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[Saint Seiya] Prisão das Asas - Parte 24, escrita por Nemui

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Autora: Nemui
Fandom: Saint Seiya
Gênero: drama, aventura
Classificação: 16 anos
Status: Completa
Resumo: A vida de Hyoga se transforma quando entra em contato com um mundo completamente diferente do seu.



Lyris entrou em casa, ainda perturbada, e aproximou-se de Hyoga.

“Hyoga, deixe-me segurá-lo. Você também precisa descansar.”

“Não”, respondeu ele, firmemente. “Não sei como essa doença é transmitida, mas eu tenho medo de que você também a pegue. Imagino que deva estar mais aflita que eu, Lyris, mas entenda que eu também tenho medo por você. Muitos estão ficando doentes, não quero que o mesmo ocorra com você. Por favor… A ajuda chegará logo, meu cosmos está guiando um cavaleiro do Santuário que nos ajudará a curar Adelphos. Ele conseguirá, eu tenho fé disso.”

“Hyoga…”

“Sabe que eu tenho razão… Sinto muito, Lyris. Mas prometo que cuidarei dele do mesmo modo como você o faria, com o mesmo carinho. Então, por favor, cuide de Charis para mim.”

“Hyoga… Se Adelphos morrer, eu não sei se poderei viver também. Se ele morrer dessa peste… Quero morrer junto dele.”

“E o bebê que está em seu ventre? Não se preocupa com ele?”

Lyris afastou-se ao lembrar o ovo. Hyoga tinha razão; ela não era mãe apenas de Adelphos.

“Eu achava que ele fosse tão importante para você quanto Adelphos, Lyris.”

“Ele é”, responde ela, em voz baixa. “Ele é…”

Hyoga atenuou o tom de voz, compreendendo a sua dor.

“Não se preocupe, Athena o protegerá.”

Entristecida, Lyris aproximou-se de Charis, cujas asas estavam enfaixadas. Aparentemente, não havia nada de errado com a garota, pois as dores que sentia eram só resultado da batalha.

“Charis, posso passar o ungüento em você?”

“Vá em frente, Lyris.”

O choro de Adelphos inundava a casa; Hyoga tentava de tudo para acalmá-lo, mas não obtinha sucesso. Em meio a tudo isso, Charis sorriu com tristeza e fitou Lyris.

“Reze para as deusas, Lyris.”

“Como?”

“Vá até a grande árvore, Kedreatis, ajoelhe-se diante dela e peça para que Adel recupere a saúde. As deusas hão de ouvir nossas preces, não? Athena nos ajudará, Hyoga é protegido dela. Conseqüentemente, ela nos enviará ajuda em breve. O que você pode fazer é pedir às nossas deusas paz e saúde ao nosso pequeno Adel. Eu não posso sair ainda da cama por causa dos meus machucados, nem Hyoga, pois ele está fazendo de tudo para cuidar dele. Mas alguém precisa orar por ele e pedir proteção aos deuses, não acha?”

“Charis…”

“Eu vou ficar bem. Faça isso, Lyris, por favor.”

A homofalca mais velha sorriu e continuou a passar o remédio.

“Depois de terminar com você.”

“Eu cuido dela”, respondeu Hyoga, balançando Adelphos no colo. “Vá e peça proteção dos deuses, Lyris. É importante ao Adel.”

Lyris suspirou e hesitou um pouco, mas concordou no fim.

“Está bem, Hyoga.”

Lyris saiu de casa, e Hyoga ofereceu uma mamadeira com água para o filho, que parou de chorar para beber.

“Obrigado, Charis. Lyris está ficando louca com tudo isso.”

“Não a culpo, eu também estou com medo, mestre.”

Hyoga suspirou de alívio, mas sem sorrir.

“E ele chegou.”

“Quem?”

“Talvez, nossa salvação.”

Em poucos minutos, uma batida na porta anunciou a chegada da tão esperada ajuda do Santuário. Myles acompanhava Mu, o cavaleiro de Áries, que chegara por teleporte. Estava sem armadura, vestia roupas normais de Jamiel e carregava uma caixa de madeira contendo remédios trazidos da Grécia.

“Hyoga.”

“Mu… Obrigado por ter vindo.”

“Esse é o seu filho?”

“Sim.”

Em primeiro lugar, Mu verificou a temperatura e observou as penas manchadas. Assim como Nestor, verificou cada sintoma e arrancou uma pena esbranquiçada do bebê.

“Athena pediu-me para tirar algumas amostras e enviar ao laboratório. Não é motivo de preocupação, Myles, ela dirá que são penas de simples pássaros. Por enquanto, não sei qual é o melhor remédio aos homofalcos, mas trouxe este, que deveria combater a infecção. É conhecido em meu povo para uma doença parecida. Só espero que funcione até obtermos os resultados.”

Quando Mu abriu a boca de Adelphos para olhar a língua, o bebê tossiu e vomitou novamente, espirrando mais sangue. Em seguida ameaçou um choro fraco e aquietou-se no peito de Hyoga, que tentou mantê-lo acordado.

“Adel! Agüente só mais um pouco…”

De nada adiantou chamá-lo. Adelphos desmaiou e Hyoga ajeitou-o melhor no colo para que Mu o visse.

“Já é a quarta vez que ele vomita sangue. Mu, não pode fazer nada?”

“Do jeito que ele está, é arriscado administrar esse medicamento sem saber qual é a causa exata. Mas o estado dele é grave, Hyoga, e não sabemos quando descobriremos a causa da doença. Posso dar um pouco e ver se há alguma melhora ou retrocesso da doença, mas não garanto nada.”

Assentindo, Hyoga sentou-se na cadeira.

“Faça isso, Mu. Se Adel não receber tratamento logo, com certeza morrerá.”

“É perigoso, sabe disso.”

“Quanto tempo você acha que ele agüenta sem nenhum tratamento? Em quanto tempo receberemos resposta da Fundação Grado?”

“Está bem. Mas entenda que isso é um tiro no escuro, Hyoga.”

“Pois irei apostar nele.”

‘Isso é mesmo o certo?’, perguntava-se Hyoga, enquanto permitia que Mu injetasse o remédio em Adel. ‘É um remédio de humanos num homofalco, nem sabemos qual é a doença. Mas o cosmos de Adel… Ele está tão fraco que não me surpreenderia se não desse tempo. Athena… por favor…’

“Vou visitar outros casos graves, pegar mais algumas amostras e levar à Fundação Grado para análise. Prometo retornar o quanto antes, Hyoga.”

“Obrigado, Mu. Por favor, não demore.”

“Voltarei o quanto antes, fique calmo.”

Num suspiro, Charis sentou-se na cama e sorriu para o mestre, depois de Mu partir.

“Mestre, ele vai melhorar. Mu chegou tão rápido, tenho certeza de que Adel irá suportar até lá.”

Hyoga sorriu de volta, grato pelo apoio da discípula. A força vital de Adel estava diminuindo a cada minuto, sendo devorada pela doença dos homofalcos. O que ele podia fazer? Apenas segurá-lo nos braços, preocupado, dando todo o conforto que podia naquelas condições.

“Tomara, Charis… E você? Nenhuma mudança?”

“Eu estou bem. Meu pai disse que na época da peste, ele ficou próximo de muitos enfermos e mesmo assim não sentiu nenhum sintoma. Acho que eu tenho a mesma resistência que ele.”

“Sorte a sua. Pena que Adel não tenha nascido com tanta sorte.”

Hyoga mergulhou o lenço na água fria e molhou o rosto do filho, na tentativa de abaixar a febre. Olhou através da janela e percebeu como a paisagem da cidade mudara com a doença. Não se via homofalco nas ruas, caminhando ou trabalhando. Apenas alguns poucos que estavam saudáveis a buscar os remédios que Mu lhes deixara. Era como se o fantasma da morte passeasse e zombasse deles.

—————————————————————–

A batida na porta levantou expectativas. Hyoga acabara de trocar os curativos de Charis e esperava que seu próximo passo fosse ver Mu tratando Adelphos. No entanto, o visitante revelou ser Evan, com os olhos molhados. Carregava um corpo oculto por um lençol. Na última hora, vários homofalcos que foram atingidos pela doença morreram, deixando-os mais desesperados.

“Evan… O que houve?”

“É a Aure”, respondeu ele, “ela…”

Hyoga levantou o lençol que cobria o rosto e logo tratou de colocá-lo de volta, aterrorizado. Era como se visse o futuro de Adel naquele cadáver.

“Eu… Eu sinto muito.”

“Você sente? Onde está o cavaleiro? O remédio que ele trouxe não está surtindo efeito! Myles também está doente. O que nos resta fazer?”

A notícia de que Myles também estava doente pegou Hyoga de surpresa. Se o próprio líder corria perigo, o que seria dos homofalcos se a epidemia não fosse contida?

“O Myles também? Mas ele veio aqui com o Mu mais cedo, ele estava bem!”

“Você é cego, imbecil? Ele está com os sintomas desde manhã, está se esforçando para ajudar todos da cidade.”

“Myles…”

“Eu vim aqui com um pedido, cavaleiro.”

“Um pedido?”

“Amanhã velarei o corpo de minha esposa… Mas eu… Eu não tenho coragem de enterrá-lo com minhas próprias forças. Myles está doente, todos os soldados estão doentes ou cuidando dos familiares. Eu… gostaria que você cavasse o túmulo de Aure. Não é uma ordem, mas um pedido.”

Seria Evan totalmente sincero naquele pedido? Hyoga ponderou desconfiado e fitou o deprimido guerreiro à sua frente. Por que se daria ao trabalho de pedir-lhe aquilo? Com dezenas de soldados, provavelmente encontraria alguém disposto a enterrar Aure. Logo, percebeu a intenção: aquela era a sua maneira de dizer que eles deviam esquecer as diferenças por hora e ajudarem-se para superar aquele problema. Hyoga assentiu com a cabeça.

“Certo. Eu o farei para você, Evan, não se preocupe.”

“Obrigado. Vou colocá-la na estufa que desocuparam para os corpos.”

Quando Evan estava prestes a ir embora, Hyoga lembrou-se de Lyris e deteve-o.

“Espere, Evan.”

“O que foi?”

“Lyris saiu à tarde, mas ainda não voltou. Estou ocupado cuidando dos meninos e não tive tempo para buscá-la na floresta. Ela deve estar rezando para Kedreatis, pedindo proteção aos deuses. Adel está piorando a cada minuto, o remédio também não surtiu efeito para ele. Acho que ela precisa voltar para ficar com ele, antes que… Você não poderia chamá-la para mim, por favor?”

Evan escutou-o com neutralidade, sem expressar qualquer sentimento.

“É claro, vou chamá-la para você.”

Dizendo isso, partiu em silêncio. Aquela mudança de comportamento deixava-o intrigado; podia ser causada pela tristeza da perda de Aure, ou pelo fato de não terem mais a relação de dono e escravo. Era contraditório pensar que há alguns dias, Evan divertia-se dando chicotadas em suas costas e humilhando-o em frente aos demais homofalcos no centro da cidade. Ao fechar a porta, trocou olhares questionadores com Charis.

“Ele está mudado.”

“Aure sempre foi muito importante para ele, mestre. Desde que me lembro, Evan sempre seguiu e buscou-a na cidade. Era natural que eles se casassem, tão natural quanto ele sofrer pela morte dela.”

“Ele não questionou a ajuda do Santuário… Devia estar desesperado… Exatamente como eu estou.”

“Adel será salvo, mestre. Eu acredito nisso.”

Um breve sorriso foi o agradecimento de Hyoga, que desapareceu assim que viu Adelphos tossir novamente. O pequeno rosto estava vermelho como uma maçã, a respiração estava falhando, o suor escorria-lha pela face, em sinais que o deixavam mais aflito. Hyoga ergueu-o e notou que ele tentava vomitar de novo, mas faltavam-lhe forças para isso. A febre devia estar mais alta, assim como as manchas brancas avançavam pelas asas.

“Minha deusa… Por favor, proteja-o…”

Quando Hyoga posicionou-o de frente a uma bacia, Adelphos vomitou mais sangue e acalmou-se. Ofegante, choramingou e encostou-se no peito do pai, que o limpou e o esfriou com um pano úmido. Para ele, era a única coisa a fazer.

‘É só isso? Ele fica doente de um dia para o outro, sem aviso, para abandonar-nos tão repentinamente? E o sacrifício da mãe para protegê-lo dos guerreiros de Prometeu? E todo o cuidado meu e de Lyris para vê-lo crescer forte? Não vale nada?’

Algumas horas já tinham se passado, desde que Mu saíra ao hospital. Ainda havia esperanças ao seu filho? A agonia aumentou no peito e fez os olhos arderem, deixando-os úmidos. Sentou-se na cadeira, molhou o pano na água gelada e continuou a esfriá-lo, ao mesmo tempo em que o acariciava gentilmente na tentativa de confortá-lo. Depois tentou fazê-lo beber água, mas Adelphos recusou veementemente. Seu cosmos queimou forte, alcançando a dispersante energia do bebê, cada vez mais fraca.

‘Vamos, garoto, você precisa agarrar-se à vida. Beba um pouco, vai fazer-lhe bem…’

Sua mensagem chegou a Adelphos, que finalmente aceitou um pouco de água. Hyoga continuou a esfriá-lo, naquela febre que só tendia a aumentar. Aos poucos, Adelphos acalmou-se e ajeitou-se em seu colo para dormir. Entretanto, aquele não seria um sono normal. Ele já estava cansado de tudo aquilo.

Duas lágrimas pingaram sobre o pequeno homofalco, do pai que o compreendia. Seria egoísmo segurá-lo mais tempo, tamanho era o seu sofrimento.

“Você está cansado, não é, Adel…? Está pedindo para ir…”

A respiração de Adelphos tornou-se mais fraca, mas regularizou-se, indicando que adormecera. Hyoga não o acordou; era melhor para o filho não sentir dor. Somente continuou a baixar a febre, na esperança de que ele resistisse até a volta de Mu. Mas não tinha coragem de acordá-lo; não queria mais vê-lo com dor.

“Há tantas coisas que eu gostaria de ensinar-lhe, Adel… Mas não posso pensar apenas em mim, não posso. Você quer ir para os braços de Seema, e este sentimento eu compreendo muito bem. Não vou mais impedi-lo, pequeno, a escolha é totalmente sua.”

Adelphos continuou a dormir, enquanto Hyoga balançava-o e refrescava-o com o pano. Comovida, Charis esforçou-se para sair da cama, suportando a dor dos ferimentos, até alcançar o mestre na cadeira.

“Mestre…”

“É errado deixar que ele vá, Charis? Adel está sofrendo tanto… Não sei quando Mu voltará, não sei se ainda há salvação para ele…”

“Segure-o, mestre. Quando Mu voltar e injetar o remédio, você lembrará este episódio junto com Adel, daqui a mais de dez anos.”

Mesmo com dificuldades, Charis trocou a água da bacia e esfriou-a com o cosmos. Em seguida, sorriu a Hyoga.

“Vamos, mestre, não desista… Não foi o que me ensinou? Não desista, por mais difícil que seja a situação. Deve ensinar isso para Adel também, ele é muito pequeno para aprender sozinho.”

“Charis…”

“Ainda tem mais da erva que Nestor nos deu?”

“Eu misturei à água da mamadeira, ele já bebeu quase tudo. Acho que é por isso que se acalmou, pois ela inibe a dor.”

“Então está surtindo efeito”, sorriu. “Ele vai melhorar.”

Hyoga continuou a olhar o bebê, que respirava tranqüilamente, até que se voltou à discípula.

“Charis.”

“Sim, mestre?”

“Você pode andar?”

“Posso, mestre. O que quer que eu faça?”

“Apresse Evan a chegar com Lyris. Acho que Adel terá melhores chances se ela estiver por perto. Não há nada melhor para um bebê do que a mãe.”

“Certo, mestre!”

Charis saiu, e Hyoga acariciou a cabeça de Adelphos. Sentia que a energia de seu filho estava por um fio, e que não havia mais chances de salvação. Segurou-lhe a mãozinha, transmitindo o cosmos ao seu corpo para dar-lhe mais forças.

‘Se eu fizer isso, resistirá mais um pouco, filho? Eu quero que me escute.’

Esperava que Adelphos o escutasse através de seu poder. Charis tinha razão: ainda era cedo para desistir.

‘Sou seu mestre e pai, Adel. Desde o início, sou seu amigo. Desde que nasceu, protegido por sua mãe, dediquei-me para que não chorasse nas noites frias da Sibéria, para que não sentisse fome, dor ou tristeza. Infelizmente, não consegui protegê-lo desta doença. Mas estou aqui e aqui permanecerei se quiser continuar conosco. Se quiser ficar, Adel, vou protegê-lo e amá-lo, vou ensiná-lo a defender-se e a respeitar as pessoas, vou mostrar-lhe por que sua mãe se sacrificou para mantê-lo vivo. Lyris, sua mãe adotiva, irá confortá-lo e protegê-lo incondicionalmente. Charis brincará com você, além de protegê-lo quando eu não estiver por perto. Você é bem-vindo para abrigar-se sob suas asas. É bem vindo ao meu cosmos e espero que ele seja aceito por você. Pegue a minha energia e permita que ela lhe dê as forças de que precisa. Pode ser doloroso, mas estou aqui para confortá-lo.’

Seu cosmos foi aceito, aumentando a força vital de Adelphos. O bebê sorriu, enchendo o pai de esperança.

“Está sonhando, filho? Sonhe. Viva. Por favor, viva. Há tantas coisas que ainda lhe ensinarei…”

Naquele momento, Hyoga percebeu que sua mente inundava-se de imagens. Ele via o que Adelphos via em seus sonhos. E ele sonhava com Seema, abrindo-lhe os braços num sorriso maternal e pedindo-lhe que viesse abraçá-la. As lágrimas escorreram pelo rosto do cavaleiro, que compreendia que era tarde demais. Seema, a mãe, chamava-o. Se Natássia fizesse o mesmo, o que Hyoga faria?

‘Vamos, meu pequeno’, dizia ela, ‘não precisa mais chorar, pois sua mãe voltou. Seu pai também está aqui, morrendo de vontade de abraçá-lo. Não há por que ter medo.’

Hyoga ainda lutou contra aquela ilusão e transferiu mais cosmos ao bebê. Nos instantes seguintes, Seema fitou-o no sonho, sorrindo.

‘Obrigada, Hyoga. Você protegeu o meu filho até o último momento. De alguma forma, Adelphos também é seu filho e de Lyris agora. Mas entenda… Se continuar, Adelphos só sofrerá. O corpo dele já não lhe serve mais; só lhe causa dor… Chore, lamente… Mas não prolongue o sofrimento daquele que você ama… Por favor.”

Ele sabia que Seema tinha razão; não era certo, tanto quanto não era justo. E, cheio de dor, chorando, abraçou o filho e interrompeu o cosmos.

—————————————————————–

Lyris irrompeu a porta da casa num estouro, apoiada em Evan e em Charis.

“Adelphos! Adelphos!”

Hyoga fitou-a chorando, enquanto carregava o Adelphos nos braços. Era apenas a carcaça, pois o espírito não habitava mais o pequeno corpo. Desesperada, ela correu e tomou-lhe Adelphos dos braços. Hyoga deixou que o abraçasse e sentou-se no chão encostado à parede. Fechou os olhos e chorou quieto, na dor que era tão forte quanto as perdas de sua mãe, de Camus e de Isaac.

“Não!”, gritava Lyris, “Eu rezei para os deuses! Eu pedi proteção deles! Eu faria sacrifícios, eu faria tudo para salvá-lo… Por que, Ártemis?! Por que, Athena?! Hera, mãe, Zeus! Por que, deuses?!”

Charis estava parada à porta, em silêncio. Apenas as lágrimas expressavam sua tristeza, observando a tragédia na casa onde crescia. Sentiu um toque no ombro e olhou para Evan, que assistia à cena com pena.

“Venha… Vamos deixá-los, Charis.”

Esquecendo o ódio que nutria por aquele homofalco, Charis obedeceu-lhe e seguiu-o pelas ruas da cidade. O choro de outros também ecoava nas ruas, assombrando-lhe os pensamentos. Evan guiou-a até um local isolado, onde não se ouviam os gritos de desespero. Sentou-se à beira de uma ribanceira e observou a paisagem, tristemente. De certa forma, o silêncio os confortava.

“Enquanto caminhamos, podemos esquecer nosso objetivo e perdermo-nos”, disse ele. “Nós lutamos para que ninguém precise derramar lágrimas. Um líder é bom quando caminha entre os seus e só vê expressões de satisfação. Um dia… vendo Aure trabalhar nas plantações, pensei: vou ser bom para ela. Quis ser bom para protegê-la, para proteger tudo isso. Sou um homofalco de orgulho, sou o melhor para eles. E em meio a tantos ataques dos guerreiros de Prometeu, perdi-me.”

Evan suspirou fundo, tentando conter a tristeza. Charis aproximou-se e sentou-se ao seu lado.

“Eu respeito o seu mestre. Ele é um grande guerreiro, é um grande mestre, é um grande homem. Minhas lembranças de parentes assassinados só me trazem ódio dos humanos, por isso é difícil admitir que ele seja um de nós. Mas ele é. E está lutando para proteger-nos sem ferir nossa cultura.”

“Evan…”

“Quando você crescer e virar a nossa líder, Charis, quero que tenha em seu espírito a dor de todos agora. A minha, a de seu mestre, a de Lyris, assim como a de todos os demais que perderam um ente valioso. Você conhece o meu estilo de luta: se caio ferido, logo me levanto para queimar o cosmos, por que acredito que é dessa maneira que sobreviveremos à fúria dos deuses e dos homens. Precisamos manter o peito firme àqueles que nos oprimem. Ontem, eu fiquei feliz com a nossa luta. Você provou ser assim, diante de todos aqueles homofalcos. Por isso, reconheço em você uma líder nata, a quem seguirei até a morte. Só peço que tenha em mente a necessidade de nós, o seu povo. Entenda a nossa dor, Charis. Eu perdi Aure, a garota com quem sonhei desde a infância, e agora pergunto-me: por quê? Por que todos precisam perder tanto? Por que não podemos nos preocupar somente com a colheita para o próximo inverno?”

“Os guerreiros de Prometeu sempre ameaçaram o nosso povo. Nós não podemos viver em paz, nunca, porque Prometeu é imortal. Mas… Nós só queremos viver em paz.”

“É dever do líder dar-nos isso.”

“Meu pai e Myles esforçaram-se ao máximo. Eu também preciso fazer isso. Mesmo… Mesmo sofrendo.”

“Você e eu… E Hyoga, e Lyris… Se não agirmos como Myles diante das mortes de Eleni e de Tibalt, morreremos. Portanto, enquanto o seu mestre estiver se recuperando da morte do filho, quero que você trabalhe ao meu lado.”

Curiosa, Charis fitou-o. Aonde Evan desejava chegar com aquela conversa?

“Myles disse que, se ele morresse, a vila teria uma liderança conjunta, comigo e o seu mestre. Ele ainda está sofrendo muito com a morte daquele bebê, e eu também não estou em condições… apropriadas para decidir o que é melhor ao povo. Eu quero que você nos ajude, Charis. Assim, Hyoga não terá como duvidar de minha escolha por você. O tal cavaleiro voltará, mas não sabemos o que fazer até lá. Myles está doente, está de cama. Um de meus soldados está cuidando dele em sua casa. Eu quero ajudar todos os homofalcos, e queria que você me ajudasse.”

“Meu mestre sabe dessa liderança conjunta?”

“Não. Mas ele não está em condições de saber ainda, Lyris precisa mais dele do que eu. Você é a futura líder, pode me ajudar a acalmar os demais homofalcos?”

“Eu posso. Mas ele precisa saber disso, Evan.”

“Ele acaba de perder o filho. Dê um tempo, Charis, algumas horas até contar-lhe. Eu juro que isso não é nada que vá prejudicá-lo, pelo contrário. Eu… Eu precisei perder Aure para perceber o meu erro. Daqui pra frente, prometo que trabalharei em conjunto com vocês pelo bem de todos os homofalcos. Nós precisamos vencer esta doença, custe o que custar.”

“Eu entendi. Vou caminhar de casa em casa para acalmar os enfermos. Você também fará isso?”

“Sim.”

Charis levantou-se e preparou-se para partir. Antes disso, olhou para trás e fitou-o mais uma vez.

“Você mudou, Evan.”

“Não confunda as coisas, garota. Só porque decidi colaborar, não quer dizer que virei seu amigo. Estou fazendo isso porque não quero mais ver homofalcos chorando, nem mais mortes injustificadas. Eu carrego um coração homofalco, amo o meu povo. Não desejo que ninguém mais sofra.”

Ela sorriu em resposta.

“Não foi uma crítica. Foi um elogio.”

E afastou-se para cumprir com suas obrigações na ausência de Myles.

—————————————————————–

Quando Charis abriu a porta, viu Lyris encolhida na cama, chorando, enquanto Hyoga carregava o corpo de Adelphos com um dos braços e acariciava a esposa com o outro, tentando acalmá-la. Em silêncio, ela apenas fez sinal para que ele viesse conversar com ela. Em voz baixa, disse à esposa:

“Lyris, preciso levar o Adel para o galpão. Tente dormir um pouco.”

Hyoga fechou a porta e pôs-se a caminhar na direção da estufa aonde todos os corpos eram levados. Charis seguiu-o, sem saber por onde começar. Foi o mestre que iniciou a conversa para não intimidá-la.

“Há alguma novidade, Charis?”

“Mestre…”

“Não se preocupe comigo. Vamos, diga-me.”

‘Como quer que não me preocupe?’, pensou a garota. ‘Eu sei o que é perder alguém valioso de forma tão trágica’. Entretanto, procurou agir com naturalidade para não dificultar-lhe as coisas.

“Myles está muito doente. Mas antes de cair de cama, disse a Evan que vocês dois deveriam trabalhar em conjunto numa liderança dupla. Ele não está condições de comandar a terra dos homofalcos, por isso quer você o Evan trabalhando em equipe.”

“Entendo. E o que Evan acha disso?”

“Ele concordou.”

“Que bom. Eu temo, porém, não poder ajudá-lo muito agora. Lyris está passando por um momento muito difícil, não posso deixá-la sozinha.”

“Evan já pensou nisso. Eu assumo por hoje, mestre. Só quis que soubesse da decisão de Myles.”

“Não acredito que ele teve essa consideração. Bem, vou agradecer-lhe amanhã. E a você também, Charis.”

A garota sorriu e tomou um caminho diferente do dele.

“Não precisa, mestre. Até amanhã e descanse com calma.”

Hyoga não disse nada ao ver Charis partir, mas seu pesadelo ainda não terminara. Dirigiu-se ao galpão e pôs gentilmente o corpo de Adelphos ao final da fila de cadáveres. O cheiro de corpos em decomposição forçou-o a tampar o nariz; as moscas sobrevoavam aquelas dezenas de corpos, todos vencidos pela peste.

Ele não podia perder tempo naquele lugar. Voltou para casa o rápido que pôde e viu Lyris soluçando na cama. Trocou a água da bacia e levou-a até ela, com o lenço. Cheio de pesar, levantou uma das asas para verificar a gravidade da doença. As manchas brancas estavam escondidas, mas cresciam de hora em hora, assim como os sintomas.

“O que é isso?”, perguntou ela, quando Hyoga molhou-lhe o rosto.

“Você está com febre, Lyris. Está doente também.”

“Isso não me importa. Eu não quero remédio nenhum. Deixe-me, Hyoga.”

“Eu… Eu não posso.”

“Já disse para deixar-me.”

O problema com Lyris era que o tratamento não era uma opção após a morte de Adelphos. Hyoga forçou e segurou-lhe o braço quando ela reagiu.

“Ao menos me deixe tentar salvar o meu filho, Lyris. Ele não tem culpa de nada.”

Lyris fitou-o com lágrimas, e Hyoga condoeu-se por ela. Beijou-lhe a testa, com os olhos úmidos, antes de passar o lenço molhado nela e em seguida ofereceu um copo de água.

“Eu não quero perder você também, Lyris… Por favor.”

Talvez aquele silencioso olhar fosse o mais longo que ela lhe dera desde que se casaram. Ela estava decidindo se deixaria ser curada ou se iria ao mundo de Adelphos para cuidar dele ao lado de Seema. Se fosse antes, ela escolheria a morte sem hesitar. Contudo, tinha outras obrigações na vida. Sentou-se e aceitou o copo d’água.

“Obrigada.”

“Eu é que agradeço. Vamos, desistir não faz parte de nós, Lyris… Mu vai voltar com os remédios, eu tenho certeza. E você ainda me tem, mesmo que eu não seja tão importante quanto o Adel… Estou do seu lado até o fim.”

“Acha mesmo que ele vai voltar a tempo?”

“Eu acredito em Mu. Neste momento, ele está fazendo todo o possível para encontrar a cura da peste.”

Lyris olhou para a parede com o pensamento ainda em Adelphos. Para ela, o Santuário era a instituição que não conseguira salvar a vida de seu filho e de dezenas de pessoas. Portanto, para ela era apenas um bando de incompetentes que buscava o controle sobre os homofalcos, num prelúdio a um domínio completo e opressor.

“Se é que há uma cura…”

“Há cura será descoberta porque já existe. Em breve… Espere.”

Hyoga levantou-se da cama e queimou o cosmos suavemente. Sentia o cosmos de Mu aproximar-se, o que podia significar a tão sonhada cura da peste. Sorriu e concentrou sua mente no contato ansioso.

‘Mu?’

‘Hyoga, já estou chegando. Mantenha o seu cosmos constante para guiar-me.’

‘Conseguiram achar a cura?’

‘Não se preocupe, ela já está chegando.’

Hyoga sorriu de alívio com a notícia e chegou-se a Lyris, segurando-lhe ambos os braços.

“Ele conseguiu, Lyris. O Mu conseguiu, está trazendo o remédio! Você vai ficar boa!”

Entretanto, a esposa apenas fitou-o através de olhos molhados, como se aquela fosse a pior notícia do mundo.

“E ele vai trazer meu Adelphos de volta?”

E novamente o choque da morte do filho assombrava-o com a certeza de que nenhum remédio traria o seu filho de volta. Sentou-se de novo na cama, ao lado da esposa, e envolveu-a em silêncio, na tentativa de diluir aquela dor que nunca desapareceria deles. Sabia que poderia diminuir e que eles acabariam por acostumar-se a ela, mas jamais seriam capazes de esquecer.

“Não, Lyris, não vai. Mas… Vai salvar você e este pequenino aqui.”

A mão passeou pelo ventre que sintetizava o ovo do primeiro filho biológico do casal; contornou a silhueta e parou nas costas, numa aproximação que a obrigou a apoiar-se em seu peito.

“Com ele, nós iremos superar.”

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