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[Saint Seiya] Prisão das Asas - Parte 27, escrita por Nemui

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Autora: Nemui
Fandom: Saint Seiya
Gênero: drama, aventura
Classificação: 16 anos
Status: Completa
Resumo: A vida de Hyoga se transforma quando entra em contato com um mundo completamente diferente do seu.



Hyoga cerrou os dentes e suportou a dor do anti-séptico derramado sobre o corte da espada, enquanto Mu ignorava-o e prosseguia o tratamento. Mesmo que tentasse se contorcer, as correntes de Prometeu mantinham-no bem preso ao chão.

“Eu consegui fechar o ferimento mais profundo com o cosmos, mas acho melhor terminar o serviço da forma tradicional. Terei de dar alguns pontos, Hyoga.”

“Dou graças à deusa por você estar aqui para ajudar, Mu.”

“Sim, mas vou embora amanhã. Lyris terá de lidar com seu ferimento nos próximos dias. Se bem que… isso não é o mais importante. O que vai ser de você daqui pra frente, Hyoga?”

Meneando, o rapaz sorriu.

“Deixo que o destino escolha. Minha vida não depende mais a mim, Mu. Na verdade… Ela não me pertence desde o dia que cheguei com Charis, há três anos.”

“Eu não sei como você agüenta. Mas… Não está sozinho”, disse, sorrindo para Lyris.”Está para formar uma bela família.”

“Nós já somos.”

“Tem razão.”

Enquanto Mu costurava o ferimento, Charis entrou na cabana e encostou-se à parede, em silêncio. Não sorria, não demonstrava preocupação. Simplesmente esperava. Era a primeira vez que se viam desde o repentino ataque. Depois de terminar o tratamento, o cavaleiro de ouro guardou seus instrumentos.

“Esta é a última visita que posso fazer-lhe, Hyoga.”

“Isto significa que pode ser a última vez que conversamos, Mu.”

“Infelizmente.”

“Eu tenho um pedido a fazer. Por favor, proteja Athena por mim também, já que meu destino é viver e morrer aqui.”

“Não há a necessidade de pedir isso, Hyoga.”

“E diga ao Kiki que desejo boa sorte a ele nesta última etapa do treinamento dele para ser um cavaleiro de Athena. Eu tenho certeza de que ele será esplêndido.”

“É claro.”

“E peça perdão a Athena… por não ter protegido o povo de Kohotek…”

“Não foi sua culpa… Boa sorte, Hyoga. Espero que não seja a última vez.”

A atenção de Hyoga logo foi tragada à discípula, numa troca de olhares que só causava incerteza. Ele sorriu, pois sabia que a discípula só fizera o correto para ela no momento.

“Voltou a treinar?”

“Sim”, foi a resposta fria.

“Eu preciso orientá-la.”

“Você não precisa mais… cavaleiro de Athena. Evan ofereceu-se para concluir o meu treinamento em conjunto com Myles. Eu vim aqui informar-lhe isso e agradecer-lhe por toda a dedicação, tempo e esforço que gastou comigo. Eu prometo a você que não desperdiçarei o seu conhecimento.”

O olhar de Hyoga quedou-se triste, mas o sorriso não desapareceu.

“Então pretende deixar-me. Eu sei que não é bom para você, futura líder dos homofalcos, ser discípula de um suposto traidor, eu entendo. Só fico um pouco chateado por não ter podido concluir tudo, mas sei como as coisas funcionam por aqui. Não sei se estarei sequer vivo no próximo mês.”

“Você é um traidor”, respondeu Charis, enfatizando o verbo, “Você voltou-se contra os homofalcos e protegeu aqueles… loucos.”

“Não os chame assim, Charis… Eu amo todos eles.”

“É o que eram, mes… cavaleiro. Estavam tomados pela loucura e só pensavam em matar. Nós protegemos nossas terras e nossa gente. Você só está aqui porque Myles teve compaixão. Mas o que fez foi muito errado, pois eles eram os invasores e você tinha a missão sagrada de proteger-nos, estou errada? Portanto, o que fez foi um erro e uma falta à palavra. Por mais que o respeite, essa é a minha única conclusão. Eu concordo com Evan. Você deve morrer.”

“Talvez eu deva mesmo… Mas Charis, se eu morrer, eu quero que me prometa uma coisa.”

“Prometer? Conhece o peso dessa palavra?”

“É claro. Se eu for condenado à morte, não poderei ter outro discípulo para passar adiante os conhecimentos de Camus. Neste caso, eu gostaria que você treinasse um jovem para ser um cavaleiro de Athena, Charis.”

A proposta parecia-lhe tão absurda, que a garota desencostou-se da parede e aproximou-se.

“Eu? Mas não…”

“Você pode. Eu sei que pode. Vai crescer, ganhar experiência, será uma ótima guerreira. Eu queria que você lhe ensinasse… As técnicas, sobre ser um cavaleiro, sobre Athena, sobre proteger a humanidade, sobre ser impiedoso… Nesta você se dará melhor do que eu.”

Os segundos de silêncio trouxeram tanta aflição no rapaz, que reforçou o pedido:

“Eu não me importo que me mate, Charis… Mas por favor, realize esse desejo. É muito importante para mim.”

O olhar da discípula abrandou-se por um momento.

“Está bem. Eu prometo.”

“Obrigado…”

Antes de ela sair, Hyoga lembrou-se num estalo:

“Ah! Antes que eu me esqueça, há mais uma coisa que eu queria dizer-lhe, Charis.”

“O que é?”

“Quando você estava lutando contra Evan, notei que a barreira cósmica em torno de suas asas era mais fraca que no resto do corpo. Eu sei que não quer mais treinar sob a minha orientação, mas, se ainda fosse o seu mestre, o próximo passo com certeza seria eliminar esse ponto fraco. Era tudo o que tinha de dizer.”

Sem lhe dirigir o olhar, Charis respondeu:

“Não sou mais sua discípula.”

E saiu do barraco, fechando a porta e devolvendo-o às sombras.
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Os dias eram longos e cada vez mais vagos. Sem ver a claridade do dia, Hyoga nunca sabia quando era dia ou noite, quando devia acordar ou dormir. Sua única referência era Lyris, que mantinha os horários da cidade e era a única pessoa a vir. À noite, sempre dava um jeito de improvisar uma cama e dormir agarrada a ele, como diziam que os casados deveriam ser. A despeito do desconforto, não reclamava e sempre lhe sorria carinhosamente enquanto cuidava de todas as necessidades. Mesmo em tarefas desagradáveis, como na higienização do prisioneiro, mantinha o bom humor e tratava-o com respeito.

Naqueles dias, a única pessoa que realmente permanecera ao seu lado de maneira incondicional era Lyris. Mesmo após o episódio da traição e a morte de Adelphos, o relacionamento com a esposa só melhorara. Aos poucos, Hyoga se abria mais com ela do que com qualquer pessoa da cidade dos homofalcos.

“Eu não tinha a menor idéia de como arranjar comida no inverno”, contava, numa tarde, ou o que ele supunha ser tarde. “A camada de gelo era enorme, e ainda nem tinha forças para quebrar uma pedrinha. Mestre Camus nunca me ensinava essas coisas; falava que eu precisava aprender a sobreviver sozinho. Foi quando o avô de Yacov surgiu como se fosse um segundo pai.”

“Ele também estava no ataque?”

“Graças aos céus, não. Ele se foi antes disso, de forma bem tranqüila. Não desejo aquilo a ninguém.”

“Eu sei…”

“Aquilo também foi minha culpa. Toda aquela matança… Eu gostaria de ao menos ter tido a chance de enterrá-los com minhas próprias mãos. Cada um deles tinha um nome, e eu os conhecia de cor. Para cada um, faria uma lápide de gelo, que não derreteria nem no verão…”

Arrependida por tocar no assunto do ataque, Lyris levantou-se.

“Hoje eu tenho uma surpresa para você, Hyoga.”

“É? Depois de ficar preso por não sei quantos dias, nada me surpreende.”

“Sente-se um pouco.”

Depois de passar vários dias preso ao chão do barraco, Lyris conseguiu convencer Myles de soltá-lo um pouco, até porque escaras estavam em formação nas costas, o que seria um perigo à vida do cavaleiro caso desenvolvessem-se mais. A corrente de Prometeu permanecia atada a um poste de ferro, mas Hyoga já podia movimentar-se o suficiente para mudar de posição com freqüência.

Hyoga obedeceu e fechou os olhos quando Lyris abriu a porta do barraco. De tão habituado à escuridão, não conseguia mais ver a luz do lado de fora. Só sabia do momento do dia quando Lyris entrava ou saía, pela claridade externa.

‘Como será que está Charis agora?’, pensou, enquanto esperava. ‘Deve estar treinando duro como sempre. Só espero que ela tenha levado o meu conselho a sério, não sei se Myles a instruiria sobre isso. Não falta muito para que ela complete o treinamento no curso de Evan, mas ainda há chão até uma formação mais completa, como a de um cavaleiro. Eu queria ter encerrado o treino. Detesto deixar algo inconcluso.’

Suspirou. Precisava afastar aqueles pensamentos da mente; não era mais um cidadão entre os homofalcos, apenas um prisioneiro no corredor da morte. Quando o cristal chegasse, fariam um novo interrogatório com ele. Mesmo não tendo traído o povo, tinha mentido para proteger Lyris, na ocasião em que houvera a traição com Tarasios. Certamente descobririam.

Rodou os braços para facilitar a circulação do sangue. Por causa dos dias de imobilidade, ganhara pequenas escaras nas costas e pernas, redobrando os cuidados da esposa com sua saúde. Sabia que aqueles ferimentos se curariam com um pouco de paciência, mas eram tão doloridos que não conseguia mais dormir de costas. A corrente tilintou com o movimento e caiu pesada no chão ao final do exercício. Hyoga já se conformara a usá-la pelo resto da vida; só esperava que o cosmos acumulado naqueles elos fosse usado por uma boa causa.

Virou o rosto quando a luz invadiu o pequeno e empoeirado cômodo, com a volta de Lyris; ela carregava nos braços um cobertor macio contendo a prometida surpresa. Hyoga levantou-se e tomou cuidadosamente o pacote dela, com um largo sorriso. Acomodado no macio, o ovo, com cerca de 30 cm, tinha a casca meio amarelada com pequenas manchas marrons.

“Ele conseguiu! Lyris, ele não quebrou…”

“Foi muita sorte. Mas ele tinha rachado, por mais cuidado que eu tomasse. O líquido estava vazando, e por isso perdi a manhã inteira para vedá-lo. Ele não irá vazar mais, mas a casca é mais fina que as outras. Eu também não garanto que ele nasça… perfeito.”

Hyoga sabia que as chances eram mínimas, sabia que a incompatibilidade genética entre ele e os homofalcos era grande demais para ter um filho saudável. Mesmo assim, queria tentar. Mesmo que tivesse de cuidar de um híbrido deficiente, sem dúvidas o levaria nas costas se fosse necessário.

“Eu quero tê-lo, Lyris. Eu aceito os riscos.”

“Você não acha que é egoísmo nosso? Dizem que a cada cem tentativas de cruzamento entre humanos e homofalcos, apenas uma logra. Provavelmente nosso bebê nascerá quase morto ou não passará de poucos anos, Hyoga. Para que torturá-lo assim? Por que fazê-lo sofrer por nossa teimosia?”

Hyoga fitou-a, com olhos afiados, já acostumados à escuridão. Intimidada, Lyris recuou.

“Desculpe. Não devia ter dito isso.”

“Você tem razão”, respondeu ele, sem nenhum tom de repreensão na voz. “Ele sofrerá muito mais que nós. Mas Lyris… Eu tenho tanto a dar a este pequenino, tanto a ensinar… Eu sei que o perdão dele me custará muito ao crescer, por ser o que é, mas… Não acha que o carinho que devemos a ele não vale uma morte? Mesmo que ele não possa viver muito… Assim como Adel, continuará vivo em mim, assim como nós viveremos através dele. Você não pensa assim?”

Após um breve momento de reflexão, Lyris respondeu de maneira firme:

“Não. Ele não será nem humano, nem homofalco. Um sofredor assim… É melhor que nem nasça. Eu sou egoísta. Quero tanto ter um filho com o seu sangue, Hyoga, não importam os riscos, nem como os outros o verão. Eu só quero ter uma prova de que nós dois viveremos juntos em alguém. Mas imaginá-lo sofrendo… Só me traz lembranças de Adelphos.”

Hyoga sentou-se no chão e olhou demoradamente ao pequeno ovo nos braços. Era estranho pensar que aquilo era o seu futuro bebê, mas o afeto que tanto o atraía àquela casca eliminava qualquer lógica da mente.

“Eu vou protegê-lo. Mesmo que seja de fato condenado por traição… Enquanto ainda estiver vivo, vou protegê-lo com todas as minhas forças.”

“Então o proteja, enquanto vou trabalhar na estufa.”

Antes de sair da cabana, com a porta entreaberta, sorriu:

“Está um pouco mais contente agora?”

Era curioso como a relação entre eles se invertera. Se outrora, ele era quem tentava animá-la, agora era o contrário. Devolveu o sorriso, enquanto aquecia o pequeno ovo nos braços.

“Estou. Obrigado, Lyris.”
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Eram meses? Talvez estivesse há um semestre preso naquela cabana. O que houvera com Shun? O que houvera com a guerra dos homofalcos? Preso ali, Hyoga sentia-se doente por estar tão isolado do mundo. No entanto, a presença do ovo de certa forma acalmava-o. Não estava sozinho.

Por estar no escuro, seus outros sentidos passaram a exercer a função de captar o meio e indicar-lhe as nuanças da cidade, nas ruas mais próximas. Escutava melhor, cheirava melhor, tateava relevos como se lesse um mapa. Dessa forma, pôde ouvir um pouco das vozes no lado de fora, numa incomum comoção.

“Ela me atacou… Não vi quando… É culpada! É um monstro aquele…”

No meio, a voz de Myles tentava acalmar a mulher. Era uma discussão sobre punir alguém da vila, mas Hyoga não pôde compreender por quê. As vozes logo se distanciaram, e ele decidiu perguntar sobre o ocorrido a Lyris, quando retornasse de noite. Sentiu o líquido dentro do ovo agitar-se com um movimento de seu bebê e sorriu.

“Você quer sair logo, não é? Agüente mais um pouco, pequeno, pois o mundo não fugirá de você.”

Após alguns movimentos, o feto acalmou-se. Hyoga fez o mesmo e deitou-se no chão. Ao seu lado, Lyris deixara uma cesta exageradamente forrada de cobertores para manter o ovo aquecido e protegido. Hyoga colocou-o ali cuidadosamente e esperou com paciência, a mente imersa em lembranças que não voltariam, da época em que lutava com seus amigos por Athena.

A noite chegou com a fome e a impaciência por reencontrar-se com Lyris. Naquela situação, seu mundo era ela, aquele barraco, a corrente de Prometeu e o ovo. Outros fatos, lugares, homofalcos, nada lhe diziam respeito. No entanto, de vez em quando, alguns fatos exteriores insistiam em bater à sua porta. Lyris entrou carregando uma cesta que liberava o cheiro de um cozido, um de seus preferidos. O rapaz sorriu e sentou-se no chão para ouvir melhor os passos da esposa.

“Estava louco para que voltasse.”

Sem responder, Lyris abriu a cesta e tirou a tigela de comida em silêncio absoluto. Colocou no lugar de sempre, para que Hyoga pudesse localizar a colher e a tigela sem esbarrar, e esperou. O vácuo deixado pela falta de comunicação instigou a curiosidade do marido e até deixou margem a entender que havia algo de errado no relacionamento entre eles.

“Aconteceu algo hoje, Lyris?”

“Nada de muito importante.”

“E nas estufas?”

“As plantas não saem do lugar, continuam as mesmas.”

“Está entediada.”

“Só não estou com muito humor para conversa hoje, Hyoga.”

“Sei… Bem, vou comer.”

Quando Lyris não estava bem, costumava avisá-lo antes que mais perguntas fossem feitas. Hyoga cogitou perguntar sobre o ocorrido no dia, mas ateve-se ao mau humor da esposa e decidiu que só tocaria no assunto quando ela se sentisse melhor. No entanto, ao terminar de comer, notou que o rosto de Lyris estava um pouco mais escuro que o normal. Segurou o braço que se estendia para recolher sua tigela e aproximou-se de imediato para vê-la melhor. De perto, percebeu que se tratava de um hematoma.

“O que aconteceu com o seu rosto?”

Ela parou e não respondeu. Imóvel, deixou que Hyoga a analisasse por alguns segundos, mas logo se cansou e se levantou para partir.

“Espere!”

Segundo a cultura homofalca, as mulheres deviam obedecer a toda e qualquer ordem do marido em casa, o que obrigava Lyris a esperar. Entretanto, de seus olhos escorreram lágrimas, o suficiente para sensibilizá-lo. Ele não sabia o que ocorrera, mas imaginava que, para ela, ter o marido como prisioneiro acusado de traição era pesado demais à cabeça. A melhor decisão não era arrancar a verdade de seu sofrimento, mas compartilhá-lo. Abraçou-a como pôde aos limites da corrente e acrescentou em voz baixa:

“Faz um favor para mim? Chame Myles, quero conversar com ele. Depois disso, quero que descanse e se acalme um pouco, Lyris.”

Até então, a culpa deixara Hyoga imobilizado de qualquer atitude, fosse com relação às obrigações como cavaleiro, fosse como sua posição de chefe de família. Recluso num mundo à parte, não percebera como tudo recaía pesadamente em Lyris. Estava mais do que na hora de tomar uma atitude em vez esperar passivo por um cristal que não chegava nunca.
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Myles entrou na cabana quase de madrugada, com traços de cansaço nos olhos. Hyoga, porém, por ter pouca noção do tempo no cativeiro, estava bem desperto e pronto para defender os interesses de Lyris.

“Queria me ver, Hyoga? Sabe que não é mais um homem de direitos.”

“Não é porque fui preso que minha mulher pode ser agredida por outros. Como você me explica isso, Myles?”

“Foi uma briga. Eu já resolvi tudo.”

“As lágrimas de Lyris não diziam isso. Não acha que eu, como marido, tenho o direito de saber o que houve com detalhes?”

“Pode perguntar a ela.”

“Não me force a lembrá-la da humilhação à qual foi submetida, Myles.”

“Ela tem a obrigação de escutá-lo e obedecer-lhe, Hyoga. Terá de contar, se perguntar, ou será punida corporalmente por desrespeito.”

“Sou eu que não quero perguntar-lhe. Eu quero ouvir de você, com suas palavras, com suas descrições, exatamente tudo e nada menos que isso. Afinal, o que houve com minha esposa?”

A posição firme de Hyoga não lhe deixou alternativa. Myles sentou-se à sua frente, guiando-se apenas pela direção da voz do prisioneiro.

“Foi Hesper. Ela disse à sua esposa durante a jornada de trabalho que seu ovo devia ser queimado por questão de segurança e manutenção da pureza da raça homofalca. Lyris avançou e agrediu-a. Eu mesmo tive de parar a briga. Puni ambas pelos ataques.”

“Eu tipo de punição você deu para cada uma? Espero que a de Lyris não tenha sido menor.”

“Do que está falando? Foi Lyris quem iniciou a agressão física, ela levou dez chicotadas a mais. Trinta nela, vinte em Hesper. Fui claro e justo.”

“Chama isso de justiça?! Vocês, homofalcos, prezam tanto a palavra, mas desconsideram-na totalmente na hora de dar punição aos culpados?!”

“Pare de gritar, Hyoga! Eu fui justo segundo as leis homofalcas! O povo homofalco não tem culpa por pensar que humanos e seus híbridos são monstros! Você os traiu num momento crucial, deveria morrer!”

“Eu não os traí! Eu só estava tentando achar um modo de ninguém sair morto daquele combate, eu já disse. Minha família não precisa pagar pelos meus atos, Myles!”

“Então devia ter pensado nisso antes de agir.”

Myles levantou-se para ir embora, mas Hyoga não se convenceu. Lyris fora punida por tentar proteger a honra de seu filho, e ele precisava fazer o mesmo, como chefe daquela família. Levantou-se e conseguiu segurar o braço do homofalco a tempo, mas o mesmo respondeu com um forte soco, que o atirou contra a parede.

“Não me toque, escravo! Se realmente amasse sua mulher e filho, não teria erguido seus punhos contra os homofalcos naquele dia. Agora deve suportar as conseqüências.”

“Espere, Myles! Ao menos, deixe-me livre! Eu juro que não farei nada de mal ao seu povo, mas preciso estar livre para ajudar Lyris nestes meses de choco. Tudo está recaindo sobre ela, enquanto eu fico aqui, sem poder fazer nada. Eu quero ajudá-la, pelo menos tratar os ferimentos de suas costas! Por favor…”

“É impossível, Hyoga.”

“Apenas uma noite! Eu quero ajudá-la…”

Ajoelhando-se, Hyoga colocou-se de quatro e levou a testa ao chão, sem se importar com a humilhação. Era pouco comparado ao que Lyris teve de passar. Uma noite seria suficiente para animá-la um pouco.

“Por favor, Myles…”

Um momento de hesitação passou pelo líder, um breve em que a possibilidade de libertar Hyoga foi cogitada. No entanto, ele apenas se limitou a dizer:

“Em breve o cristal ficará pronto. Quando esse dia chegar, se você passar pelo interrogatório, terá todo o direito de ficar com sua esposa. Mas se provar indigno de nosso povo, será morto. Todas as respostas virão nesse dia. Até lá, não permito que saia desta cabana, por medida de segurança aos homofalcos. Eu sinto, Hyoga, mas é impossível. Acalme-se e espere.”

“Myles!”

As esperanças de Hyoga foram-se com a rala luz vinda da porta ao ver Myles partir. Limpou o sangue da boca e sentou-se de costas à parede, ofegante devido ao soco que levara. Notou o ovo ao seu lado, na cesta, e pegou-o nos braços com o cobertor. O que mais podia ele fazer por Lyris sem ser aquilo? O que mais podia fazer, limitado àquele raio de um metro e meio da corrente de Prometeu, sem poder conversar com qualquer homofalco?

Apoiou o ovo no peito, seguro pelo cobertor, e passou horas desperto, imaginando uma forma de sair vivo ao final de todo o processo, sem conseguir chegar a uma solução.
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Sob a fraca luz de uma vela, Hyoga limpava cada ferimento com um lenço úmido embebido do ungüento que usava como anti-séptico. Molhava o ferimento, voltava o lenço à tigela com o remédio, tingindo-o de vermelho, e limpava os cortes de chicote. Provavelmente Lyris estava irritada com ele por ter sido preso daquele jeito, mas não pronunciava nenhuma palavra a respeito.

“Eu sinto muito por isso, Lyris. No momento, não pensei nas conseqüências que haveria para você e o nosso bebê, mas era responsabilidade minha preservar o bem estar da família. Foi tudo minha culpa. E por mais que eu queira, não posso voltar atrás, pois já estou praticamente condenado.”

“Você não quis traí-los. Não é justo que seja condenado, Hyoga.”

“Mas eles farão um interrogatório com o cristal. Quando isso acontecer, perguntarão se eu já menti para eles. A resposta será positiva. Eu menti uma vez para Myles.”

“Você fez isso… para proteger-me…”

“Eu não sabia o que pensar na hora. Só fiz o que meu coração mandou, assim como no dia da batalha. Estou envergonhado. Um cavaleiro não deve agir por motivos pessoais e sujar sua honra. Eles têm razão por punir-me.”

“Mas graças a isso eu ainda estou viva. E graças a isso, o nosso bebê nascerá. Não acha que valeu à pena?”

O rapaz sorriu, mas logo se tornou sério novamente, ao ouvir as vozes agitadas dos homofalcos lá fora. Permaneceram os próximos minutos em silêncio, a fim de compreender o que ocorria ali. A resposta veio de forma clara quando a porta abriu-se e revelou o rosto preocupado de Shun.

“Hyoga!”

“Shun!”

“Hyoga, você está bem? Quando veio a notícia de que você tinha traído os homofalcos, Athena exigiu que sua punição só viesse depois da chegada do cristal. Nós sabíamos que você estava preso, mas… Não imaginei… que fosse assim.”

Para Shun, a imagem de Hyoga só decaíra mais. Sujo após meses dormindo no chão na velha cabana, o cavaleiro não possuía mais qualquer dignidade em sua imagem. A calça e a túnica pareciam trapos, e a sujeira acumulada no corpo indicava que ele não tomava um banho de verdade há meses, apenas fora limpo com um pano úmido. Apesar de todos os cuidados de Lyris, era impossível evitar o mau-cheiro do local.

“Não se preocupe comigo. Eu fiquei preocupado com você, quando soube que foi atacado.”

“Fui atacado por dois homofalcos. Um deles era tão parecido com Evan que pensei que fosse o mesmo. Mas não se preocupe: já me recuperei.”

“Átias e Eudor. Você pensou que fossem aliados.”

“Sim. Perdoe-me, foi um erro meu. Mas Luna foi conduzida com segurança ao Santuário com a ajuda de Mu. Ele também trabalhou dia e noite na confecção do novo cristal aos homofalcos. Todo o trabalho foi conduzido o mais depressa possível e agora eu trago duas coisas: o cristal e a espada.”

Shun sentou-se no chão à sua frente e tirou da mochila um embrulho que se revelou ser o novo cristal sagrado dos homofalcos. Idêntico ao primeiro, emanava um brilho azul claro que se mexia como fogo quando era movido.

“Mu o fez mais forte para resistir às quedas. Ele não se quebrará tão fácil quanto o primeiro. Experimente tocá-lo, Hyoga.”

Hyoga obedeceu e tocou na ponta do cristal, que brilhou a ponto de ofuscá-lo. Era um brilho branco, neutro, mas muito forte à visão acostumada às trevas. Hyoga protegeu os olhos com o outro braço, e Shun sorriu:

“Muito bom. Ele funciona perfeitamente. Agora, a encomenda número dois: Luna.”

“Você deve entregá-la a Myles”, disse Hyoga, esfregando os olhos irritados, “ele é o dono dessa espada, não eu.”

“Ainda não”, respondeu o outro, “não é hora. Hyoga, Athena soube que Lyris conseguiu pôr um ovo seu nesses meses. Ele ainda está aí?”

“Está, mas… Já está começando a rachar. Estamos desconfiados de que não conseguiremos salvá-lo…”

“Você se engana. Eu posso vê-lo?”

“Lyris, por favor.”

Lyris obedeceu-lhe e tirou o ovo de uma caixa de madeira forrada com cobertor, onde ele permanecia de modo que a rachadura não entrasse em contato com o albume e este vazasse. Shun segurou-o cuidadosamente.

“É a primeira vez que vejo um ovo de homofalco. É lindo.”

“Lindo é o pequeno ser que dorme aí”, respondeu Lyris.

Depois de observar o ovo, Shun desembainhou Luna e segurou o cabo com a lâmina voltada para baixo, na direção da casca. Imediatamente, Lyris saltou sobre ele, achando que era uma ameaça.

“Está louco?! É o nosso bebê!”

“Fique calma, Lyris, por favor!”

“Mas você vai matá-lo!”

“Lyris!”, impôs Hyoga em tom firme. “Pare com isso, deixe o Shun em paz.”

“Mas…”

“Preciso repetir? Deixe-o.”

Lyris calou-se diante da ordem de Hyoga. Eram poucas as vezes que ele se impunha com a autoridade que era tão comum no cotidiano dos homofalcos, mas só por motivos mais fortes. Geralmente, seus pedidos vinham com educação e cortesia, da mesma forma como ele atendia às necessidades da esposa. Shun sorriu e voltou a apontar a espada para o ovo.

“Não se preocupe, não vou machucá-lo. Este aqui… É o presente da nossa deusa para você, Hyoga, pelo futuro nascimento de seu bebê. Ela achou que era o melhor a fazer.”

Quando a ponta da espada tocou o topo do ovo, o poderoso cosmos de Athena, acumulado na lâmina, transferiu-se ao ovo e ambos iluminaram-se como lâmpadas. Novamente, Hyoga teve de fechar os olhos para não ofuscar-se, assim como Lyris. Aquela energia fluiu por alguns minutos, até que Luna parasse de brilhar. O ovo, antes rachado e frágil, agora apresentava uma sólida e firme casca, natural dos ovos homofalcos normais. O cavaleiro guardou a espada e devolveu o ovo ao casal.

“Não é apenas a casca. O cosmos de Athena purificou o bebê e eliminou todas as barreiras geradas pela incompatibilidade das raças. As asas dele ou dela serão perfeitas, iguais às dos demais homofalcos. O cosmos da deusa protegerá o ovo até que nasça com segurança. Esse é o presente da deusa a você, Hyoga.”

Enquanto que Hyoga abriu um sincero sorriso de felicidade, Lyris chorou de alegria, abraçada àquele pequeno pedaço de vida que gerara do ventre.

“Eu não acredito… Obrigada, minha deusa! Obrigada, Shun! Meu pequenino… Ele está saudável… Está salvo! Veja, Hyoga!”

A firmeza da casca trouxe tranqüilidade a Hyoga, além de alegria por ver Lyris sorrir daquela forma. Sabia que a chegada de Shun podia significar a sua morte, mas não estava nervoso. Agora que tinha a certeza de que seu bebê nasceria com segurança, sentia que podia receber a punição apropriada aos seus crimes e partir para o outro mundo.

“Obrigado, Shun. Por favor, quando encontrar Saori, diga-lhe que não tenho palavras para expressar o quanto sou grato. Minha maior preocupação era que esse ovo não nascesse e que Lyris acabasse sozinha por minha culpa… Muito obrigado mesmo. Minha vida é por Athena e sempre será; diga isso a ela. E você, meu amigo… Teve todo o trabalho de vir até aqui. Eu nem estaria vivo se não fosse por você.”

“Somos amigos. Precisamos cuidar um do outro.”

“Estou contente por poder conversar uma última vez com você… Antes de ser morto.”

“Não diga isso, Hyoga. Não sabemos o que vai acontecer.”

“Eu já me conformei, Shun. Não… Não há jeito. Diga a todos que… Eu sinto muito.”

“Não deveria pensar assim.”

“Um homofalco não pode perdoar, Shun. Se ele perdoa uma mentira, quebra a própria promessa, ou seja: também se condena à morte. Eu já conheço bem o modo de pensar dos homofalcos, e sei que eles nunca hesitariam. Quando eu fizer o interrogatório, minha vida chegará ao fim.”

Shun levantou-se e bateu a poeira da calça.

“Eu não teria tanta certeza assim. Afinal, você não fez nada de errado” Sorriu. “Você nunca traiu ninguém, Hyoga. Vejo-o daqui a pouco. Vou devolver esta espada sagrada ao seu respectivo dono.”

A maneira calma de Shun lidar com a situação pareceu, para Hyoga, quase um desacato. Em seguida, porém, lembrou que Shun não fazia idéia de que ele já mentira aos homofalcos e talvez considerasse apenas o episódio do ataque em questão. Seria uma decepção quando ele descobrisse a verdade.

Olhando para o ovo divinamente restaurado, voltou a sorrir. Não poderia ter recebido presente melhor naqueles últimos momentos. Agora que estava à beira da morte, todo o lucro devia ser direcionado à sua família. Para ele não havia mais nada.

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