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[Saint Seiya] Prisão das Asas - Parte 26, escrita por Nemui

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Autora: Nemui
Fandom: Saint Seiya
Gênero: drama, aventura
Classificação: 16 anos
Status: Completa
Resumo: A vida de Hyoga se transforma quando entra em contato com um mundo completamente diferente do seu.


As batidas na porta eram tão fortes que Hyoga acordou do pesado sono após o dia de trabalho. Estava encolhido no canto da cama, sob os grossos cobertores, como um filhote a proteger-se do frio. Lyris ainda rondava a sua mente, na preocupação de não ter ainda chegado.


“Hyoga! Abra, é uma emergência! Abra!”

A voz de Evan irrompeu a sala assim que ele abriu a porta, junto com o desespero. Lyris estava em seus braços, o que deixou o coração do cavaleiro agitado a ponto de ouvir os próprios batimentos ante os comandos do homofalco.

“Precisamos esquentá-la. Agora!”

Imediatamente, Hyoga encheu as panelas de água e tentou acender o forno, mas Evan queimou o cosmos para apressar o trabalho. Com o seu poder de fogo, rapidamente esquentou a água até o ponto de que Lyris necessitava. O corpo congelado da homofalca estava tão fraca que mal podiam ouvir os batimentos do coração. A respiração, fraca, era quase um suspiro, trazendo aflição aos rapazes que a tratavam.

“Evan, o que aconteceu?”

“Encontrei-a desmaiada próxima às montanhas no leste, onde os ventos são insuportáveis. Não sei o que fazia ali, mas trouxe-a o mais depressa possível. Que marido mais irresponsável é você, por deixá-la sair assim de noite, Hyoga! Lyris está doente!”

“Eu não esperava que ela fosse para um local tão arriscado!”

Hyoga quase entrou na tina com Lyris por ter de segurá-la para que não se afogasse na água. Molhou-lhe a cabeça e o rosto diversas vezes, na tentativa de trazê-la de volta, mas ela continuou inerte.

“Vamos, Lyris, não é para desistir agora! Vamos…”

Evan continuou a esquentar a água com o cosmos, até que a cor da pele dela adquirisse um tom rosado, diferente do roxo que tanto os assustava. Hyoga não parou de esquentá-la, na tentativa de acordá-la. Esquentava água na lareira e no forno, apesar de Evan estar ali para ajudá-lo, e chamava-a sem parar.

“Lyris, pode me ouvir? Lyris, acorde, acorde!”

Esperaram por mais meia hora até que ela estivesse fora de perigo. Mais tranqüilo, Evan esquentou mais a água com o cosmos e voltou-se a Hyoga, sério.

“Você disse que ela saiu para dar um volta?”

“Foi o que pensei. Ela tem estado muito chateada com a morte de Adel. Isso eu entendo, mas…”

“Acha que ela tentou tirar a própria vida?”

Hyoga observou-a desesperado. Tudo indicava que Lyris tentara se matar naquele vento gelado, pois nenhum homofalco aproximava-se das montanhas sem estar devidamente agasalhado.

“Não… Ela não pode ter feito isso. Eu sei que devia dar-lhe mais atenção, mas o que mais temo é que Lyris se perca… Eu tentei ser o mais companheiro possível nesses dias, o mais compreensível. Mas mesmo assim…”

“Não é sua culpa. Mas, cavaleiro… Se Lyris deseja morrer, ninguém tem o direito de impedir a sua morte, nem mesmo você. Minha ajuda termina aqui. Você ganhou uma chance para trazê-la de volta, mas não pode impedi-la para sempre. Se o desejo dela é partir… Você não pode fazer nada.”

Hyoga parou e observou-a pesaroso. E se ela tentasse outro suicídio? O que ele faria? Impediria? Aceitaria? O quê? Evan enxugou as mãos e dirigiu-se à saída.

“Eu fiz tudo o que podia. Agora só depende de você, cavaleiro.”

A porta fechou-se, deixando-o as sós com Lyris. Hyoga manteve-a na água por mais uma hora, tirou-a e trocou-lhe a roupa, com o medo estampado no rosto. Todo aquele esforço para trazê-la de volta não teria qualquer significado se suas palavras não surtissem efeito quando ela acordasse. Jogou mais lenha na lareira e enrolou-a no cobertor mais grosso que tinha. Seu abraço esquentava-a e impedia que ela tentasse fugir quando acordasse.

Quando acordou, Lyris viu-o abraçado a ela e debateu-se nos fortes braços para libertar-se. Hyoga não foi complacente; segurou-a mais forte, mas sem machucá-la. Precisava ter certeza de que não sairia correndo novamente à nevasca logo que a soltasse e que o ovo em seu ventre chegaria a nascer.

“Lyris. Acalme-se, Lyris.”

“Hyoga, você… Por que foi atrás de mim?”

“Eu não fui. Evan encontrou-a na montanha, quase morta de frio, e trouxe-a para cá. Se não fosse por ele, você já estaria morta.”

“E por que não me deixou morrer? Eu queria ficar com o Adelphos.”

“Porque Adelphos está nos braços de Seema, está contente por poder ficar junto à mãe biológica. Mas em seu ventre, há um bebê que precisa de você. E eu também. Por favor, Lyris, não me abandone.”

“Por que se agarra a mim? Não foi você que quis casar-se comigo. Eu o traí, fui indigna. Por que uma homofalca assim merece viver? Diga-me…”

“Porque não importa o motivo de ter ficado com você agora e porque você ganhou uma chance para recomeçar, Lyris.”

A homofalca encolheu-se, quase tremendo. Estava acuada, nervosa com a maneira como Hyoga a prendia ali. Queria libertar-se daqueles braços e correr para a morte, para o seu Adelphos, mas ele não a largava em hipótese alguma.

“Você pode me soltar agora, Hyoga.”

“Para que tente se matar de novo? Mesmo que me prometa, como vou saber se não irá tentar outro suicídio? Afinal, a pena para a mentira na terra dos homofalcos é a morte, o que a deixaria mais do que satisfeita, pois nem eu teria como impedi-la. Portanto, a única forma de mantê-la viva é esta, segurando-a junto de mim, de maneira que não tente nenhuma loucura.”

“Por causa dos meus erros do passado, decidi que não voltaria a mentir para você. Manterei minha palavra até a morte, Hyoga.”

“Então promete que não tentará mais se matar?”

“Eu queria prometer isso, Hyoga. Mas depois que Adelphos morreu, não sei se tenho forças para continuar vivendo com você. Eu quero, mas… Não tenho vontade de fazer mais nada, nem mesmo de cuidar de mim mesma. Não tenho vontade nem de sair da cama.”

“Se for assim, não a soltarei. Eu quero a sua promessa, Lyris, agora.”

Passaram-se segundos intermináveis ao cavaleiro enquanto esperava pela respostas de Lyris. Mesmo que tivesse de permanecer ali por dias, não sairia daquela cama sem a promessa de que não haveria mais tentativas de suicídios.

“Vamos morrer de sede assim, Hyoga”, foi a resposta seca da esposa.

Hyoga permaneceu em silêncio por vários minutos, esperando que ela cedesse. Como a força de vontade de ambos fatalmente os levaria ao desejo de Lyris, ele decidiu por outra opção.

“Então prometa que não o fará até que me dê um filho. Pelo menos um filho eu quero de você Lyris, mesmo que nasça com alguma deficiência. Eu prometo a você que quando ele chorar em meus braços, não a impedirei de tirar a própria vida se desejar. Como isto lhe parece?”

Lyris apoiou-se nele, desanimada.

“Você é um humano, eu sou uma homofalca. Você tem noção das chances que temos de ter um filho, Hyoga? É provável que ele nem saia da casca.”

“Eu não quero saber das chances. É injusto que me abandone sem deixar um herdeiro do meu sangue. Se quer se matar, esta é a minha condição para que aceite. Caso contrário, eu a proibirei de afastar-se de mim, mesmo por um segundo, em todos os momentos do dia, no treino de Charis e nas tarefas que desempenho como cavaleiro. E cada vez que tentar tirar a própria vida, eu a impedirei com todas as minhas forças.”

Era a última opção, mas Hyoga recorreu à sua autoridade como marido para deixá-la sem escolha. Queria ganhar tempo até ter um bebê e convencer Lyris de que precisava cuidar daquela pequena criatura por ser de seu ventre. Se o amor maternal arrastara-a à depressão, apenas o mesmo poderia tirá-la dela.

“O que decidiu, Lyris?”, voltou a perguntar, após dez minutos de silêncio.

“Você só está adiando o inevitável, Hyoga. Seria mais simples permitir que eu morresse agora e acabasse com todo o sofrimento. Cada vez que penso no nosso filho, inevitavelmente a imagem de Adelphos vem à mente.”

“Então terá de conviver com isso até que eu tenha o nosso bebê. Não acha que é um sacrifício válido a essa criança? Você não é a mãe dela?”

“Está bem”, respondeu ela, após uma pausa, “eu aceito a sua proposta. Terei um filho seu para deixar como herdeiro e depois… Irei para junto de Adelphos. Esperarei até ter certeza de que ele crescerá forte e saudável. Mas depois, se eu ainda desejar, quero que você o faça. Quero que você seja a pessoa atravessar-me o peito, Hyoga. Será essa a nossa promessa.”

A exigência de Lyris deixou-o inquieto, temendo como seria esse dia quando chegasse. Esperava que o instinto maternal a mantivesse com ele, mas e se a depressão não fosse superada? E se ele tivesse de matar a própria esposa? Aflito, abraçou-a mais forte, como se segurasse sua própria vida na Terra. Logo Lyris remexeu-se e voltou-se e ele.

“Hyoga? Você já pode me soltar.”

“Ah… Desculpe.”

Lyris afastou-se na cama e deitou-se de costas para ele. Logo dormia pesada e relaxadamente enquanto ele continuava acordado, assombrado com a promessa que fizera. Sabia que as palavras de Lyris foram apenas para fazê-lo mudar de idéia, mas tão terríveis que era ele o perturbado agora. O que aconteceria quando o bebê de ambos finalmente chorasse em seus braços? Seria capaz de manter sua promessa?
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O retorno de Mu trouxe euforia e novas esperanças aos homofalcos enfermos, junto à nova carga de remédios e à notícia que deixou Hyoga inquieto, desejando descer as montanhas. Shun fora internado no hospital de Atenas, sob os cuidados da Fundação Grado, tal como dos demais cavaleiros de Athena. Luna já estava nas mãos seguras da deusa e o cristal era o próximo projeto do Santuário. Hyoga adquiriria, então, a completa alforria de Myles, o que não seria uma significante mudança, já que suas tarefas para com o líder não passavam de simples consertos ou pequenas ajudas.

A notícia mais reveladora, entretanto, não era o ataque a Shun, mas o resultado da análise dos frascos coletados por Evan e seus homens. Como suspeitaram, a cultura que continham alastrou-se por determinadas plantas e homofalcos e disseminou a doença como uma nuvem a cobrir suas terras. Em resposta imediata, Evan organizou grupos para procurar os culpados, enquanto Myles começava a recuperar as forças e preparava-se para reassumir a liderança.

Já Hyoga estava dividido entre as preocupações de casa, do trabalho e do amigo. Resolveu, assim, definir prioridades: em primeiro, procuraria por quaisquer pistas dos inimigos, pois esse era o seu dever como cavaleiro de Athena; em segundo, cuidaria de Lyris e sua depressão. Quanto a Shun, precisava confiar em Saori e em seus amigos, sendo que não havia como deixar aquelas terras.

Depois de passar a manhã rondando cada canto da terra dos homofalcos, parou diante do cemitério que ganhara vários novos habitantes e circulou entre as lápides de madeira, semi-enterradas e com nomes lapidados em grego. Parou diante da sepultura de Adelphos, que cavara, sujo de barro como tantos outros que perderam entes queridos, um pouco antes da chegada de Mu. Cerrou os punhos com força, relembrando os amargos e finais momentos do filho em seus braços, sem poder salvá-lo, sem poder sequer tranqüilizá-lo.

Já estivera no inferno em pessoa, já presenciara as torturas dos mortos no reino de Hades. Mas como eram julgadas crianças que mal possuíam consciência da própria vida? Como haver uma morte justa a elas? Seriam carregadas nos braços de Hermes até os campos Elíseos? Seriam puras? Ajoelhou-se e uniu as mãos, mas não sabia para quem rezar. Havia de fato um deus para Adelphos?

Fechou os olhos e rezou para a mãe. Podia confiar nela para conduzir seu filho.

Ao terminar, notou que a corrente de Prometeu não mais retinha o uso de seu cosmos. Sua energia queimava suavemente à volta, enchendo-o de vigor. Todos os dias, Myles liberava-o do castigo daquela prisão por uma hora, que era empregada no treinamento de Charis. Como a recuperação da discípula requeria uma breve suspensão do treino, seu cosmos era liberado ao final do dia, quando havia a certeza de que não seriam atacados por possíveis guerreiros de Prometeu. Naquela vez, contudo, era diferente.

Dirigiu-se à entrada da cidade, onde os homofalcos se reuniam ansiosos e confusos. Myles, ainda frágil mas de pé, e Evan, tinham os olhos perdidos no horizonte, nos limites de suas terras. Alguns homofalcos de guarda no céu carregavam espadas e vestiam rústicas e amassadas armaduras, prontos ao combate. Batiam as asas apenas para manter-se imóveis no ar, concentrados num acontecimento maior. Intrigado, o cavaleiro atravessou a multidão de soldados e chegou à frente junto aos companheiros.

“Mas… O que está havendo?”

“Prepare as suas armas, cavaleiro”, respondeu Evan, sem tirar o olhar das montanhas. “Nós seremos atacados.”

“Prometeu mobilizou um gigantesco exército para esmagarmo-nos de vez”, continuou Myles. “Aquele miserável deve ter pensado que cairíamos facilmente com esta peste. Ele não conhece a coragem de nosso povo, vamos mostrar-lhe. Não serei derrotado por nenhum deus.”

“Como sabem?”

“Arsen viu-os, e os guardas da fronteira confirmaram a informação. Sem o cavaleiro Shun para proteger a aldeia mais próxima, o ataque virá rápido.”

“Kohotek… Espero que todos estejam bem lá…”

“Eles não almejam os homens, mas os homofalcos.”

“Mesmo assim, não consigo deixar de preocupar-me. Eles também são meus irmãos, viram-me crescer nas planícies siberianas, ou melhor: cresceram comigo. Como posso não ficar preocupado?”

“Não pode fazer nada a respeito, Hyoga. Preocupe-se com o nosso povo, é ele quem você deve proteger. Preste atenção, pois sua colaboração é fundamental para nos defender. Vamos nos dividir em dois batalhões e várias equipes especiais. O primeiro batalhão será o que enfrentará as forças principais de nossos inimigos em primeiro choque, será a primeira e principal resistência. No calor da batalho, eu quero que você comande o segundo batalhão, que os atacará por trás. Nossos inimigos ficarão cercados; não resistirão aos nossos poderosos ataques aéreos. Acha que pode fazer isso?”

“Devo fazer, não? Erros podem ser fatais em qualquer combate.”

“Erros são fatais”, corrigiu Evan.

“Paralelamente, espalharemos unidades destacadas e treinadas especialmente para emboscada de inimigos que tentem agir em pontos isolados.”

“Como isso funcionaria?”

“São grupos especiais”, explicou Evan, “eles foram treinamos para combater em espaços menores e de forma discreta. São sorrateiros, velozes, perfeitos para encurralar um pequeno número de inimigos. Não lutam em campo aberto, apenas em locais que oferecem bons esconderijos e exijam tática e trabalho em equipe bem coordenado.”

Pela explicação, Hyoga presumiu que fossem uma espécie de guerrilheiros urbanos, mas que usavam cosmos para atacar. Chegara a presenciar o treino desses soldados, percebeu como seriam úteis como auxiliares no campo de batalha. Mesmo um inimigo que se desgarrava do grupo principal representava uma ameaça às mulheres e crianças.

“Myles, que ainda está debilitado, deverá comandá-los com bastante eficiência. Nós somos os guerreiros mais fortes, devemos avançar sobre os mais fortes deles. Eles precisam de um líder, talvez do próprio Prometeu. Independente de quem seja, não podemos recuar. Nosso povo depende disso.”

“No campo de batalha, mantenha o seu cosmos constante”, instruiu Myles, “preciso saber de sua localização o tempo todo. Pode ser que precisemos da corrente de Prometeu para derrotar nossos inimigos hoje. Como apenas eu tenho o poder de controlá-la, não podemos ficar muito afastados um do outro, Hyoga.”

“Veja, já estão chegando”, comentou Evan, olhando para o céu. “Eles são… homofalcos?!”

As figuras voadoras surpreenderam-nos por não serem conhecidos à cidade. Uma delas pareceu-lhes quase igual a Evan, que ficou surpreso, mas procurou controlar-se. Para Hyoga, até mesmo a maneira de bater as asas era semelhante. Seria um clone?

Seu companheiro era um homem de barba grisalha, com mais de cinqüenta anos, que demonstrava no porte do corpo longa experiência em batalhas. Carregava um enorme escudo com um brasão incrustado na forma de um falcão, o mesmo símbolo presente em Luna, a espada sagrada dos homofalcos. Desceram pacificamente, embora Evan e Myles tivessem desembainhado suas espadas, prontos para qualquer ataque. Hyoga também queimou o cosmos em sinal de hostilidade.

“Venho saudá-los, homofalcos”, anunciou o mais velho, com voz grave. “acho que já não se lembram de mim, portanto devo apresentar-me como manda a tradição. Meu nome é Átias, filho de Timeus.”

O clone de Evan apresentou-se também, um pouco atrás, indicando que Átias era seu superior.

“E eu sou Eudor, filho de Zenos e irmão gêmeo de Evan.”

A surpresa para Hyoga era apenas saber que Eudor era irmão de Evan; contudo, a surpresa de todos os homofalcos foi tanta que muitos não souberam como reagir. Alguns abaixaram as armas, outros as ergueram, outros, ainda, passaram a comentar a notícia com o companheiro do lado. A reação de Myles foi erguer sua espada e colocar-se a frente.

“Vocês são aliados de Prometeu?”

“Somos. E eu suponho que você seja Ájax, o líder.”

“Não. Ájax caiu num ataque. Sou o líder provisório dos homofalcos, até que o herdeiro de direito assuma o comando. Meu nome é Myles, filho de Quant.”

“Então… Você era aquele ovo promissor. Vejo que se ergue, mesmo sofrendo os efeitos da peste. Diga-me, o povo homofalco continua tão orgulhoso quanto antes, não é verdade?”

“Eu não tenho nada a dizer a traidores dignos de morte!”

“Traidores? Heh… Talvez vocês nos vejam dessa maneira. Qual será a surpresa de vocês quando souberem quem são os traidores da raça dos homofalcos, meu caro Myles. Vocês deveriam é nos agradecer por estarmos aqui, a fazê-lo entender onde é o lugar dos homofalcos no mundo.”

“Não será ao lado de Prometeu, Átias! Estamos aqui para proteger o nosso povo, para sobreviver aos humanos. Vocês é que destroem seus votos de fidelidade! Merecem morrer!”

Átias arriscou desembainhar sua espada e olhou hostilmente para Myles.

“Você acaba de dizer uma mentira, homofalco insolente. Vamos esmagá-los, Eudor.”

“Em seus lugares”, respondeu o jovem, “não diria palavras tão falsas. Evan, meu irmão, deve despertar para a realidade e aceitar as sábias palavras de Átias. Nossos pais ficariam orgulhosos de nós.”

“Cale-se”, respondeu ele, “eu não tenho um irmão. Nenhum irmão meu trairia os homofalcos e ficaria do lado dos homens. Eu vou protegê-los, mesmo que precisa pisar na poça de meu próprio sangue, entendeu?”

Os dois visitantes decolaram do chão, e Myles voltou-se rapidamente para Hyoga.

“Hyoga, é a sua vez. Comande-os.”

“Mas eles…”

“Não discuta, faça-o!!”

Tanto Myles quanto Evan estavam fora de si com a presença daqueles homofalcos. Independente dos motivos deles, para Hyoga estava bastante claro que o certo era proteger as pessoas inocentes da cidade. Voltou-se ao batalhão que ficara sob o seu comando, dirigindo-se ao outro lado da cidade para encurralar o exército inimigo.

“Vocês ouviram, vamos!”

Havia uma estreita passagem entre as montanhas cuja visibilidade era nula. Eliminaram todo traço de cosmos de seus corpos para permanecerem ocultos, até que o sinal para atacar por trás fosse dado. Naquele lugar, a neve chegava à cintura, mas sabia que aquilo não afetaria a eficácia do ataque, pois seus guerreiros eram alados. Seu cosmos permitia-lhe lançar golpes à distância, poderia ajudar, mesmo com a locomoção limitada.

Os primeiros gritos de guerra aproximaram-se. A terra tremeu com o tropel que de aproximava, o mar de espadas e lanças a serem quebradas naquele dia. Quanto mais altos eram os passos desordenados daqueles furiosos oponentes, mais era a tensão dentro de Hyoga. Apesar do frio, o suor escorria-lhe na face, encostado à parede de gelo, invisível aos inimigos.

Atrás dele, havia dezenas de homofalcos treinados, muitos deles seus companheiros de treino. Respirou fundo, controlando as batidas do coração e tentando manter o sangue frio, como Camus lhe ensinara; viu nos rostos tensos a preocupação da batalha que estava por vir. Ainda não tinham chegado, havia um tempo.

‘Preciso ficar calmo. Não posso encará-los como homofalcos a serem protegidos, mas como companheiros de guerra, como se fossem meus amigos cavaleiros. Cada um deles jurou proteger as pessoas queridas com a vida, mas é claro que todos lá atrás desejam que voltem vivos, sob a minha responsabilidade; pelas minhas mãos.’

Os gritos da batalha ecoaram por toda a terra dos homofalcos, assim com os ruídos de espadas em entrechoques. Alguns homofalcos se agitaram atrás e desembainharam suas espadas; Hyoga fez um sinal para pararem.

“Guardem. Ainda não é momento certo.”

“Mas precisam de nossa ajuda, Hyoga!”

“Calem-se. Se desembainharem as espadas agora, poderão se matar antes mesmo de lutarem. Acalmem-se, lembrem-se do treinamento: bons guerreiros sabem manter a calma e agir no momento certo, da maneira certa. Nossa missão não é fazer uma entrada espetacular, com gritos de guerra e pés denunciadores. Devemos ser silenciosos e assassinos, velozes e intocáveis, precisos e frios; tão frios quanto as lâminas de suas espadas, entendem? Quando eu der o comando, usem suas asas para locomoverem-se silenciosamente; desembainhem a espada apenas para atravessá-la no corpo de nossos oponentes; utilizem seus cosmos exaustivamente. Sejamos profissionais da batalha. Foi para isso que treinamos, não foi?”

Hyoga sorriu de maneira tranqüilizadora:

“Mantenham a calma e sigam os meus conselhos. Logo estarão ao lado daqueles que amam, a salvo, aqui mesmo na cidade. A palavra-chave é concentração.”

As palavras surtiram efeito na moral do grupo, e Hyoga voltou a prestar atenção na batalha. Não estava habituado àquele tipo de combate, embora tivesse sido instruído por Camus sobre como portar-se em batalhas que envolvessem contingentes de soldados. Do grupo, era o único que não estava armado. Entretanto, seu cosmos era proteção e arma suficientes.

Após alguns minutos de ansiedade, Hyoga sentiu o cosmos de Myles chamá-lo, indicando que era o momento de atacar. Fez um gesto para que avançassem, incentivando-os.

“Vamos! Não hesitem, não parem! Acabemos com todos os inimigos!”

As velozes asas atravessaram toda aquela neve, enquanto Hyoga corria com todas as forças para acompanhá-los. A tática dera certo, pois o novo fôlego dos guerreiros trouxe forças ao exército exausto. Hyoga correu na direção dos guerreiros, mas parou no meio do caminho, chocado com o que viu: não havia soldados de Prometeu, mas civis; e para piorar, todos eram de Kohotek e da vila mais próxima. Não era uma batalha, mas uma chacina.

O choque deixou-o imóvel por alguns segundos, tão grande foi o aperto no coração. Não sabia o que acontecia com seus antigos amigos, enfurecidos e agarrados a ferramentas do cotidiano para lutar contra soldados treinados de Evan. Segurou o braço de um antigo companheiro, que corria na direção de seus homens com um ancinho nas mãos.

“Espere, Leon! Sou eu, Hyoga!”

As pontas afiadas foram imediatamente jogadas na sua direção, num ataque desengonçado, insano, como se Leon não tivesse qualquer consciência do que ocorria. Hyoga imobilizou-o e tentou chamá-lo.

“Leon! Por favor, conte o que está havendo! Está me ouvindo? Leon!!”

Mas o morador de Kohotek apenas gritou desesperado para libertar-se, como um demente, sem pronunciar algo inteligível. Tentando compreender, o cavaleiro olhou os olhos e percebeu que as retinas eram cinza, quase brancas. Horrorizado, deu-se conta de que todos estavam naquele estado. Diante daquela matança, queimou o cosmos e, sem hesitar, afundou a palma da mão na neve e ergueu uma parede de gelo, separando homofalcos de humanos; seu único desejo era que todos parassem de lutar.

Subindo na recém construída parede com a habilidade de um felino, passou a combater os homofalcos que insistiam continuar no ataque. Eram pessoas inocentes que estavam ali embaixo; ele não podia aceitar que seus amigos fossem assassinados tão impiedosamente. A irritação dos homofalcos foi evidente, principalmente em Evan, que queimou o cosmos e avançou sobre ele.

“O que está fazendo, traidor?! Eles são nossos inimigos!”

“São inocentes, Evan!”

A lâmina de Evan por pouco não rasgou-lhe o pescoço. O grilhão da corrente de Prometeu, que deveria reprimi-lo, ironicamente serviu-lhe de escudo e evitou uma descuidada morte. Hyoga jogou-se para o lado e ainda manteve-se sobre o muro; chutou um dos soldados que mergulhava contra os homens numa rasante e logo foi obrigado a defender-se de um golpe de cosmos de Evan.

“Você jurou proteger nosso povo, traidor!”

“Espere, Evan! Eles também são o meu povo! Esperem, todos!!”

Os homofalcos sob o seu comando hesitaram, pois estavam no meio da batalha. Irritado, Evan elevou tom de voz.

“Não parem! Matem todos! Matem todos!”

E tal como Hyoga instruíra antes do assalto, os homofalcos de seu destaque voaram entre os moradores de Kohotek como máquinas assassinas. Silenciosos, de espada em punho, retalhavam à vontade, jorrando sangue e criando uma horrenda e rubra chuva no centro da cidade. Não hesitavam, não tinham piedade, não perdiam tempo com gritos de guerra: apenas matavam. Exatamente como ele ordenara.

Não havia arrependimento maior; Hyoga continuou a lutar contra Evan e os homofalcos que avançavam, habilmente defendendo sua parede de gelo, com todo o desespero. Talvez houvesse uma forma pacífica de acabar com aquela guerra; talvez seus amigos não precisassem morrer.

“Magma Flood!”

A intenção do golpe de Evan era clara: pretendia inundar o exército de civis com aquele magma, junto a Hyoga. O cosmos de Cisne ergueu-se bravamente e o cosmos de gelo anulou o ataque com uma explosão térmica.

“Já chega, Evan! Eu disse que eles são inocentes! Por que você não…”

O ar faltou em Hyoga para completar a frase. A dor no lado esquerdo do tronco o fez olhar para baixo. Da espada cravada tão fundo que ele pensou estar condenado, escorria seu sangue, que pingava na parede de gelo. Aquele ferimento parecia um sonho, pois não sentia dor. Acompanhou com os olhos o braço da origem do ataque, para encontrar Charis ao seu lado, com um olhar incrivelmente hostil.

“Se não quer lutar, morra com eles, traidor.”

“Ch…”

A voz não saía. A dor apareceu. Hyoga só ouviu a voz de Mu gritando por ele, antes de desabar sobre as foices daqueles que desejava proteger, ansiosos para dilacerá-lo.
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Era um mar de cabeças. Hyoga caminhava entre elas, reconhecendo cada uma: Yacov, Leon, Arina… Notou que o corpo estava sem as correntes, mas pesava cem vezes mais. Não podia estar livre. Estava sonhando?

Cada cabeça estava imersa num balde com sangue. Eram tantas que ele tinha dificuldade de passar por elas. Podia distinguir pelos espaços entre os baldes um caminho que o levaria até um homem vestindo um quimono preto. Aproximou-se da figura e percebeu que ele era gigantesco, com mais de três metros de altura. Parou.

O rosto severo revelou-se ser Mitsumasa Kido. Ao seu lado, havia um barril que continha inúmeras espadas, iguais às dos homofalcos. Ele disse-lhe algo inaudível, mas Hyoga ainda pôde entender, de alguma forma. Ele mandava-o ajoelhar-se com a testa encostada ao chão. E assim Hyoga obedeceu.

A ponta da espada encostou-se em suas costas. No momento seguinte, não mais. Mitsumasa tomava impulso para feri-lo, mas Hyoga nem cogitou defender-se. A lâmina atravessou-o tão rapidamente, que teve a impressão de seu corpo ser de papel. Por mais insuportável que fosse a dor, ele não morreria naquela punição.

Mais uma espada. E outra. E mais uma. Uma por uma, seu corpo foi abrigando tantas lâminas quanto eram as cabeças nos baldes. Quando não havia mais espaço para novos ferimentos, surgiram os homofalcos naquele espaço, não se sabia de onde. Todos pararam em silêncio numa fileira, olhando para ele. Mitsumasa agachou-se, e desta vez Hyoga pôde ouvi-lo.

“Não pode desistir ainda. Está longe de terminar, Hyoga.”

Mitsumasa deu-lhe as costas e partiu. Os homofalcos saíram voando, e cada um deles tomou a posse um balde. Um deles parou à sua frente e mostrou-o a ele. Não havia mais a cabeça, apenas o sangue. Em seguida, como se despejasse a água suja, derramou o sangue sobre ele. O próximo homofalco repetiu a ação, e o chão foi se enchendo como uma piscina.

Depois de ter o último balde de sangue despejado sobre a cabeça, Hyoga sentia tanta dor que não conseguia mais mover-se. Lutou contra aquele sangue e as espadas, mas estava completamente paralisado. Olhou em volta e percebeu que estava sozinho; entretanto, voltou a ouvir a voz de Mitsumasa.

“O que vai fazer, Hyoga? Vai andar? Com tanta dor, duvido que consiga. O que você vai fazer, Hyoga? O que vai fazer?”

Ele não sabia o que fazer.
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Quando abriu os olhos, não sabia se estava cego, pois o negro o cercava. Como no sonho, estava imerso na dor, completamente imobilizado. Tentou mover-se e ouviu o ruído dos elos da corrente de Prometeu, esticando-o e impedindo-o de levantar os braços. Tentou mexer as pernas e teve o mesmo resultado. Todo o seu corpo estava atado com a corrente ao chão de uma velha cabana, talvez a que utilizavam nos testes de iniciação de jovens homofalcos.

Gemeu e olhou para o lado. Estava sob o cobertor de casa, reconhecia-o pelo cheiro. E o leve perfume ao seu lado indicava a presença de Lyris. Concentrando os ouvidos, pôde ouvir sua respiração macia e deduzir que dormia tranqüilamente. Por não querer acordá-la, continuou em silêncio.

Mesmo sendo de noite, a preocupação impedia-o de descansar. O que acontecera ao povo de Kohotek? O que houvera com o ataque? Seria ele prisioneiro dos inimigos ou dos próprios homofalcos? As imagens de sangue de amigos da aldeia sendo assassinados logo lhe chegaram à mente, ao mesmo tempo em que os olhos responderam com lágrimas.

Não havia como resistir àquele sofrimento, por mais que desejasse manter Lyris em paz. Soluçou e chorou por longos minutos, acordando-a.

“Hyoga…?”

“Desculpe… Não queria… acordá-la.”

Condoída, ela chegou-se a ele e abraçou-o carinhosamente, na tentativa de acalmá-lo.

“Não tem por que se desculpar, seu tolo. Tem todo o direito de desabafar numa hora destas.”

Nunca Hyoga desejou tanto sair daquela terra dos homofalcos; nunca esteve tão tentado a fugir de tudo aquilo. Naquele momento, a idéia de suicídio, que lhe parecera tão absurda nos lábios de Lyris, era a mais atrativa.

“Lyris… Mate-me…”

“O quê?”

“Mate-me… Eu não mereço. Eu matei… meu povo… meus amigos… eu assassinei… Por favor, Lyris… Não sou digno. Não mereço honrar nada mais.”

‘Talvez ela aceite’, pensava, ‘ela também queria morrer.’

A resposta, porém, foi outra. O calor da mão da esposa percorreu-lhe a face gentilmente.

“Não.”

Lyris posicionou-se sobre ele, de forma que os olhos se encontrassem diretamente. Na escuridão, ele só distinguia o tênue reflexo nas retinas, mas era o suficiente para sentir a sinceridade de suas palavras.

“Não farei isso com você. Você não me abandonou quando mais precisei. Por que o abandonaria? Por que o deixaria assim? Você não fez nada de errado, Hyoga. Tudo isso é tão… injusto. Você só queria evitar aquele massacre, aquelas mortes… Por que querem julgar uma pessoa por possuir um bom coração? De repente, apenas por causa dessa lei estúpida honra homofalca, você perde tudo. Eu não posso aceitar isso, não posso sequer pensar na dor pelo Adelphos, quando sinto que posso perder você também. Já chega desse assunto idiota de suicídio, Hyoga.”

Hyoga quis levantar-se para conversar melhor, mas não pôde. Entretanto, o fato de Lyris ter menosprezado a idéia do suicídio, dele e dela, consolou-o o suficiente para parar de chorar.

“Está me dizendo que não vai mais…?”

“Estou. Adelphos pode não estar mais entre nós, mas… tive medo de perdê-lo, Hyoga, tanto medo quanto senti com Adelphos. E eu percebi que… ainda não perdi tudo. Ainda não.”

O rapaz sorriu e tinha certeza de ela o havia percebido.

“Obrigado…”

“Descanse um pouco… Está com fome? Sede?”

Imediatamente, Lyris buscou no escuro os apetrechos que trouxera de casa para tratá-lo. Agora tinha certeza de que estava na cabana escura dos iniciados, mas não sabia o que se sucedera depois de ter sido atacado por Charis.

“Tenho sede. Lyris, escute. O que houve depois de eu ter desmaiado? O que aconteceu com os homofalcos, os moradores de Kohotek… Afinal, por que estou aqui?”

“Você foi atacado por Charis e caiu no meio do exército inimigo. Imediatamente, eles começaram a atacá-lo, foi o que Mu me contou. Mas você foi salvo por um deles. Um garoto, de mais ou menos dez anos. No meio do ataque, ele parou, derrubou a arma que carregava e gritou o seu nome. Logo em seguida, saltou e protegeu-o com o corpo. Ele foi dilacerado pelos companheiros, mas manteve-se firme até o fim.”

Só havia uma pessoa em Kohotek que faria aquilo por ele. As lágrimas voltaram aos olhos do rapaz, emocionado.

“Yacov…”

“Mu interferiu logo em seguida e parou todo o combate. Mesmo que os homofalcos o atacassem, o cavaleiro Mu é muito forte. Ele conseguiu tirá-lo de lá com vida. Mas infelizmente… não conseguiu impedir o massacre. Todos os homens que nos atacaram morreram.”

“Eu não acredito…”

“Depois disso, Evan e Myles discutiram fervorosamente. Evan quis que você recebesse a pena de morte, mas Myles foi contra. Charis permaneceu em silêncio o tempo todo, sem se manifestar. No final, resolveram fazê-lo prisioneiro aqui e julgá-lo com o cristal.”

“Minha vida está por um fio agora. Mas… Não ligo de ser punido. Eu… também fui causador da morte deles. Eu também sou culpado.”

“Você nunca quis que morressem, Hyoga. Tome, beba.”

Depois de solver alguns goles de água, Lyris limpou-lhe a boca e sorriu.

“Os homofalcos prezam a verdade. E a verdade é que você nunca quis que ninguém se ferisse. “

“Mas é verdade que todos morreram.”

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