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[Saint Seiya] Prisão das Asas - Parte 25, escrita por Nemui

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Autora: Nemui
Fandom: Saint Seiya
Gênero: drama, aventura
Classificação: 16 anos
Status: Completa
Resumo: A vida de Hyoga se transforma quando entra em contato com um mundo completamente diferente do seu.



Mu abriu a bagagem que trouxera e revelou inúmeros frascos contendo o remédio da peste na frente de Evan, Charis e Hyoga, sorrindo.

“Os cientistas da Fundação Grado tiveram dificuldades de identificar essa bactéria, mas lograram em obter um antibiótico que pudessem combatê-lo. Eu quero que vocês busquem os enfermos mais graves. Não podemos perder tempo, pois há vidas em jogo!”

Evan chamou todos os soldados e espalhou a notícia; Charis e Hyoga visitaram cada casa homofalca em busca dos doentes mais comprometidos e trazendo-os à presença de Mu, que se instalou na casa de Charis para administrar as doses. Aos poucos, uma enorme fila formou-se na cabana, enquanto o cavaleiro de ouro tratava um a um com paciência e calma.

Como o antibiótico era forte e causava desconforto aos pacientes, Evan e Charis ficaram por perto para tranqüilizar a população e informar quando seria a próxima dose. O cavaleiro precisava permanecer ali por mais alguns dias, pois precisava aplicar uma dose diária em cada habitante doente por três dias. Depois precisaria verificar o extermínio total da doença para voltar ao Santuário e declarar a missão cumprida. Para alguns, era uma chatice manusear seringas e remédios o dia inteiro, sem cessar, mas Mu não emitia nenhuma reclamação ou demonstrava sinais de cansaço durante a aplicação.

Para distraí-lo, Charis contava-lhe animadamente sobre a vida dos homofalcos e o seu progressivo treinamento para tornar-se a líder ideal dos homofalcos. À sua companhia, Mu sorria e aproveitava para sanar suas curiosidades sobre aquele povo alado.

“Acreditava-se que as asas das águias tornavam nossas penas mais fortes”, contava ela, “e por isso era comum homofalcos caçarem águias em grupo em pleno ar. Uma vez a cada quatro anos, quando ocorrem os jogos homofalcos de nosso povo, o líder reúne um grupo de amigos para uma caça aérea com as mãos nuas e sem o uso do cosmos. Aquele que consegue capturá-la sacrifica-a para Ártemis e recebe a bênção da deusa para uma boa colheita nos próximos anos.”

“Ver uma caçada assim deve ser emocionante”, respondeu Mu, enquanto sugava o remédio do frasco com a seringa. “Nunca vi um combate aéreo entre pássaros, apenas caçadas terrestres. Deve ser mais difícil encurralar um pássaro.”

“E é. Nos jogos, o líder escolhe mais dois homofalcos, o que é pouco para encurralar a águia. O motivo disso é que eles precisarão demonstrar perfeito controle das asas e realizar acrobacias para enganá-la. Há outra ocasião em que isso acontece, que é o ritual de iniciação dos jovens, quando passam à idade adulta. Todos os homofalcos que escolhem o caminho da guerra, homens ou mulheres, precisam caçar uma águia nas mesmas condições, mas sozinho. Ele tem o prazo de um dia para fazê-lo, ou não poderá casar-se e adquirir a independência.”

“Mas é um teste fácil, não é?”

Mu concentrou-se na veia do braço da homofalca idosa que travava e calou-se por algum tempo a fim de não cometer erros na aplicação. Sorriu para o filho dela.

“Não se preocupe. Dê a ela repouso e controle a febre.”

Atirou a seringa numa caixa de lixo e logo abriu uma nova.

“Digo, uma hora a águia ficará cansada de tanto fugir.”

“Você é que pensa, Mu. Há um tempo limitado para tentar, e o homofalco em teste não pode sair do território, mesmo que a águia fuja. Se ele falha, é amarrado e trancafiado num quarto escuro, longe de qualquer contato. Ele é alimentado uma vez por dia por um soldado, por uma semana, quando lhe é permitida outra tentativa.”

“E se ele volta a falhar?”

“O processo se repete até que consiga. Há histórias de homofalcos que levaram meses até conseguir. A cada falha, fica mais difícil, pois seus músculos atrofiam durante o período de confinamento.”

“E já houve homofalcos que nunca conseguiram?”

“É muito raro. Só acontece quando o homofalco tem algum defeito na asa. Mas indivíduos assim não são treinados ao combate, pois não têm condições de suportarem uma luta.”

O homofalco doente no qual Mu aplicava o remédio naquele momento, comentou:

“Falhar para sempre nunca vi, mas houve um homofalco que só conseguiu ao final de dois anos!”

“É mesmo?”

“Ele está bem do seu lado.”

Até Charis surpreendeu-se com o relato, pois o homofalco se referia a Evan, que desviou o olhar e não quis falar a respeito.

“Mas o Evan? Ele é o melhor acrobata aéreo de nosso povo!”

O senhor riu baixo e olhou ao orgulhoso rapaz.

“Por pouco, ele não morreu. Depois disso, virou o que nós conhecemos hoje. Mas acho que essa é uma história que ele mesmo deve contar.”

“Não vale à pena”, respondeu Evan. “Não é nada que acrescente algo a vocês.”

Dizendo isso, voltou-se à fila de doentes, causando um novo riso no velho.

“Ele é mesmo um menino diferente…”

“Está pronto”, disse Mu, retirando a seringa. “Volte amanhã no mesmo horário para receber a segunda dose. Em breve o senhor estará como novo.”

“Quem me dera, jovem. Obrigado.”

“Que estranho”, comentou Charis, “eles não têm medo de você. Mesmo eu, não me sinto desconfortável quando estou ao seu lado, Mu. É diferente dos outros humanos. Sempre sinto um calafrio quando estou próxima a um humano; sentia isso até no mestre Hyoga no começo. Mas com você, não. Por quê?”

“Talvez seja porque não sou um humano como os outros, Charis. Fui criado isolado dos homens como vocês. Meu povo é pequeno, minha vila também. Nossa cultura, como a sua, também não se esqueceu dos rituais e da adoração aos deuses. Athena mandou-me porque sou o curandeiro deles e porque não sou um humano como os outros.”

“Ela pensou em nossa cultura antes de enviá-lo…”

“É claro. Athena é uma grande líder, Charis, ela pensa não apenas em seus cavaleiros, mas nas pessoas que protege também. Ela sabe que os homofalcos detestam humanos, por isso escolheu, entre os cavaleiros, aquele que tinha menos contato com os humanos.”

“Quer dizer que você vivia como nós, Mu?”

“Bem… Não exatamente igual a vocês. Nós moramos numa região um pouco mais quente. Nossa vila é muito pequena, e nós nos isolamos das pessoas por causa dos nossos… dons.”

“O teleporte?”

“Entre outros. Os homens sempre discriminaram o meu povo e vieram atrás de nós por causa da telecinesia. Interesses, dinheiro, ou por pura curiosidade. Por esse motivo, meu povo escolheu um representante para eles, que permaneceria numa torre de pedra e seria o guardião da entrada. Esse sou eu. Minha responsabilidade é proteger o meu povo de invasores, decidir, entre os visitantes, quem merece ou não ver os lemurianos. Em certas ocasiões, até permitimos que convidados entrem em nossa vila.”

“Lemurianos?”

“É como nos chamam, assim como vocês são chamados de homofalcos…”

“Não imaginava isso… Que houvesse outros povos além de nós.”

“Há, mas vivem isolados para manter sua cultura como vocês. Há algumas semelhanças. Vejo que vocês têm claras dificuldades quando há uniões entre homofalcos e humanos.”

“Sim, os bebês geralmente nascem defeituosos.”

“Nós também, mas não é pelo bebê nascer com deficiências. O poder telecinético é transmitido a gerações futuras. Pode o filho não nascer com o dom, mas seu neto ou o descendente de várias gerações, sim. Portanto, no meu povo é proibido ter relações com humanos. Se isso acontece, o filho do casal deve ser imediatamente executado.”

“Que horror!”

“Sei que é bárbaro, mas é a nossa maneira de protegermo-nos dos homens. Vocês também têm um sistema de defesa que é a imediata execução de quem mente e não é fiel à palavra.”

“Mas será que não é injusto um bebê morrer pelo que seus pais fizeram?”

“Sim… Nesses casos, é muito difícil convencê-los a mudar de idéia, pois a vida desse jovem na terra dos humanos poderia comprometer nossa segurança. Mas eu também penso como você, Charis, principalmente… Principalmente porque meu discípulo estaria morto se não fosse por minha intervenção. Quando uma mulher de nosso povo casou-se secretamente com um jovem pesquisador, teve um pequeno mestiço que ia ser descartado pelos lemurianos. Ela veio pedir socorro para mim, que na época, tinha acabado de conquistar a armadura de ouro de Áries. A única chance de salvá-lo era torná-lo um cavaleiro de Athena, que é a nossa deusa protetora, e educá-lo na arte da guerra para servir à deusa. Entre os lemurianos, ele não tinha lugar. Por esta razão, tomei-o como discípulo e, desde então, ele me segue. É alguns anos mais velho que você e está treinando com afinco para tornar-se um cavaleiro de Athena. Eu tenho certeza de que ele tem um grande futuro como cavaleiro, assim como você tem na posição de líder, Charis.”

“No fundo… Somos todos iguais, não somos, Mu? Mestre Hyoga ensinou-me isso logo no começo, que há humanos bons entres os maus, e homofalcos maus entre os bons.”

Mu sorriu e prosseguiu com os remédios.

“Ele tem razão.”

Um profundo ronco vindo do interior de Mu interrompeu a conversa, fazendo Charis rir.

“Nem mesmo cavaleiros são invencíveis à fome, eu suponho. Não gostaria de fazer uma pausa, Mu? Os mais doentes já foram tratados, e os próximos podem esperar meia hora para que reponha suas energias. Como agradecimento, queria oferecer-lhe o melhor, embora estas terras não nos permitam ter uma cozinha muito variada.”

“Obrigado, Charis, mas pretendo ficar aqui até terminar. Todas estas pessoas estão esperando pelo tratamento, com o coração ansioso e o medo estampado nos olhos. Nenhum cavaleiro deve priorizar sua própria saúde quando tantos outros estão numa situação pior, não concorda?”

“Então eu buscarei algo para que não morra de fome antes de amanhã. Eu já volto!”

Mu sorriu e continuou a aplicar o remédio, de enfermo a enfermo, de minuto a minuto, sem cessar, sem descansar. Terminou somente de madrugada, quando Charis lhe ofereceu a própria cama para que repousasse para o dia seguinte.

—————————————————————–

Não contente com a situação controlada por Mu, Evan reuniu todos os homens saudáveis no dia seguinte para iniciar uma investigação que Hyoga não cria ser necessária. Não obstante, não se manifestou contrário à ação, pois estava ocupado cuidando de Lyris e ajudando Mu a organizar o tratamento de toda a população doente. Mesmo Charis sendo parte responsável da cidade enquanto Myles estivesse de cama, não queria que a pupila esforçasse-se além da conta depois de travar um combate tão intenso com Evan. Dedicava-se, pois, em tempo integral para aliviar-lhe as tarefas.

A morte de Adelphos recaíra pesadamente sobre os ombros, misturada às lembranças de Seema, da época em que trabalhara nas estufas como ajudante. Recordava seu corpo caído e ensangüentado, protegendo o ovo de Adelphos. De que adiantara aquele sacrifício se ele não conseguira sobrepujar a peste do bebê? Além da consciência pesada que portava pela amiga, os poucos meses que passara cuidando do bebê foram suficientes para criar um vínculo emotivo, que não desapareceria, mesmo depois de anos de cicatrização daquela ferida.

Para Lyris, era como perder um filho do próprio ventre. Hyoga esperava que o seu futuro ovo pudesse atenuar o sofrimento da esposa, mas temia que aquele não sobrevivesse ou nascesse com deficiências físicas devido à incompatibilidade genética. Teria ele asas saudáveis para voar tão bem quanto os homofalcos puros de sangue ou a ausência delas para viver como um humano normal? Sofreria discriminação por ser híbrido? ‘Talvez isto não seja certo para ele’, pensava, quando a imagem de um filho deficiente invadia-lhe a mente. ‘O sofrimento por ser diferente é inevitável.’

“Hyoga?”

O rapaz foi sugado para fora do mundo da divagação e voltou-se à esposa, sentada na cama.

“Desculpe. O que disse?”

“Perguntei se você não precisava acompanhar Evan nas investigações. Cuidar da terra dos homofalcos é sua responsabilidade como líder provisório e cavaleiro de Athena, se não estiver errada. Não se preocupe, você pode ir.”

Hyoga sentou-se na cama ao seu lado e fitou a parede, indeciso. Não era certo deixá-la sozinha, doente e logo depois de perder Adelphos para a mesma doença.

“Mu está trabalhando com os remédios, Evan está buscando a origem da contaminação, se é que existe uma origem definida. Mais tarde, irei vê-los e oferecer a minha ajuda. Mas você… Não pode ficar sozinha numa hora destas. Está doente, está sofrendo, e por mais que diga para não me preocupar… Eu sei que está sofrendo, Lyris. Eu também estou.”

“Mas vou ficar bem. Vá, você tem afazeres, cavaleiro.”

Suspirando, ele se levantou. Não podia negar que tinha responsabilidades, mas também era inaceitável que a esposa fosse deixada para trás. Hesitou, olhou para trás, quis ficar.

“O que foi, Hyoga? Já disse para ir. Se ficar e for irresponsável, como posso ser respeitada entre os homofalcos e andar entre eles sem que me vejam como esposa de um folgado?”

“Desculpe. Eu já vou.”

Hyoga saiu perturbado de casa, com a estranha sensação de fazer o que é errado para si. Entretanto, permanecer em casa também lhe traria sua cota de culpa. Independente de sua escolha era certo se sentir desconfortável e hesitante.

Cruzou a cidade com o olhar distante, alheio às conversas dos homofalcos e à vida que começava retornar ao normal. Caminhava naturalmente em direção ao campo de treino, onde Evan concentrava os seus homens para organizar as investigações sobre a doença. Encontrou o homofalco no centro, conversando com um grupo de soldados e gesticulando numa região isolada da cidade.

“Verifiquem cada monte de neve, cada arbusto, cada pedra. Não deixem passar nada. Vão!”

O bater de asas criou um breve brisa que agitou os cabelos do cavaleiro na caminhada até ali. Evan voltou-se a ele com neutralidade.

“Cavaleiro. Como vai a sua esposa?”

“Estamos controlando a febre, e ela está melhorando aos poucos. Mas… o problema não é no corpo, é na alma. Ela só casou comigo para ser mãe do Adel. E agora…”

“Eu entendo. Não o culpo se quiser permanecer ao seu lado. Esse é um conselho de alguém que perdeu mais do que deveria nesta crise.”

“Não. Eu preciso assumir minhas responsabilidades também, Evan. Eu quero ajudar. Conseguiu descobrir algo?”

“Ainda não. É provável que não encontremos nada desse trabalho todo, pois creio que foi só uma reincidência da doença… Mas eu não me sentiria bem se não fizesse isto. Os homens já começaram a desconfiar de minha liderança com uma busca tão inútil, mas ainda acho devemos ser cautelosos com qualquer perigo que nos cerque. Meu dever é proteger os homofalcos até o fim, mesmo que estes se voltem contra mim. No entanto… já estou pensando em desistir…”

“Evan! Evan!”

Dois homofalcos chegaram voando às pressas e pousaram ao lado de Hyoga. Carregavam um maço de folhas com tanto cuidado que era como se fosse um bebê.

“Nós encontramos alguns objetos suspeitos, Evan!”

Sobre o maço de folhas, Hyoga viu pequenas ampolas de vidro quebradas, já secas. Os homofalcos não possuíam tecnologia para fabricar frascos tão pequenos e perfeitos como aquele. Se as suspeitas de Evan estivessem certas, a peste não aparecera pela natureza. Hyoga sentiu um odor forte quanto cheirou um dos vidros, que o deixou com dor de cabeça. Olhou aos soldados e perguntou:

“Onde vocês acharam?”

“Perto da montanha, senhor, naquela direção.”

“Direção dos ventos”, observou Evan, “perfeito para contaminar a cidade.”

“Não foi por acaso. Um humano muito bem preparado fez isso. Resta-nos saber quem foi.”

Irritado, o homofalco ergueu-se no ar e chamou pelos homofalcos restantes.

“Muito bem, todos comigo! Vamos verificar cada local por esses frascos malditos! Verifiquem cada vegetal, quero tudo que seja estranho na área. Não temos tempo a perder!”

Antes de seguir com o grupo, voltou-se ao cavaleiro.

“Cavaleiro, o que devemos fazer com esses frascos? O cavaleiro curandeiro sabe?”

“Devemos enviar à Athena para que os cientistas da Fundação Grado analisem. Mu saberá o que recolher.”

“Então o chame. Ele precisa nos ensinar como recolher esse material. Há uma maneira correta de fazer isso, eu suponho.”

“Está bem. Ele irá com vocês.”

—————————————————————–

Mu observou os frascos e em seguida os galhos que foram recolhidos nas proximidades.

“Ela deve ter atacado as plantas, e depois passou aos homofalcos. Eles escolheram os melhores locais para a contaminação.”

“Os guerreiros de Prometeu?”, perguntou Charis?

“Não sei. Mas descobrirei quando retornar. Quando terminar de aplicar as doses de hoje, viajarei à noite ao Santuário para deixar as amostras e até amanhã de manhã, retornarei para dar continuidade ao tratamento. Assim está bem a vocês?”

“Eu agradeço”, respondeu Evan, embora Hyoga percebesse que o homofalco se esforçava para dar tal resposta, “por favor, volte logo para continuar; as vidas desses homofalcos dependem de você.”

“Se eu deixasse que a esposa de Hyoga morresse doente, nem quero imaginar as conseqüências. Não se preocupem.”

“Mas Mu… Vai mesmo viajar à noite sem descansar?”

O cavaleiro de ouro sorriu à garota.

“Com sorte, terei algum tempo antes de ir. Não posso render-me facilmente, não concorda, Charis?”

Era algo que ele repetia para si mesmo. Se perdesse a persistência no meio do caminho, quantas vidas seriam sacrificadas inutilmente? Doar-se à humanidade era a razão de estar ali e de servir à deusa com a própria vida. Sentar-se e descansar era uma ofensa ao seu juramento de cavaleiro. Mu afastou-se do grupo e observou a longa fila de enfermos para ser tratados.

“Falamo-nos depois. Preciso voltar ao trabalho agora.”

Charis voltou-se ao mestre, sorrindo.

“Mestre, posso ir até a sua casa?”

“Claro, mas por quê?”

“Como você vai passar o resto da tarde verificando outros pontos de infecção, quero passar algumas horas com Lyris para animá-la um pouco durante a sua ausência. Eu não sei se isso é o certo depois de perder um ente querido, mas eu acho que ela não pode se sentir sozinha numa hora dessas.”

“Charis…”

“Nós nos vemos depois, mestre.”

A garota mancou na direção da casa de Hyoga. Os ferimentos causados pela luta com Evan não a intimidavam a agir de acordo com suas vontades. Mesmo com as queimaduras e as feridas, não se importava de andar sob a luz ou de vencer grandes distâncias para averiguar o que ocorria na cidade, entre os líderes.

Quanto a Mu, ficou sozinho na casa de Charis depois da partida de Hyoga e de Evan para novas investigações, restando a ele a importante tarefa de medicar os homofalcos. À esquerda, havia vidros e mais vidros de remédios; à direita, caixas contendo centenas de seringas. Eram como uma contagem regressiva ao final da sua missão, que, aparentemente, estava longe de concretizar-se.

A noite demorou a chegar, assim como o último paciente. Quando viu o homofalco ir para casa, amparado por uma filha, Mu suspirou e jogou-se na cama, exausto. Estava sonolento, pronto para embarcar num mundo além do real. Levantou-se, pois não podia dormir. Notou que os homofalcos tinham-lhe deixado um prato de comida à tarde, que permanecera intocado até então.

‘Pelo menos isso me dará energia para manter-me acordado’, pensou.

Comeu e arrumou as amostras para a fundação cuidadosamente na mala. Também não podia esquecer-se de pegar mais algumas doses do antibiótico, que já estava acabando. Verificou sua bagagem mais uma vez e lutou contra a vontade de permanecer ali. Não podia ficar mais.

Queimou o cosmos e concentrou-se com o poder da mente. Naquelas horas, agradecia aos céus por ser um lemuriano dotado de uma forte telecinesia. Quando abriu os olhos novamente, estava fora da cidade, em algum lugar nas montanhas, em meio ao vento cortante da Sibéria. Seu poder impedia-o de viajar grandes distâncias com um teleporte, mas com certeza era mais rápido que o modo tradicional.

Na quinta ou sexta vez, estava próximo à Kohotek. Pensou em Shun e na June, na vida que iniciaram ali. Shun com certeza viajava para a Grécia, e June estava sozinha. Como tinha sede, resolveu fazer uma pequena pausa antes de continuar e saber como estava a companheira do amigo. Sua próxima parada foi a porta da cabana que outrora pertencera a Hyoga e agora servia de morada ao jovem casal.

Bateu na porta, e June abriu-a como se esperasse um fantasma ou assombração naquela hora da noite; seu rosto pálido indicava que havia algo mais na ocasião. Mu sorriu para tranqüilizá-la.

“Desculpe incomodar a esta hora, June, mas estava voltando de uma missão fiquei com sede. Será que posso fazer uma pausa de alguns minutos em sua casa?”

“Você não veio por causa do Shun?”

“Shun já deve ter chegado à Grécia, não? Não, eu só vim por causa da água mesmo. Posso?”

A expressão nervosa da amazona não desapareceu, apesar de suas boas maneiras. Alargou a abertura da porta para mostrar o interior da cabana, que apresentava uma temperatura deveras agradável devido à lareira. No entanto, o que ela queria não era permitir que ele entrasse, mas revelar o que se passava ali. Na cama, Shun estava deitado, coberto por grossas mantas.

“Mas… O que ele faz aqui?”

“Pensei que tivesse vindo por ter sentido o cosmos dele. Se não foi por isso, estamos com sorte. Shun foi atacado no caminho de volta das montanhas por alguns guerreiros que se diziam servos de Prometeu. Ele voltou com ferimentos tão graves e profundos que fiquei com medo de que não sobrevivesse à noite. O médico da vila vizinha não se encontra ali, e eu não sabia a quem recorrer. Ele não abre os olhos desde que voltou e desmaiou em meus braços, Mu.”

O cavaleiro apressadamente entrou em casa e correu até Shun, que por enquanto dormia sem reclamar da dor. Tirou as mantas e viu as bandagens tingidas de vermelho e manchando o lençol. Uma das mãos pousava inconscientemente sobre Luna, a espada sagrada dos homofalcos, protegendo-a conforme prometera; a outra se cerrava num punho, como se resistisse aos ferimentos.

“Você viu quem o atacou?”

“Não, Shun apareceu ontem, quase morto. Eu não vi a luta.”

Imediatamente, Mu tirou as bandagens de Shun, uma a uma, e utilizou o cosmos para fechar os ferimentos. Com o seu poder, dispensava a necessidade de costurar os rasgos mais graves e tirava a vida de Shun do perigo. Derramou um anti-séptico sobre cada corte e cobriu-os com gazes limpas.

“Como ele está?”, perguntou June, quando lhe trazia o desejado copo de água.

Mu sorriu-lhe e bebeu toda a água de uma só vez.

“Ele vai ficar bom. Você sabe que Shun não morreria tão fácil assim. Com um pouco de descanso, logo estará apto a viajar novamente.”

“Ele precisa partir?”

“Pelo que soube, Shun precisa levar essa espada ao Santuário o mais depressa possível. Mas não se preocupe, June. Athena deve saber o que fazer com ela. Eu posso cumprir essa missão no lugar dele e permitir que se recupere com mais calma.”

June fitou-o em silêncio por alguns momentos, como se estivesse dúvida sobre o que fazer. Mu estranhou, pois acreditava que a garota aceitaria sem nem hesitar, pensando no bem estar de Shun. Ela suspirou e sentou-se à mesa, confusa.

“Ele não vai gostar disso…”

“Como?”

“O Shun. Ele não parece, mas é mais teimoso que a maioria dos homens que conheço. Quando ele enfia uma idéia na cabeça, nem Athena pode convencê-lo do contrário. Ele sempre foi assim, desde a época do treinamento. Teimoso… mesmo à beira da morte.”

“Eu pensei que fosse concordar comigo. Shun a descreveu de outra forma para nós, mais… inflexível.”

“Eu era assim. Mas… Por mais que eu o forçasse a fazer aquilo que desejava, por mais que eu tentasse moldá-lo à minha maneira, às minhas necessidades, Shun não mudaria. Ele é um indivíduo único, com sua formação, suas idéias, seus princípios. Por mais que eu queira… Ele não mudará nisso. Se tomo uma decisão, preciso tomá-la por ele também, considerando os seus desejos. E eu conheço-o bastante para perceber que essa missão pertence unicamente a ele. Ele, Mu, é o único que tem o direito de carregar essa espada.”

“Então vai deixá-lo viajar neste estado?”

“Eu também faço parte dos cavaleiros de Athena. Eu irei com ele para protegê-lo. E juro pela honra de meu título que irei conseguir.”

“Talvez eu possa ajudar. Neste momento, estou me dirigindo ao Santuário por meio da minha telecinesia. Se quiser, eu posso levá-los comigo e assim encurtar a viagem. A despeito do afazer pendente que Shun possui, poderá descansar e recuperar-se no Santuário com mais conforto.”

Desta vez, June não hesitou. Deu-lhe as costas e começou a preparar a mala de viagens.

“Deixe-me fazer a mala.”

——————————————————————-

“Está acordada?”

A resposta foi um suspiro do canto do quarto escuro, com a furtiva claridade das brasas da lareira. Hyoga acendeu a lamparina e sentou-se à beira da cama, exausto. Passara o dia auxiliando os homofalcos na busca de indícios de contaminação da bactéria da peste e agora achava que ficaria doente se tivesse que averiguar mais um arbusto. Depois de encontrar os frascos, Evan ordenou que todos iniciassem uma inspeção na cidade à procura de focos da doença.

“Encontramos alguns frascos que provavelmente continham os agentes infecciosos. Eu acho que essa crise foi intencional. As plantas também são atingidas, e quem toca nelas pode pegar a doença.”

“Adelphos ficou doente depois de brincar fora de casa?”

“Eu acho que sim, mas não é nenhuma certeza por enquanto. Lyris, fiquei o dia inteiro mexendo em plantas infectadas. Preciso de um banho antes de deitar-me com você.”

“Eu preparo.”

“Não. Descanse, eu faço tudo.”

Nenhuma palavra a mais foi enunciada. Hyoga ferveu a água e preparou o banho sozinho, restando a Lyris escutar o ruído da água da tina enquanto ele se lavava. O rapaz ainda mergulhou três vezes para lavar a cabeça, enquanto os olhos perturbados de Lyris não paravam de mirar a parede. Quando ele terminava e enxaguar-se, ela retomou o diálogo.

“Eu fiz tudo errado, não fiz?”

“O quê?”

“Adelphos… Eu fiz tudo errado. Ele ficou doente porque não fui cuidadosa o suficiente. Ele deve ter pegado a doença sob os meus olhos e nem percebi. O fato de ele ter sido levado pela doença foi um castigo, uma lição para que eu nunca mais esquecesse, não acha, Hyoga? E você… Você tem razão de odiar-me…”

A suposição de Lyris ia além de qualquer realidade para Hyoga. Ele parou e fitou-a.

“Quem disse que eu a odeio?”

“Você diz de forma silenciosa… Quando me impede de ajudá-lo nas tarefas… Quando se mantém distante… Além disso, eu o traí com Tarasios… Eu sou tão suja, tão… descartável.”

“Espere.”

Hyoga saiu do banho e aproximou-se da cama, sem se importar com o chão que molhava no trajeto.

“Quando a perdoei, tentei não pensar mais no assunto. Quando Adelphos ficou doente, de maneira nenhuma acreditei que fosse sua culpa, Lyris. E descartável? Você? Do que está falando? Se fosse, acha que eu desejaria sua recuperação com tanto anseio?”

“É que você é bom demais para mim, Hyoga.”

Rapidamente, Hyoga enxugou-se para deitar-se ao seu lado e acariciar-lhe o rosto melancólico.

“Descartável é a sua tristeza. Venha, vamos dormir.”

Por alguns instantes, Lyris recebeu os carinhos conjugais em silêncio, com os olhos marejados. Virou o rosto quando Hyoga tentou alcançar-lhe os lábios e sentou-se subitamente.

“Eu preciso sair.”

“Agora?”

“Eu preciso sair. Sinto que ficarei mais doente se ficar.”

“Então espere dois minutos. Eu vou com você.”

“Obrigada, mas eu quero ir sozinha, Hyoga.”

“Mas você não…”

“Não irei longe. Já me sinto forte para caminhar sozinha. Por favor.”

A evidente fuga de Lyris de certa forma o magoara, mas não havia espaço para ser egoísta naquele momento. Hyoga reconhecia que Lyris precisava de tempo para recuperar-se da perda de Adelphos e que talvez ele não estivesse em posição de ajudá-la. Assentiu com a cabeça e sentou-se na cama.

“Bem… Se isso a fizer sentir-se melhor… Não posso impedi-la, posso? Mas se se sentir mal, volte imediatamente.”

No instante seguinte, a visão de Hyoga foi tampada pela esposa num abraço raro, cheio de uma ternura indecifrável. Podia ser uma recompensa por sua preocupação, podia ser conseqüência do sofrimento e da depressão, ou ainda uma forma de desculpa. Independente do motivo, ele retribuiu o abraço e beijou-a na testa.

“Tempestades passam, Lyris. Pode ser que desejemos viver nas sombras ou não, mas ela não espera que tomemos essa decisão para dar lugar ao Sol. Isso vai passar, cicatrizes irão ficar. Mas eu continuarei ao seu lado como agora.”

A esposa sorriu, antes de levantar-se:

“Você é bom demais para mim.”

E saiu calmamente pela porta, deixando-o para trás. Hyoga suspirou e enfiou-se sob os cobertores, frustrado. Esperava que aquela noite fosse tranqüila, mas algo o incomodava. Sentia que Lyris estava descendo uma colina, cada vez mais íngreme, cada vez mais inacessível.

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