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[Saint Seiya] Prisão das Asas - Parte 11, escrita por Nemui

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Autora: Nemui
Fandom: Saint Seiya
Gênero: drama, aventura
Classificação: 16 anos
Status: Completa
Resumo: A vida de Hyoga se transforma quando entra em contato com um mundo completamente diferente do seu.


Quando acordou, Charis estava num local um pouco afastado da área de treinamento, na sombra. Os cavaleiros estavam à sua volta, conversando animadamente. Shun a segurava nos braços, apoiando-lhe a cabeça.

“Charis? Você está bem?”

“Shun? Eu…”

“Você desmaiou.”

“Eu falhei… Sinto muito, mestre…”

Hyoga estava de pé ao seu lado, com uma expressão neutra.

“Do que está falando?”

“Eu não consegui derrotá-los…”

“Se você conseguisse, não me precisaria mais como mestre. O objetivo desse exercício não era vencer seis cavaleiros ao mesmo tempo. Só queríamos ver até onde você conseguia lutar.”

Notando que só havia sorrisos satisfeitos à volta, Charis supôs que eles a acharam competente. No entanto, precisava ter certeza.

“E…? O que acharam?”

Mu deu-lhe uma garrafa de água antes de responder.

“Há quanto tempo você faz o treinamento, Charis?”

“Pouco mais de um ano…”

“Pois para mim, parece que luta há mais tempo. Daria… uns três anos? Quando temos discípulos assim, geralmente não os indicamos para a categoria bronze, somente prata ou ouro.”

Aioria ainda acrescentou, satisfeito.

“Mais do que isso, sua força de vontade é impressionante, Charis. Mesmo sabendo que não tinha mais condições para lutar, você reunia toda a sua força e cosmos para manter-se de pé. Isso veio do seu interior. É uma qualidade notória em cavaleiros de Athena.”

Hyoga riu, vendo sua pupila corar.

“Vocês estão inflando o ego dela.”

Contudo, Charis ainda preocupava-se com Hyoga. E as técnicas que usara? E a qualidade dos movimentos que ele ensinara?

“E o meu mestre?”

“Ora, Charis, o seu desempenho é também resultado do trabalho dele. Deve se orgulhar de ter um mestre assim. Vamos, levante-se.”

Ajudada a levantar-se, Charis sorriu, satisfeita. Afinal, não fora tão assustador quanto pensava. Sentia que insistir naquela viagem fora a decisão correta a tomar, por tudo o que descobrira de seu mestre e do Santuário.

Hyoga preparou-se para sair de lá, já que o treino demorara mais do que esperavam.

“Bem, não podemos perder mais tempo. Precisamos nos preparar rápido pra reunião com Athena. Um bando de cavaleiros suados seria punido se aparecesse assim.”

“É verdade. Charis é tão teimosa que até tomou mais do nosso tempo do que esperávamos. Mas valeu à pena. Vamos lá.”

O grupo dispersou-se como uma nuvem, restando mestre e discípula no caminho de volta aos seus quartos. Retornaram em silêncio, mas de corações leves.

——————————————————————

A sala de reunião era parecida com a de jantar da noite anterior, com a exceção do fato de ser um pouco menor. Aure não estava em qualquer lugar para ser vista. Charis permanecera descansando no quarto, restando apenas Hyoga, Myles, Evan, Arsen, Seiya, Shiryu e Shun para tratarem do assunto.

Lembrando-se de que era para tratá-la informalmente somente no jantar de reencontro, Hyoga ajoelhou-se e aguardou que Saori lhe desse a permissão para levantar-se. Notou que ela ficara um tanto frustrada com sua atitude, mas sabia que era como devia ser. Sentaram-se em seus respectivos lugares, com mais fotografias e radiografias sobre a mesa.

“Eu pedi para que fizessem uns exames médicos na Aure que estava com vocês.”

E voltando-se brevemente para Myles, sorrindo, acrescentou:

“Não se preocupe, são totalmente inofensivos.”

“E que conclusões tiveram?”, perguntou Myles, atormentado.

“As asas dela também são verdadeiras. Estão naturalmente ligadas à estrutura óssea, o que a torna uma homofalca também.”

“Mas… Não são gêmeas. Eu lembro quando Aure nasceu, eu vi.”

Tirando mais duas radiografias do monte, Saori mostrou-lhes o perfil do tronco de ambas, que mostravam várias diferenças.

“Vejam como elas são diferentes corporalmente. Sem falar que é impossível que sejam irmãs, pelo tipo sanguíneo. É completamente impossível. Precisamos fazer mais alguns exames e esperar mais um tempo para descobrir o que há. Ajudaria se também pudesse colaborar, Myles.”

“É claro, fico à disposição para qualquer coisa. Além dos exames, o que mais podemos fazer?”

“Gostaria que vocês conversassem, com as duas. Todos que de certa forma tiveram contato com a Aure original devem falar com elas todos os dias e traçar um perfil das personalidades. Haveremos de encontrar alguma diferença, eu tenho certeza.”

Mesmo sem conhecer a Aure do Santuário, Hyoga já tinha certeza de que a dos homofalcos era verdadeira. A maneira calma e gentil batia com a descrição de Myles de antes do seqüestro. Além disso, o zelo com que o tratara fora suficiente para mostrar suas verdadeiras intenções naquele curto espaço de tempo. Evan, no entanto, respondeu, bruscamente:

“A verdadeira é a que veio atacar o Santuário.”

Surpresos, todos o fitaram. Saori sorriu.

“Evan, tem alguma prova do que diz?”

“Não sei explicar, minha deusa. Apenas sei. Aure era como eu, sempre detestou os humanos. Mas ela nunca assumiu uma atitude violenta por medo. Comparando as duas de agora… Acho que há mais chance de a Aure daqui ser a verdadeira do que a outra… que permaneceu na residência de Hyoga, obediente como um cachorrinho.”

Revoltado, Myles protestou:

“Evan, pare de provocar o Hyoga na presença da grande deusa Athena, ele é um cavaleiro sagrado.”

“Não estou provocando-o”, respondeu calmamente. “Estou dizendo que Aure jamais aceitaria ficar na residência de Hyoga, nem sob o seu pedido, Myles. Ela jamais… jamais faria isso…”

Voltando-se para Hyoga, Saori procurava entender a situação.

“Hyoga…? O que você pensa?”

“Sou suspeito para falar, Athena, pois só conheço a Aure que resgatamos. Entretanto, seu comportamento gentil e tranqüilo bate com a descrição de Myles. Estou convencido de que ela é a verdadeira.”

Naquele momento, sentiu como se travasse outra batalha contra Evan, agora no campo das idéias. Notando o olhar agressivo de Evan, que dizia que mais castigos viriam em seguida, acrescentou:

“Observo, é claro, que vivi pouco tempo com os homofalcos. Não sei se estou certo ou errado, é apenas o que eu acredito… com sinceridade e sem desconsiderar a posição de Evan.”

“Entendo… Quero que você também tenha a chance de conversar com a outra, Hyoga.”

“Sim, Athena.”

“Sejam informais, como se todos tivessem passado pelos mesmos exames médicos da Aure que veio com vocês. Vamos trabalhar com as duas para descobrirmos a verdade por trás de tudo isso. Não precisam ter pressa, ajam com calma e cautela.”

“Isso significa que teremos de permanecer aqui por mais tempo, concluiu Myles.

“Eu temo que sim. Se tivermos sorte, não será por muito tempo. Mas fiquem à vontade no Santuário. Proporcionarei tudo que precisarem aqui. Hyoga?”

“Sim, Athena?”

“Aproveite o resto desta tarde para consultar um dos médicos do Santuário.”

“O quê?”

“Soube na carta de Ájax que você é agora escravo de Evan.”

Imediatamente, Seiya e Shiryu levantaram-se de suas cadeiras, surpresos. Intimamente, Hyoga preferia que Saori tivesse deixado aquele assunto de lado, pois não causaria tamanha comoção entre os seus companheiros.

“O quê?! Hyoga, isso não pode ser verdade!”

Ignorando Seiya e Shiryu, ela continuou.

“Além dos ferimentos causados pela corrente de Prometeu, há outros, não é? Por favor, responda.”

“Sim…”

“Passe num dos médicos para tratar as chicotadas das costas. Não pode deixá-las sem tratamento, tentando escondê-las para nós.”

“Sim… Obrigado, Athena… E por favor, perdoe-me.”

“Está tudo bem, amigo.”

Imediatamente, Seiya e Shiryu lançaram olhares furiosos na direção de Evan, que se mantinha em silêncio. Saori encerrou a reunião com um sorriso.

“Amanhã à tarde teremos outra reunião para sabermos como anda o caso ‘Aure’. Hyoga, é melhor que vá agora.

“Sim, Athena.”

Hyoga levantou-se, sem saber se amaldiçoava Saori ou agradecia a ela por expor sua situação com tanta naturalidade. Myles também se retirou, restando os cavaleiros e Evan. Seiya e Shiryu, chocados, aproximaram-se.

“Espere, Hyoga, isso é verdade? Você é um… escravo?”

“Ele é”, sorriu Evan, depois que Saori saiu. “Querem uma demonstração do meu poder sobre ele?”

“O que quer dizer, Evan?”

Para Hyoga, já bastava ser humilhado por Evan na frente de Shun. Cortou-o:

“Athena mandou-me ir ao médico, e é isso que farei agora, senhor. Não esqueça a sua palavra também.”

“É claro, prometi que não interferiria nas suas promessas. Mas creio que não levará mais de um minuto ajoelhar-se e beijar os meus pés, Hyoga. Depois disso, poderá tratar-se como deve.”

Atônito, Hyoga hesitou. Seiya já estava quase avançando em Evan, enquanto Shiryu fitava-os incrédulo.

“Você jurou, lembra-se? Prometeu que me obedeceria, sempre. Vai quebrar a sua promessa e receber a punição dos homofalcos? Você sabe que todo homofalco que mente deve ser punido com a morte. Você não é exceção.”

Sem escolha, Hyoga voltou-se a ele e ajoelhou-se. De toda a viagem, não haveria cena mais humilhante que aquela, servindo de boneco por puro capricho. Abaixou a cabeça e beijou cada um dos sapatos de Evan, tremendo com a sensação de rebaixamento. Não obstante, Evan ainda estava insatisfeito. Antes que Hyoga se levantasse, chutou-o no rosto com tanta força que o atirou para trás, jogando-o escada abaixo.

Seiya avançou sobre Evan, mas este se desviou, rindo.

“Vai desonrar sua deusa e atacar um hóspede, Seiya?”

Percebendo o erro do amigo, Shiryu segurou-o, mesmo tendo a mesma vontade de atacar.

“Seiya! Não podemos! Infelizmente… Hyoga, você está bem?”

Eles correram até Hyoga, que ainda estava caído no chão. Achando tudo divertido, Evan também se aproximou e pisou nas costas do cavaleiro, onde havia cortes de chicotada, até que ele gritasse de dor.

“Pare com isso, Evan! Deixe o Hyoga!”

“Eu deixo. Por enquanto. Afinal, ele precisa obedecer a Athena também. Não sou generoso, Hyoga?”

Evan afastou-se e Hyoga levantou-se atordoado. Limpou o sangue que escorria da boca, ignorando Seiya e Shiryu. Fechou os olhos, talvez para não ver a expressão de pena dos amigos.

“Hyoga, por favor”, insistiu Seiya, “o que aconteceu para você receber isso? O que houve?”

“Cale-se, Seiya”, foi a resposta seca de Hyoga. “Deixe-me em paz.”

Hyoga afastou-se, e Seiya ainda tentou conversar. Prudente, Shiryu segurou-o e limitou-se a ir em silêncio atrás do amigo.

“Não, Seiya. Ele já está ferido o suficiente.”

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A enfermeira do Santuário embebia um algodão de remédio, enquanto Hyoga permanecia sentado na maca de pernas cruzadas e com a cabeça baixa. Nas costas expostas, cortes disputavam um local vazio na pele, que parecia não existir. Após ouvir a explicação de Shun, Seiya acalmara-se e agora observava Hyoga com pesar.

Tornar-se escravo já era penoso. Sê-lo por ter perdido uma batalha contra alguém mais fraco era incomparavelmente pior. Nessas horas, o que dizer a um amigo? Não podia falar que não era uma vergonha, pois era. Não havia lado bom para ressaltar. Não podia demonstrar pena, pois isso só o diminuiria mais.

O silêncio imperava na sala. A enfermeira, que terminava de passar o remédio nas costas e no pescoço, passou aos pulsos, marcados com os grilhões. Diante do silêncio dos amigos, Hyoga colocou-se.

“Fui eu mesmo que destruí a minha vida, amigos. Não preciso de pena, não preciso de conforto. O que eu tenho é o que mereço, é justo.”

Procurando-o, Charis entrou na enfermaria, trazendo uma camisa nova.

“Mestre…”

“O que está fazendo, Charis? Como me achou?”

“A deusa viu o que aconteceu depois da reunião e procurou-me depois. Pediu para trazer-lhe esta camisa limpa para não infeccionar os machucados. Por favor, use-a.”

“Ela podia ter trazido pessoalmente”, esbravejou-se Seiya. “Afinal, é o Hyoga que está com problemas.”

Charis aproximou-se mais de Hyoga e colocou a camisa em seu colo, afastando-se por respeito logo em seguida.

“Por favor, mestre, aceite.”

“Está bem, Charis.”

Vendo a enfermeira passar o remédio nos pulsos, Charis ficou ainda mais tímida, mas tomou coragem e pediu.

“Por favor, moça… Quando sairmos daqui, eu terei de cuidar dos machucados do meu mestre. Costumamos usar um ungüento para cuidar deles, mas esse remédio é diferente. É bom?”

“Sim, ajuda a cicatrizar esse tipo de ferimento.”

“Será que… Eu poderia ter um pouco para quando partirmos?”

“Claro. Passe aqui quando partirem que eu lhe darei um pouco.”

“Muito obrigada, moça!”

“Charis?”

Fitando o mestre em resposta, Charis sorriu alegremente.

“Talvez eu não possa fazer muito agora, mestre. Mas o que puder, farei. Juro que ainda vou libertá-lo do Evan, eu prometo!”

“Já não disse para tomar cuidado com as palavras?”

“Já. Mas eu não estou mentindo!”

Não era a primeira vez que Charis o afirmava. Educada por Ájax, Hyoga sabia que a futura líder dos homofalcos precisava prezar suas promessas e honra acima de qualquer outra coisa. Se afirmava com tanta certeza, é porque derrotar Evan realmente fazia parte de sua lista de objetivos, era um item que incluíra apenas para beneficiá-lo.

“Charis…”

“Sim, mestre?”

Hyoga sorriu gentilmente. Quanto mais convivia com a discípula, mais difícil era conter o carinho quase paterno que crescia dentro dele.

“Já foi conhecer o resto do Santuário?”

“Ainda não, mestre. Pensava fazê-lo hoje à tarde.”

“Vá, então. Divirta-se.”

“Sim… Obrigada, mestre!”

Charis saiu, empolgada com o que poderia encontrar naquela terra desconhecida. Sua breve aparição fora suficiente para animar Hyoga, deixando-o mais tolerante a conversas.

“Como é difícil treinar Charis… Como me manter frio com uma garotinha dessas?”

Shun sorriu e viu-a partir da enfermaria pela janela, correndo em direção aos campos de treino que ainda não visitara.

“Entendo perfeitamente. Mas Hyoga, parece que Charis consegue manter o seu espírito aceso na cidade dos homofalcos.”

“Ela, Myles e Eleni. Mas principalmente ela. Nem deve saber disso, mas… Acho que Charis me deu muito mais do que eu por ela.”

“Talvez porque você passou por momentos difíceis na cidade dos homofalcos. Isso sempre torna as pessoas mais unidas, Hyoga.”

“É verdade. Mas sabem, ser mestre é uma experiência única. Vendo a atitude dela, a minha… Consigo entender muitas das atitudes de Camus. Agora há pouco… Tive uma vontade enorme de abraçá-la, como se a tivesse como irmã. Não só agora, já tive em diversas ocasiões. Mas não posso, porque sou mestre. Por isso, tento colocar todos os meus sentimentos nos ensinamentos e torná-la a melhor possível.”

“Já que não pode doar-se de uma forma…”

“Exato. Estranho, não? Pensando dessa forma… Sinto-me feliz por ter dado essa mesma experiência ao Camus…”

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À noite, Hyoga entrou na prisão onde estava a Aure que atacara o Santuário e que Evan julgava ser verdadeira. A garota estava sentada na cama, encostada à parede e com o olhar perdido para qualquer canto. Notando-o, encolheu-se defensivamente, como um animal acuado.

“Não se preocupe”, acalmou ele. “Sou Hyoga, estou vivendo com os homofalcos como cavaleiro responsável pela segurança da cidade. Só vim para conversar, Aure.”

“Você é o prisioneiro humano. É nosso inimigo. Está mentindo.”

“Não, juro que não. Eu era prisioneiro, mas agora os homofalcos confiam em mim.”

“E o que são as marcas de corrente no seu pescoço?”

Com o ferimento da corrente de Prometeu, como explicaria que não era um prisioneiro? Mas se ela lembrava-o, as suspeitas de Evan tornavam-se mais reais. Hyoga encostou-se à parede oposta à dela, cauteloso.

“A corrente de Prometeu absorve o meu poder. Assim, um dia vocês poderão se defender com o cosmos que ela acumulou, assim eu espero.”

“Eu não acredito.”

“Tudo bem, eu estranharia se acreditasse. Nem eu acreditaria…”

Permaneceram daquele jeito por um longo tempo. Hyoga não podia ter pressa para conquistar a confiança daquela homofalca e obter as respostas que desejava. Ainda, não conseguia ver muita diferença entre aquela e a outra Aure.

“Levou muito tempo até que os homofalcos confiassem em mim. Apanhei muito, mas hoje consigo andar entre eles sem problemas. Houve uma época em que ajudava as homofalcas das estufas, Eleni, Seema… Também trabalhei para consertar as estufas. Sabe aquele pilar podre da estufa que ficava perto de sua casa? Nenhum dos homens queria consertar, porque precisavam arrastar um tronco novo, desde a floresta, no mesmo dia. Eu consertei.”

“Você é um escravo. Está livre porque disseram que você é um cavaleiro.”

“Não… Quero dizer, sim… Sou um escravo, mas não de todos os homofalcos. Só de Evan. Perdi uma luta contra ele. Mas o fato de ser cavaleiro fez com que os homofalcos me aprisionassem com a corrente de Prometeu. De início, ainda era um prisioneiro, mas não sou mais considerado um, pois recebi o brilho azul do cristal. Como eu disse, só uso a corrente para armazenar cosmos. Assim foi determinado pelo cristal, enquanto estiver lá. Senão, como poderia estar aqui? Ainda teria de estar lá, como prisioneiro.”

Aure não se convenceu. Desviou o olhar emburrada e aquietou-se, ignorando Hyoga.

“Os humanos não são todos ruins, Aure…”, tentou mais uma vez. “É claro, você nem deve acreditar em mim… Mas há pessoas que prezam a honra e a palavra também.”

“Como você?”, respondeu ela, em tom irônico.

“Eu prezo. Jurei que o faria. Juro e prometo cada coisa que me dá infinitas dores de cabeça. Prometi treinar Tibalt, filho de Eleni, porque fui o primeiro homem a carregá-lo nos braços. No momento eu nem sabia qual era o significado daquele gesto! Mesmo assim, não fugi de minha palavra. Athena puniu-me por invadir o território dos homofalcos, condenando-me a viver com eles até o final dos meus dias, servindo-lhes como protetor. Por isso mesmo, virei servo dos homofalcos. Sou servo seu, também. Honro a minha palavra.”

“Se é meu servo, deve me obedecer.”

“Sim… contanto que não viole o meu sagrado juramento com Athena.”

“Então me obedeça e nunca mais volte a falar comigo.”

“Temo que seja impossível. Athena ordenou-me conversar com você todos os dias. Estou cumprindo ordens.”

“Já falou comigo hoje. Desapareça da minha frente.”

Hyoga hesitou, e Aure irritou-se mais ainda. Agarrou o copo que estava sobre a mesa e atirou-o nele. Hyoga segurou-o por reflexo e colocou-o de volta à mesa, educadamente. Em seguida, inclinou-se numa mesura utilizada às damas no Santuário.

“Como queira. Com a sua licença.”

Frustrado, ele saiu da prisão. Encontrou-se com Shun do lado de fora, aguardando o resultado da conversa. Meneando com a cabeça, suspirou de desânimo.

“Ela me expulsou de lá. Nem sequer me ouviu, Shun. Acho que me odeia mais do que antes.”

“O que disse?”

“Tentei me explicar, fui sincero e honrei minha palavra. Agi com a mesma dignidade de um homofalco. Mas acho que isso não serve para humanos.”

“De qualquer forma, Saori pediu para tirarem um exame de DNA de Myles e da outra Aure. Quando o resultado sair, saberemos. De qualquer forma, só podemos continuar com este plano, enquanto isso. Se der certo, amanhã saberemos.”

“Espero que sim. Agora vou ver a outra Aure.”

“Mas ela estava morando com você… Precisa falar com ela?”

“Não realmente. Só quero ver se está bem.”

Hyoga afastou-se, em direção ao quarto da Aure que viera com eles. Sentia-se estranho por ver duas pessoas com a mesma fisionomia agindo de maneiras tão distintas. Querendo aliviar-se da expressão raivosa da primeira, bateu de leve na porta do quarto da Aure.

“Sim?”

“Sou eu, Hyoga.”
O rosto envergonhado de Aure surgiu lentamente por trás da porta. Hyoga notou que chorava, com dois rastros de lágrimas no rosto.

“O que houve, Aure?”

“Não foi nada. Entre. Preciso cuidar de suas costas.”

“Já cuidaram de mim na enfermaria. Obrigado.”

Mesmo assim, ele entrou. Aure ofereceu-lhe uma cadeira à mesa e serviu um pouco de vinho, que Hyoga gratamente aceitou.

“Você se lembra de quando eu cheguei à terra dos homofalcos? Como eu estava?”

“Preso, Hyoga, numa das prisões. Lembro que ficava lendo livros e mais livros…”

“Certo… Era isso mesmo.”

“Por quê…?”

“Não… É que não sabia se você lembrava esse meu passado. Tem medo de mim porque fui prisioneiro?”

Aure encolheu-se, sem responder. Reencheu o copo de vinho, desejando que ele permanecesse por mais tempo. Ele ofereceu-lhe a cadeira do lado.

“Não quer beber também?”

Aceitando, Aure sentou-se ao seu lado, em silêncio. Após alguns minutos, respondeu, olhando para a mesa.

“Eu não tenho medo de você. Tenho medo dos homens que me machucaram.”

“Sei. Deve ter sido difícil para você. Mas não se preocupe, nenhum homem irá machucá-la mais, não enquanto estiver sob a minha proteção.”

“Estou com medo.”

“Não no Santuário. Aqui são todos jurados de Athena, eles não vão machucá-la.”

“Não é isso.”

Repentinamente, Aure virou-se para ele. Hyoga deixou o vinho de lado e fez o mesmo, perguntando-se o que Aure poderia pedir-lhe.

“Eu menti.”

Hyoga não escondeu sua surpresa. Aure hesitou, mostrava claro nervosismo.

“Menti quando me perguntou se haveria algo que pudesse fazer para agradecer. Há sim. Por favor, não conte ao meu irmão que faltei com a palavra. Há algo que quero em troca.”

“Eu prometo, não direi nada. E o que deseja como agradecimento? O que puder fazer, farei.”

Pela primeira vez, Aure tomou uma atitude. Segurou-lhe as mãos, mas não era para curá-lo. Levantou-se e guiou-o através do quarto. Hyoga deixou-se levar até a cama, temendo aonde aquele gesto terminava.

Assim que ele se sentou, ela abaixou-se e beijou-lhe os lábios com delicadeza. Imediatamente as verdades se revelaram. A súbita mudança de comportamento dava fim à sua missão. Mesmo assim, ele não quis impedir Aure. Fizera-lhe uma promessa. Queria cumpri-la, não apenas por seguir a lei dos homofalcos. Retribuiu o beijo e deitou-se na cama.

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Já estava acordado quando Aure despertou, na manhã seguinte. Ao mesmo tempo em que sentia um peso na consciência, sabia que o tempo apagaria qualquer culpa da noite passada. Segurou-lhe a mão gentilmente quando ela se virou para o seu lado, fitando-a diretamente.

“Bom dia.”

“Bom dia…”

“Acho que já está na hora de parar de mentir.”

Ela encolheu-se de medo, mas Hyoga logo tratou de acalmá-la.

“Percebi ontem, na hora em que tocou as minhas mãos. Estava chorando, nervosa, tomando atitudes… Você sabe por que viemos ao Santuário. Você sabe, porque não é quem eu pensava ser. Qual é o seu nome?”

“Nyx…”

“Nyx… Jamais esquecerei. Venha.”

Nyx aninhou-se em seu peito, temendo por seu dia. Ambos sabiam que sua morte era inevitável, que aquelas eram suas últimas horas. Permaneceu em silêncio, ouvindo os batimentos de Hyoga, enquanto ele a apertava nos braços.

“Você tinha razão. Não posso protegê-la. Bem que gostaria, por tudo que fez por mim. Mas não posso. Eu sinto muito, Nyx, perdoe-me…”

“A culpa não é sua. Mas está na hora de terminar com tudo isto. Obrigada, Hyoga.”

Beijando-o mais uma vez, sorriu, afastou-se e levantou-se da cama. Começou a vestir-se, como se preparasse para um dia normal. Compreendendo, Hyoga também se levantou e fez o mesmo. Precisavam voltar às obrigações.

Quando terminou, Nyx segurou-lhe a mão forte, mas não se recusou a sair. Caminharam daquele jeito calmamente até a sala de reuniões e requisitaram uma audiência urgente com Athena. Logo em seguida, Evan, Myles e seus amigos chegaram, atendendo ao seu pedido.

“O que houve?”, perguntou Seiya, assim que entrou.

“Espere a Saori, Seiya, prefiro contar a todos de uma vez só.

Calaram-se. Hyoga não queria apressar-se. Cada vez mais, Nyx segurava-o com mais força. Assim se encontraram com Saori e se sentaram nas cadeiras, seguidos dos demais. Evan e Myles constantemente olhavam as mãos unidas de forma reprovadora, pois sabiam que a impessoalidade era imprescindível naquela missão.

“Hyoga… Vim assim que pude. O que você tem de tão importante para contar-nos?”

O rapaz hesitou um pouco, mas indicou Nyx, como se jamais a tivessem conhecido.

“Athena… Esta é Nyx. Ela é a falsa Aure.”

Imediatamente, Myles levantou-se revoltado.

“Ora, sua!! Você me paga, sua traidora!!”

“Espere!”, interrompeu Saori, antes que Hyoga fosse contra o amigo para protegê-la. “Hyoga, eu tinha acabado de descobrir com o resultado dos exames. Mas queria dar mais um tempo de vida à Nyx.”

“Nós precisamos matá-la”, insistiu Myles.

“Ainda não. Nyx ainda não nos contou tudo o que sabe. Por favor, Nyx.”

Temerosa, Nyx fitou Hyoga, que lhe assentiu com a cabeça.

“Sim, minha deusa. Eu sou uma homofalca, nascida na cidade dos homofalcos. Contudo, fui separada muito cedo de casa, quando ainda era um bebê. Fui criada pelos guerreiros de Prometeu como prisioneira. Sem direitos, sem vida, eles me tratavam como se eu fosse um inseto… Éolo era o único que tinha contato comigo.”

“E há algo sobre Prometeu que ele disse?”

“Prometeu sempre respeitou os homofalcos porque não queria atrair a fúria de Athena. Mas a recente batalha que houve com o Santuário mudou seu ponto de vista. Não sei quanto aos detalhes do plano, mas Prometeu não pretende matar apenas um homofalco.”

Irritado, Evan interrompeu-a:

“Se você foi criada por pessoas que mentem, mentiu todo o tempo até agora. Por que acha que acreditaremos agora, sua vadia?”

“Não estou mentindo. Quero ser uma homofalca ao menos uma vez na vida e honrar a minha palavra… Por favor, acreditem.”

Saori sorriu, tentando acalmá-la.

“Está tudo bem, Nyx. Continue, por favor.”

“Prometeu está irritado porque acha que os homofalcos destruirão a raça dos humanos no futuro. Ele não acha que Athena é capaz de proteger a humanidade contra aqueles que possuem asas bestiais. Atualmente, há alguns homofalcos que definirão esse futuro, mas ele não sabe quais. É tudo o que eu sei sobre Prometeu.”

“E o que aconteceu com você para aparecer na cidade dos homofalcos com a aparência da Aure?”

“Foi Éolo que colocou esta aparência em mim. Disse que minha missão era matar… o humano que se encontrava com os homofalcos.”

Hyoga mostrou-se surpreso, e Nyx teve medo de que a soltasse. Mas não o fez.

“Eu?”

“É… o cavaleiro de Athena que protegia os homofalcos. Ele disse que eu devia exterminá-lo de alguma forma. Só que… não tive coragem. Um dia, Éolo surgiu diante de mim e disse que se eu não o matasse, tanto Aure como eu morreríamos. Mesmo assim, não consegui mover um só dedo. Então ele ordenou que Aure… atacasse o Santuário. Ele contava que as duas morressem desta forma.”

“Uma delas terá de morrer”, respondeu Evan, secamente. “E não será a Aure.”

“Eu sei… Não nego o meu crime. Não havia escolha para mim.”

“Então eles já sabiam que encontraríamos o esconderijo”, notou Hyoga.

“Não, eles pretendiam libertar-me depois. Mas vocês descobriram e o plano foi adiantado.”

Levantando-se, Evan pegou a adaga que trazia na cintura.

“Bem, agora que já tiramos todas as informações, peço licença à deusa para prosseguir com a punição de Nyx.”

“Espere um pouco”, levantou-se Seiya. “Nyx está arrependida! Não é o suficiente para perdoá-la?”

“Isso mesmo”, concordou Shun. “Ela foi forçada, sabemos que não é uma pessoa má! Além disso, Nyx arriscou a vida para proteger o Hyoga. Qualquer um que faça isso é nosso aliado!”

Evan invocou o cosmos, em resposta. Myles também fez o mesmo, irritado.

“Calem a boca, cavaleiros imbecis! Vocês não nos conhecem!”

“Nyx ainda está sob a lei homofalca, pois nasceu de pais alados! Nossa obrigação é punir todo homofalco que profere mentiras, com a dor proporcional à gravidade do delito. Não podemos permitir que a protejam.”

“Acalmem-se todos vocês”, insistiu Saori. “Eu tenho um acordo a fazer, homofalcos. Se permitirem que Nyx passe a viver no Santuário como serva, ela nunca mais voltará à terra dos homofalcos. Não seria punição suficiente?”

Myles acalmou-se e voltou-se educadamente para Saori.

“Perdoe-me, minha deusa, mas nossa palavra sagrada é inflexível. Juramos que todo homofalco que mente deve ser morto. Se aceitássemos tal acordo, tanto Evan como eu… como Hyoga também… seríamos mentirosos e punidos com a mesma pena.”

“Está tudo bem”, interrompeu Nyx, em voz baixa. “Eu sei que minha vida terminará hoje. Se quiserem punir-me com a morte… Estou pronta.”

Condoída, Saori levantou-se e aproximou-se dela.

“Eu entendo. Não há nada que eu possa fazer para evitar a sua morte. Mas como agradecimento por ter nos contado tudo o que sabe de forma voluntária e por ter preservado a vida de Hyoga, concedei a você um desejo antes de morrer. Peça o que quiser.”

Nyx sorriu em resposta.

“Se havia um desejo em mim, Hyoga já o realizou. Agora, a única coisa que posso pedir é isto.”

Nyx tirou a adaga da cintura de Myles, que a observou cuidadosamente para que não fizesse qualquer movimento impensado. Em seguida, colocou-a gentilmente na mão de Hyoga.

“É tudo o que eu quero. Não quero que a pessoa que me puna me odeie ou deseje o meu sofrimento. Eu quero que você o faça, Hyoga.”

Segurando a adaga, Hyoga assentiu. Tanto Evan como Myles não protestaram, sabiam que a adaga lhe traria uma morte dolorosa. Por um momento, o cavaleiro hesitou. Se permanecesse viva por mais um minuto, já seria um ganho. Mas a homofalca não estava disposta a tal espera.

“Hyoga… Quero que sepulte o meu corpo. E por favor, não demore. Corte o meu pescoço agora.”

“Você é bem corajosa, sabia? Talvez mais do que eu.”

Nyx sorriu e Hyoga fechou os olhos com força, não querendo ver seu ato grotesco. Rasgou o pescoço de Nyx e sentiu o sangue espirrar em seu rosto. Soltando a adaga, segurou-a com os dois braços, tomando o cuidado de apoiar a cabeça metade degolada. Os movimentos de Nyx acalmaram-se, até que desaparecessem, como a sua vida.

Mesmo Evan permaneceu em silêncio, enquanto Hyoga cobria o ferimento do pescoço e preparava-se para sepultá-lo. Algumas lágrimas caíram do rapaz, mas logo desapareceram. Ele sabia que não podia ser sentimental naquele momento, apenas respeitoso. Erguendo-a nos braços, colocou-se de frente aos companheiros que o rodeavam.

“Com licença. Preciso ir sepultá-la.”

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