas do Santuário, de partida para casa. Seiya, Shiryu e Saori estavam lá para despedirem-se, conversando entre si. Desde a morte de Nyx, os cavaleiros pouco simpatizaram com os homofalcos, excetuando Charis. Esta observava Aure, desconfiada.
“Mestre, estávamos esperando. Aure estava ansiosa para vê-lo de novo, não estava, Aure?”
Desconhecendo a existência de Nyx, a homofalca cruzou os braços, aborrecida.
“Nem um pouco.”
“Como não?! Você cuidou tanto dele!”
“O quê? Charis… Nunca faria isso!”
“Charis”, interrompeu Hyoga. “É melhor que não fale. Explico-lhe tudo mais tarde.”
Saori sorriu-lhe tristemente, ainda pesarosa pelo resultado da missão.
“Por favor, Hyoga, cuide-se. Não quero que fique com a consciência pesada, não foi sua culpa.”
“Eu sei, Saori. Por enquanto, vou me concentrar no treinamento de Charis e buscar um discípulo que queira ser um cavaleiro de Athena. Preciso deixar um herdeiro ao Santuário também.”
“Tenha uma boa sorte.”
“Hyoga, não deixe que os fantasmas o atrapalhem, você tem uma missão a cumprir”, acrescentou Seiya. “E Shun, não vá congelar na Sibéria! Venha visitar-nos de vez em quando.”
“E você tente acordar um pouco mais cedo, Seiya. Até breve.”
“Até breve? Até quando?”
“Eu sei que ainda lutaremos juntos. Tenho certeza disso. Portanto, digo até breve.”
O grupo partiu, deixando o Santuário. Hyoga não esperava que sua mochila voltasse mais pesada do que na ida, mas Saori ofereceu-lhe vários objetos para facilitar seu cotidiano na cidade dos homofalcos. Além disso, Evan também aproveitara para fazer compras, tornando o seu fardo mais pesado. Enquanto desciam a montanha, Shun tirou-lhe a mochila.
“Eu carrego suas coisas. Deve estar pesado.”
“Com o cosmos, não é difícil.”
“Guarde-o para quando precisar, Hyoga.”
Shun, que trouxera poucas coisas, não se importava. Eram poucas as ocasiões em que poderia ajudar o amigo, ainda mais depois de um triste episódio como o de Nyx. De forma a impedir o silêncio, sorriu para Charis.
“O achou do Santuário, Charis?”
“É incrível”, respondeu ela, com entusiasmo. “Nunca imaginei ver campos de treino tão extensos e construções tão altas. Mas o que mais me marcou foi poder treinar com tantos cavaleiros! Há cosmos de tudo quanto é tipo, não só de fogo e de gelo. Fiquei com vontade de aprender um pouco de cada.”
“Nós ficamos em dúvida, não é? Geralmente cavaleiros se especializam num único poder, para torná-lo mais apurado. Se treinar todos, acabará com inúmeras técnicas fracas. Variar é bom também, mas não recomendo mais de três tipos de poderes.”
“Mas o mestre Hyoga disse que um golpe não funciona pela segunda vez com um cavaleiro. Não é bom que ele tenha muitos?
“Claro. Mas ele pode desenvolver diferentes técnicas com o mesmo tipo de cosmos.”
“Isso significa que ainda estou longe de ser uma boa guerreira…”
“Ainda há um longo caminho a percorrer, é verdade, Charis. Mas é mais importante que você o percorra com cuidado e dedicação. Hyoga fará o resto, não é?”
Concentrado na descida, Hyoga demorou um pouco a responder.
“Eu só mostro o caminho. Quem percorre é ela.”
Shun riu, sabendo que Hyoga segurava-se para parecer mais frio do que realmente era.
“De qualquer forma, as coisas se ajeitarão para você, verá. Está em boas mãos, tem tudo para ser uma ótima líder, Charis. E se um dia precisar de ajuda, é só me procurar em Kohotek. Terá um amigo lá.”
“Obrigada, Shun…”
Evan riu, sem dizer nada. Sabendo que o homofalco só compraria uma briga se perguntasse por que riu, sendo que a resposta já estava bem clara, Shun ignorou-o. Tentando amenizar a situação. Myles decidiu mudar de assunto.
“Faremos o mesmo caminho para voltar, Shun?”
“Exato. Já há um motorista esperando-nos na cidade, que nos levará até o aeroporto. Depois voaremos para lá de novo, iremos a pé. Em alguns dias, estaremos de volta à Sibéria.”
“Há algo que não entendo”, interrompeu Charis.
“E o que é?”
“Por que nós vivemos no meio da Sibéria e falamos grego? Nosso grego ainda é diferente daqueles que as pessoas da cidade usam, mas parecido com o do Santuário.”
“Ájax sabe”, respondeu Myles. “Provavelmente lhe contará quando crescer mais um pouco, Charis. Mas já posso adiantar alguma coisa. Homofalcos possuem uma estreita ligação com os cavaleiros de Athena.”
O comentário foi revelador para Hyoga e Shun também. Surpresos, eles fitaram-no, desejando saber mais sobre aquela história. Era inegável que humanos e homofalcos tinham a mesma origem, mas qual era ela? E por que a ligação era com os cavaleiros de Athena e não com humanos normais? Hyoga aproximou-se, curioso.
“Com os cavaleiros de Athena? Mas que tipo de ligação, pode me contar, Myles?”
“Não posso contar sem a permissão de Ájax, meu amigo. Nem mesmo para Evan. Mas se quiser mesmo saber, pergunte ao próprio. Ele dirá… se achar que pode confiar em você.”
Evan riu de novo, desta vez mais alto. Seu comportamento tornava-se insuportável até ao próprio Myles, que o repreendeu.
“Já chega, Evan. Todos conhecem o seu desafeto pelos humanos. Eu peço a você, pela amizade que possuímos, que guarde suas manifestações de ódio para quando chegarmos à cidade.”
“Posso afastar-me dessas conversas.”, respondeu o orgulhoso homofalco. “Mas é direito meu tratar um escravo como tal.”
Naquele momento, Shun quase se manifestou para defender Hyoga, mas o mesmo segurou-o em censura. Chocado, Shun encarou-o sem compreender.
“Mas Hyoga…”
“Não, Shun. Será pior para mim.”
Caindo no silêncio, Shun continuou a caminhar, perturbado.
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A viagem de retorno transcorrera da mesma forma que a ida, embora Evan se mantivesse calado sobre Charis. Mesmo assim, não dispensava os maus tratos a Hyoga de manhã, que era obrigado a ceder cada vez que resolvia surrá-lo. A irritação de Shun não era pouca, mas o cavaleiro conseguiu manter-se calado por respeito a Hyoga, pois sabia que todo desaforo que Evan levasse seria descontado posteriormente.
Ao chegarem em Kohotek, o grupo decidiu pousar na casa de Shun por uma noite para recuperarem as forças. Assim que entrou, Shun jogou a caixa de primeiros socorros para o exausto Hyoga.
“É melhor que trate seus machucados antes de partir e descanse um pouco, Hyoga. A noite promete ser fria demais.”
Hyoga não recusou, e Charis veio correndo para cuidar dos machucados. Durante a viagem, Evan golpeou-o diversas vezes, ora por diversão, ora por vingança pela investida que recebera anteriormente. Numa das quedas, Hyoga rasgara parte do braço, que simplesmente tinha como curativo um pedaço de pano amarrado.
Enquanto se ocupavam com pequenos cuidados, Arsen simplesmente usou o banheiro e voltou à sala, pronto para seguir viagem.
“Vamos nos separar.”
Enquanto relaxava numa cadeira, Myles perguntou, como se estivesse certo de que o faria mudar de idéia.
“Tem certeza, Arsen? Ájax gostaria de tomar um bom vinho ao seu lado.”
“Dê-lhe meus agradecimentos. Tenho assuntos a resolver no mundo dos humanos.”
“Mesmo? Que pena. Ao menos descanse um pouco na casa de Shun, estamos todos esgotados.”
“É verdade”, acrescentou Shun. “Fique um pouco para descansar. Eu mesmo irei preparar o jantar para todos, portanto só quero que recuperem suas energias.”
“Eu estou bem. Adeus.”
Sem mais palavras, o silencioso homofalco sem asas saiu, sem olhar para trás. Deixou um vácuo na sala, que Shun preencheu com um comentário.
“Ele não é de muitas palavras, não?”
“Não costumava ser assim. Acho que é uma forma de proteger-se dos humanos. Sem querer ofender. Homofalcos acham que o silêncio pode ser a melhor maneira de defender-se dos humanos, cuja pior arma é a informação.”
“Não posso negar que seja verdade. Bem, eu também vou sair, quero dar-lhes uma refeição digna, ao menos uma vez.”
“Eu ajudo”, respondeu Myles, levantando-se.
“Deixe-me ir também”, aproximou-se Charis, segurando a caixa de remédios. “Já terminei com o mestre, e ele quer descansar um pouco agora.”
“Está bem”, sorriu Shun. “Mas se eu descobrir que Hyoga foi perturbado nesse meio tempo, juro que alguém ficará sem peixe hoje à noite”.
E lançou um longo e agressivo olhar a Evan, que descansava sentado no chão, encostado à parede. Sabia que Aure estava traumatizada demais para impedir que Evan machucasse o amigo, não era seguro deixá-lo sozinho. Evan riu:
“Não farei nada. Mas um dia, cavaleiro, você verá. Pode ser que eu resolva transformá-lo em escravo também, o que acha? Quanto mais me lança sua inimizade, mais vontade tenho de torturá-lo.”
Shun não respondeu e saiu de casa, em silêncio. Antes, no entanto, pegou um ramo de flores que comprara no caminho, reservado à mãe de Hyoga. Esperava que o amigo fosse fazer uma breve visita, mas achava ruim Evan tomar conhecimento daquele lugar. Caminhou na direção da planície congelada, despertando uma leve desconfiança em Myles.
“Andrômeda, este não parece o local mais indicado à pesca. O gelo é grosso demais.”
“Eu sei. Fiz um pequeno desvio, espero que não se importem. É que preciso passar num túmulo antes, para levar esta pequena lembrança. Quando estou aqui, faço isso todos os dias, mas passamos uma semana fora.”
“Entendo. Se não se importa, poderia dizer de quem se trata? É um parente seu?”
“Não, nem cheguei a conhecê-la. Vejam, é ali.”
Shun aproximou-se da cruz de madeira que ele construíra no início do inverno, já que todo ano aquela parte do mar da Sibéria congelava, engolindo qualquer coisa na superfície. Colocou as flores na frente do túmulo e rezou em silêncio. Ao terminar, Charis agachou-se para tentar ler o nome escrito, em russo.
“Não consigo entender. O que está escrito?”
“Natássia.”
“E quem era ela? Era uma pessoa importante aos cavaleiros de Athena?”
“Não. Ela só era uma mulher russa, que morreu num naufrágio no meio do mar. O navio foi arrastado até aqui com o corpo dela. Dizem que ela se sacrificou para salvar o filho de apenas sete anos, que criava sozinha. Como respeito o carinho que ela possuía pelo filho, assim como o sofrimento do mesmo, venho todos os dias trazer flores e rezar por sua paz. Escute, Charis, você não precisa conhecer a pessoa para fazer algo por ela. Eu luto por todos, em nome de bilhões de vidas. Não há como eu conhecer todas, certo? Nunca vi Natássia, nem imagino como ela devia ser. Mas sei que a coragem e o sacrifício dela me impõem respeito e inspiração para ser um bom cavaleiro.”
“Isso é ser um bom cavaleiro de Athena?”
“Sim. Quando você e Hyoga encontraram-se pela primeira vez, ele não arriscou tudo por uma desconhecida, que era você?”
Envergonhada, Charis baixou o olhar. Não sabia o que seria dela se não tivesse encontrado o Hyoga naquela aldeia.
“Sim… Ele cuidou de mim desde o começo…”
“Ele sacrificou tudo para ir à cidade dos homofalcos, mudou completamente o estilo de vida, virou prisioneiro, manteve a palavra com você. Charis, homens como ele você não encontraria num milhão de humanos. Sem querer desvalorizar sua espécie, que homofalco faria tudo o que ele fez, sem conhecê-la?”
“Mas se devo proteger o meu povo, devo ser igual, não é mesmo? Mesmo que eu não conheça o homofalco, devo lutar com minha própria vida para salvá-lo?”
“Exatamente. Não basta proteger um ou outro ente querido. É por isso que cavaleiros de Athena precisam de um enorme poder, para comportar o peso de sua responsabilidade.”
“Meu mestre nunca me disse muito sobre os cavaleiros…”
“Talvez porque ele realmente queira que você se torne líder de seu povo.”
Charis sorriu e fitou a cruz mais uma vez. Em seguida, correu na direção oposta e apontou para um lado.
“Os peixes ficam nesta direção, não é? Posso ouvir as ondas!”
Shun assentiu e prosseguiu na direção do mar. Charis saiu correndo, ansiosa para terminar com aquela tarefa e retornar para o seu mestre. Shun sabia que não havia riscos, por isso não a impediu, caminhava com calma, mais atrás. Myles seguia ao seu lado, pensativo.
“Andrômeda…”
“Sim?”
“Sobre a história que contou… O que houve com o filho de Natássia? Você só contou um lado da história. O sacrifício da mãe foi marcante ao filho? Ou ele abandonou-a como se não significasse nada? Se é você quem está cuidando deste túmulo, significa que ele a desonrou depois da morte.”
“Não é verdade. Depois do acidente, ele jurou que tiraria o corpo dela para sepultá-lo. Só que apenas um cavaleiro de Athena é capaz de quebrar este gelo e nadar até o fundo sem morrer.”
“Então ele é um cavaleiro. E o corpo?”
“Ainda está aí. Ele atingiu seu objetivo, mas descobriu que o corpo da mãe não pertencia mais a terra. Se ele permanecesse congelado, a beleza dela permaneceria eterna. Assim pensando, decidiu sepultá-lo ali mesmo e permanecer nesta aldeia até a morte, zelando pelo túmulo dela. Ele também sacrificou tudo apenas para honrar a morte dela.”
“Entendo. Que rapaz nobre. Mas agora ele não está mais aqui.”
“É. Ele teve de abrir mão do túmulo da mãe e de seus anseios, e sabe para quê? Para guiar uma menina perdida de volta para casa. Como seu leal amigo, por respeito ao seu sofrimento e dedicação, decidi viver aqui para cuidar do túmulo no lugar dele.
A surpresa de Myles foi tanta que ele parou por um momento. Shun fez o mesmo, encarando-o.
“Quer dizer que o filho dela é…?”
“É um verdadeiro cavaleiro, que se sacrifica pelos outros, mesmo que isso o machuque infinitamente. Imagino quantas lágrimas ele não derramou desde que deixou este lugar. Que a coragem e a dedicação dele me sirvam de exemplo para ser melhor a cada dia.”
“Não imaginava…”
“É. Ele não é muito de falar sobre isso, nem mesmo com os mais próximos.”
Charis já estava na água quando eles alcançaram a praia congelada. Acenava alegremente com um dos braços.
“Shun, Myles! Já terminei!”
“Como assim, Charis?”
“Vejam!”
Logo em seguida, Charis atirou-lhes um enorme bloco de gelo, que se espatifou no chão e se desfez, revelando os peixes em seu interior.
“Vocês demoraram demais, já peguei tudo o que precisávamos. Ou vai querer mais, Shun?”
A surpresa no rosto de Shun era evidente. Hyoga já lhe explicara um pouco sobre a arte de utilizar o ar congelado. Como congelar o inimigo sem se congelar? E se eles lutassem na água? Como não congelar as próprias mãos? Dizia que um dos treinos mais difíceis de um cavaleiro de gelo era congelar um objeto dentro da água, sem ser atingido pelo próprio golpe. Era necessário não apenas deter o movimento dos átomos, mas controlá-los por um determinado período de tempo, assim como a área de atuação. Tratava-se, pois, de um exercício que exigia alto grau de técnica.
“Você os congelou?”
“Sim. Por quê?”
“Não imaginava que Hyoga já a tivesse treinado nesse aspecto.”
“Não entendi, Shun.”
Charis saiu da água e recolheu os peixes, como se não tivesse feito nada de mais.
“Você congelou os peixes dentro da água sem ser atingida pelo seu próprio cosmos. Bem, não imaginava que o Hyoga tivesse treinado isso com você.”
“Ah, ele não treinou. Comecei a fazer isso depois que o mestre me ensinou a congelar coisas. Como eu tinha algum tempo livre e precisava pescar meu jantar, tentava capturar o peixe com o cosmos. Era muito difícil, mas depois peguei o jeito.”
Por um momento, Shun achou um desperdício Charis lutar por objetivos distintos dos cavaleiros. Se ela possuía tal talento para tornar-se uma guerreira, poderia muito bem reivindicar uma armadura de ouro ao crescer sob a orientação de Hyoga. Contudo, sabia que sua determinação nascia do desejo de proteger apenas os homofalcos e de substituir o pai como líder do povo.
“Entendo… Bem, você já pegou o suficiente. Vamos voltar.”
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Charis caminhava à frente, enquanto Hyoga seguia o grupo por último, pensativo. Seu cosmos expandia-se até a cidade, mas sentia que algo não estava certo. Ainda não sabia o que podia ser, mas certamente havia algo de errado. Myles e Evan aparentemente sentiam o mesmo, pois estavam compenetrados num silêncio que insistiam impor.
Além disso, o relato de Shun sobre a habilidade de Charis sob a água surpreendeu-o mais do que qualquer outra coisa. Jamais imaginara que a discípula lapidara suas técnicas a esse nível tão cedo. De certo, era possível que seu poder seria digno, em alguns anos, de uma armadura dourada e de uma posição nas Doze Casas. Tanto poder, como Shun comentara, chegava a ser um desperdício para proteger tão limitada área.
Mas não era o mesmo com ele? Um cavaleiro de Athena que possuía o zero absoluto estava condenado a viver na terra dos homofalcos até a morte. Mesmo assim, a sensação de insegurança naquela cidade era constante, como se um ataque fosse acontecer numa fração de segundo.
Ao chegarem aos limites, protegidos dos olhos de qualquer humano, Charis livrou-se da capa que escondia suas asas e ergueu-se no céu, contente.
“Mestre, posso voar à frente? Quero rever meu pai.”
“Espere, Charis”, comandou Hyoga. “Já estamos chegando, tenha um pouco de paciência.”
“Mas minhas asas estão cansadas de não voar. Queria exercitar só um pouco.”
“Ainda não. Se quiser, voe do nosso lado, não quero que se afaste de mim.”
Notando o tenso clima entre os homofalcos guerreiros, Charis aquietou-se e pousou.
“O que aconteceu, mestre? Algum problema?”
“Você sente algo com o cosmos, Charis?”
“O quê?”
Hyoga sabia que era precoce fazer Charis expandir o cosmos e rastrear o campo daquela forma, exercício no qual só lograria em um ano. Mas decidiu experimentar de qualquer forma.
“Expanda o seu cosmos. Dentro desse campo, tente ter controle de tudo que acontece nele. Você precisa descobrir outros cosmos, sentir como eles estão…”
Obedecendo-lhe, Charis queimou o cosmos e expandiu-o. Contudo, não conseguia cobrir uma área grande suficiente para sentir outros cosmos, além dos companheiros.
“Sinto o seu, o de Myles e o de Evan. O de Aure é quase nulo. Não consigo além disso, mestre.”
“Sei. Foi o que pensei. Apenas fique perto de mim, Charis. Sinto que os cosmos dos homofalcos estão diferentes.”
“Diferentes?”
“Eu também sinto”, comentou Evan, sério. “É como se… Não pode ser.”
Continuaram a subir, cada vez mais tensos. E Charis quase agarrou a mão de Hyoga. Não sabia se era por causa do clima pesado ou pelo medo crescer cada vez mais dentro de si. Tentando aliviar o estresse, agarrou um galho e segurou-o firme. Evan foi o primeiro a parar ao chegar ao topo, seguido dos demais. Aure cobriu a boca com as duas mãos para segurar o grito. Charis partiu o galho em dois, de tão forte que segurava. A paisagem tornou-se clara a todos, por mais indesejada que fosse.
A cidade transformara-se num imenso campo de cadáveres.
O silêncio era quebrado por gritos de choro, ecoando por toda a parte, chamando por parentes e amigos perdidos. Nervosa, Charis quis sair correndo, mas Hyoga agarrou o seu ombro e impediu-a de ir. Evan não se deteve; abriu as asas e saiu voando, observando o estrago. Já Myles começou a procurar os sobreviventes para descobrir o que ocorrera. Encontrou um soldado ferido, antigo companheiro de treino de Hyoga.
“Você! Diga-nos, o que aconteceu aqui?!”
Hyoga aproximou-se, reconhecendo-o. Charis tremia, mantida sob o seu controle. Naquelas condições, soltá-la era o mesmo que a abandonar.
“Um ataque em massa dos guerreiros de Prometeu, uma verdadeira chacina!”
“E o meu pai? O que houve com ele?”
“Ájax… Ájax lutou até o fim para detê-los, Charis. Infelizmente…”
Chocados, todos se calaram. Charis foi a única que berrou e debateu-se, tentando livrar-se da segurança de Hyoga, que a soltou logo em seguida. Sabia que nada a consolaria naquele momento. A pequena homofalca fugiu chorando, procurando pelo cadáver do pai.
“Eles partiram há poucas horas. Mataram tantas pessoas… Ájax disse… Ele disse que até que Charis crescesse, o líder dos homofalcos seria Myles.”
Myles, que pouco se importava com sua nova posição, respondeu:
“E Eleni? E o meu filho?!”
“Eu não sei dizer, senhor…”
Nervoso, Myles também partiu voando, restando Hyoga e Aure ali. Esta continuava a gritar e a chorar, agachada no chão. Embora o cheiro de cadáveres e o mar de sangue o deixassem zonzo, Hyoga procurou manter a calma.
“Otis, você está bem? Está ferido?”
“Isto não vai me matar, Hyoga. Mas precisamos de ajuda. Todos estão desesperados, chorando pelos cantos. Nossos homens estão feridos, espalhados e vulneráveis. Não somos capazes de deter um novo ataque.”
“Isto não é bom. Vamos reunir todos no centro da cidade. Cadáveres, sobreviventes. Vamos juntar tudo e fazer uma reunião para decidirmos como será. Myles não pode fraquejar agora. Nenhum de nós pode. Acha que pode me ajudar nisso?”
Hyoga tinha plena consciência de que não tinha autoridade ou voz com Otis. Contudo, quando um único homem recomposto colocava-se para dar os próximos passos no caos, não existia hierarquia que pudesse impedi-lo. Além do mais, Otis continuava sendo seu amigo de treino, o que facilitava sua aceitação.
“Está bem, Hyoga, direi isso a todos. Vamos nos organizar.”
“Obrigado. Vou começar pelas estufas, comece pelo oeste da cidade.”
“Entendi.”
Otis saiu voando, enquanto Hyoga tomou o caminho oposto, trazendo cadáveres e procurando sobreviventes. Muitas vezes precisava deter golpes dos homofalcos que insistiam manter seus parentes em casa, mas sabia que era importante reunir todos, o mais depressa possível. Não podiam perder tempo com sepultamentos, consolos, lágrimas; não enquanto não soubessem quando seria o próximo ataque.
Naquela pesarosa tarefa, foi obrigado a carregar corpos de homofalcas com quem já trabalhara nas estufas, deformados com ferimentos gigantescos, muitos com partes do corpo faltando. Ao entrar na casa de Seema, sentia o coração bater mais forte.
“Seema? Seema, responda, por favor!”
Contudo, a homofalca caída no chão não respondeu. Suas roupas estavam negras de tanto sangue e seu corpo estava tão frio quanto o chão. Pesaroso, Hyoga ergueu-a nos braços e viu, sob o cadáver, o bebê que tivera a casca rompida com o peso da mãe. Estava vivo, respirando com alguma dificuldade.
Colocando o corpo de Seema na cama, pegou o menino nos braços, sabendo o que o seu gesto significava. Mas não estava tão preocupado com o futuro militar do menino, apenas com o seu bem estar. Decidindo levar o cadáver de Seema depois, carregou a criança em direção ao centro, pensando em pedir para algum dos sobreviventes para cuidar dela. No caminho, encontrou Myles, carregando os corpos de Eleni e de Tibalt nos braços, chorando.
“Myles…”
O amigo parou, permaneceu em silêncio. Mas logo continuou a caminhar, sem responder, até o centro da cidade onde reuniam os cadáveres. Colocou a família ao lado dos demais e ajoelhou-se, sem forças.
“Eu jamais devia ter dado ouvidos a você, Hyoga. Jamais devia ter saído daqui. Eu treinei duro, desenvolvi o meu cosmos, minhas técnicas de luta com a força do coração, apenas para proteger a minha família. Quando saio, apenas para descobrir que a Aure era falsa… perco tudo, sem ter a chance de defendê-los. Eu queria ao menos ter tido a chance de colocar-me como barreira para protegê-los.”
As lágrimas caíram no chão, e Hyoga viu-se sem ação. Continuou a carregar o filho de Seema nos braços, que se encolhia em seu peito.
“Maldito seja você, que encontrou uma Aure falsa. Que me tirou o direito de proteger aqueles que amo. Maldito seja, cavaleiro de Athena. Veio mesmo para proteger-nos? Deseja mesmo isso para nós? Maldito seja. Se não fosse por você, eu poderia ter sido um homofalco fiel à palavra até o fim. Poderia ter protegido Eleni e Tibalt.”
Em parte, Hyoga sabia que Myles tinha razão. Aquela missão começara com a Aure que ele encontrara no meio da neve. A viagem ao Santuário levara o líder do exército dos homofalcos, o cavaleiro que deveria protegê-los e um dos melhores guerreiros. Talvez toda aquela matança teria sido evitada se o Hyoga estivesse na cidade dos homofalcos.
“Eu não sei o que dizer, Myles. Não tenho como me defender depois do que aconteceu. Se tem raiva, pode descarregar.”
“Eu não sou Evan. Não tenho essa capacidade. Aguarde aqui, preciso colocar a corrente de Prometeu em você. Não posso mais confiar, como líder. Agora o meu dever é descobrir se tudo isso não foi um plano para afastar-nos da cidade e facilitar o ataque dos guerreiros de Prometeu. Se descobrir que você foi infiel à sua palavra, juro que eu mesmo o matarei, na frente de todos.”
O bebê contorceu-se no colo, resmungando, e Hyoga enrolou-o numa manta que encontrou caída no chão. O tempo esfriava-se mais e mais, assim como a vitalidade da cidade, deixando o pequeno vulnerável ao frio.
“Quem é esse, Hyoga?”
“É o filho de Seema. Ela protegeu-o com a própria vida, ainda era um ovo. A sorte é que ele já estava pronto para nascer, pois a casca quebrou… com o peso do corpo da mãe.”
“Significa que é o primeiro homem que o carregou após o nascimento. Sendo órfão, ele agora é sua responsabilidade. Deve dar-lhe um nome.”
“Seema não tinha nada em mente?”
“Eleni contou-me que não. Ele é seu, agora.”
‘Sobreviveu por causa do sacrifício da mãe’, pensou Hyoga, por um momento. ‘Exatamente como eu.’
“Meu… A partir de hoje, será o meu filho adotivo. Seu nome será Adelphos.”
“Que assim seja.”
Otis veio voando, carregando a corrente de Prometeu, que estava carregada de energia. Notando, Hyoga estranhou.
“A corrente está repleta do meu cosmos. Por que Ájax não a utilizou durante a batalha?”
“Ájax não teve tempo. Ele estava desesperado tentando salvar as pessoas da cidade.”
Sentindo-se ainda mais culpado, Hyoga passou o bebê momentaneamente para Otis.
“Deve ter sido horrível…”
Hyoga preparou-se para vestir novamente o seu fardo, sentindo que passaria um longo período sem tirá-lo. Assim que vestiu a túnica, Myles comandou a corrente com o cosmos e selou Hyoga em seu poder.
“Desta vez, não é só para absorver cosmos. Hyoga, como líder dos homofalcos, preciso garantir a proteção de meu povo. Diante do relato dos sobreviventes, considero você um prisioneiro de novo, proibido a sair do nosso território sagrado.”
“O quê? Mas desconfia de mim a esse ponto, Myles?”
“Hyoga, um clone seu atacou essas pessoas, veja.”
Só então Hyoga notou que muitos homofalcos sobreviventes observavam-no com tanto terror nos olhos que estavam prestes a fugir dali.
“Mesmo assim, suas orientações foram corretas. Agora estou assumindo o controle da cidade dos homofalcos e não preciso mais da assistência de um prisioneiro e escravo. Fique aqui e aguarde a chegada de seu dono.”
A maneira fria de Myles falar estava revestida da raiva por ter perdido a família naquele desastre. Hyoga rapidamente improvisou um berço dos destroços para Adelphos e sentou-se no chão, esperando por Evan, que provavelmente voltaria com a pior surra que poderia levar do homofalco.
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Hyoga despertou no meio da neve, de noite. A boca estava com gosto de sangue, e manchas vermelhas por toda a parte indicavam a severidade da surra. Evan ficara tão enfurecido com o ataque que o espancara o dia inteiro, sem se importar com os ferimentos que causava. Num dos ataques, golpeara-o na perna com tanta força que não havia dúvidas quanto à fratura do fêmur. Adelphos chorava dentro da caixa de madeira, reclamando da falta de cuidado. Em resposta, o rapaz tentou levantar-se, inutilmente. O corpo doía tanto que não podia mover um dedo sequer.
A insistência do choro obrigou-o a ignorar as dores. Arrastando-se na neve, Hyoga conseguiu aproximar-se do improvisado berço e acalmar o bebê, ao menos um pouco. Em seguida, segurou o bebê num dos braços e pôs-se a engatinhar, arrastando a perna fraturada a duras penas. Não recebeu ajuda de nenhum sobrevivente; somente olhares temerosos ou raivosos.
Merecia aquele tipo de tratamento? Ele nunca atacara homofalco nenhum. Também não salvara ninguém. Também não sabia se sua viagem teria de fato possibilitado tal ataque. Aceitando aquilo como mais um desafio a ser superado, voltou para casa aos poucos, arrastando-se e tentando controlar o choro do recém-nascido.
Ao entrar em casa, Hyoga notou que a lareira já estava acesa. Charis estava sentada na cama que Nyx utilizara anteriormente, derramando incontáveis lágrimas, em silêncio. Hyoga pensou em pedir-lhe ajuda, mas não sabia que tipo de sentimentos poderia Charis carregar contra ele naquele momento. Decidiu fazer sozinho.
Com o peixe que lhe era de direito como prisioneiro, preparou um caldo e usou-o para embeber um pedaço de pano. Aquele seria o seio de seu novo irmão. Deu-lhe aos poucos, observado por Charis, que ainda chorava. Tudo fazia arrastando a perna no chão e suportando com baixos gemidos a dor da fratura.
Quando o bebê enfim se acalmou, colocou-o em sua cama e sentou-se no chão, próximo à lareira. Ainda com a sensação de culpa, não tinha vontade de cuidar-se. Era quase como esperar a morte. Ainda não sabia o que se passava na mente da pupila, que o observava sem demonstrar pena ou raiva.
“Charis… Acha que fui o culpado?”
“Você é culpado, mestre”, respondeu ela, controlando o tom de voz. “Se você não tivesse ido ao Santuário, Evan, Myles e eu poderíamos ter lutado ao menos. E você tinha a missão de proteger-nos, não? Meu pai também foi culpado. Porque ele não perguntou ao cristal novamente se você poderia ir?”
Hyoga não sabia o que responder. Permaneceu em silêncio, esperando que ela o bombardeasse com mais culpa. Entretanto, isso não aconteceu. Chorando, Charis levantou-se.
“Eu quero odiá-lo, mestre. Quero e não quero. E por mais que eu tente… Não consigo… porque agora sei que você é a única pessoa que me resta de verdade.”
Ajoelhou-se ao seu lado e acrescentou, secamente:
“Eu sei que você não quer que eu faça isso. Mas eu também não queria que você causasse a morte de meu pai.”
Abraçando-o, Charis chorou com mais força. E Hyoga não tinha o direito de afastá-la mais. Se alguém matasse a sua mãe, o que faria? De certo tentaria se vingar, de certo faria um comentário ácido para demonstrar o rancor. Aquela era a pequena vingança de Charis, assim como também era um pedido de socorro. Sendo parcialmente culpado, Hyoga não se viu no direito de recusar. Deixou que ela molhasse sua túnica, enquanto a abraçava levemente.
“Charis, um guerreiro precisa recompor-se rapidamente da morte.”
“Como, mestre? Perdi o meu pai! Ainda não estou pronta para ser a líder dos homofalcos. É um fardo pesado demais… Para a força que tenho agora.”
“Myles cuidará de tudo até que cresça e complete o seu treinamento. Você entendeu? Isto só acabará quando você for a líder e tiver garantido a segurança dos homofalcos que ainda vivem. Só depois disso… Quando a paz voltar a reinar entre nós… é que você poderá chorar por ele.”
“Eu não consigo…”
Afinal, era apenas uma criança. Mesmo assim, Hyoga não podia amolecer mais do que aquilo. Sabia da dificuldade daquela lição, assim como a sua importância.
“Você precisa, Charis. Mas não desanime, pois irei ajudá-la. É o mínimo que posso fazer para desculpar-me. Amanhã, retomaremos o seu treinamento. Tenha a mente focada nesse objetivo, que um dia tudo se misturará numa grande batalha. Deve preparar-se para essa ocasião.”
“Mestre…”
“Enxugue essas lágrimas.”
Obedecendo, Charis levantou-se e enxugou o rosto com a manga da roupa. Em seguida tentou sorrir-lhe, embora só conseguisse uma expressão forçada.
“Perdoe-me pela demora, mestre. Vou cuidar de seus ferimentos agora.”
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