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Autora: Nemui
Fandom: Saint Seiya
Gênero: drama, aventura
Classificação: 16 anos
Status: Completa
Resumo: A vida de Hyoga se transforma quando entra em contato com um mundo completamente diferente do seu.
Myles andava tateando pelas árvores da floresta, guiando-se apenas pelo cosmos de Charis e tropeçando nas raízes que seus olhos não podiam mais captar. Ouviu uns soluços e sorriu.
“Charis?”
“Myles.”
“Posso sentar-me ao seu lado?”
“Venha.”
Sentiu a mão de Charis agarrar o seu braço para guiá-lo até o firme tronco do cedro. Sentou-se na neve e enrolou-se no cobertor de Hyoga sentindo a brisa gelada da noite.
“Deve sentir-se traída, não é mesmo? Pensar que Hyoga escondeu uma mentira para nós por tanto tempo…”
“Ele é um humano idiota.”
“É… Um idiota que se arriscou para salvar todos. Escute, Charis, posso não ter sido um bom líder, mas acho que até Ájax ficaria sem saber o que fazer numa situação dessas. Se somos nobres, devemos morrer porque um líder idiota prometeu em nome de todo o povo homofalco. Mas se somos covardes, continuamos a lutar contra os guerreiros de Prometeu. O pior é que fico escutando essa promessa estúpida na minha mente de novo e de novo. É um inferno.”
“São dois idiotas.”
“Mas Charis… Eu tenho uma história a contar-lhe, que Eleni me contou há três anos. É de quando o seu mestre descobriu que não poderia mais voltar à terra dos humanos. Ela disse que ele tinha prometido obedecer às leis homofalcas para não nos prejudicar; e por isso aceitou a punição de Athena sem nem sequer questionar. Mas você sabia que ele chorou durante uma tarde inteira quando soube disso? Só se acalmou na hora de ir dormir.”
“Por que isso?”
“Porque ele tinha jurado que viveria ao lado do túmulo da mãe para sempre, mas foi obrigado a deixar essa promessa de lado porque essa era uma promessa feita antes de vir à terra dos homofalcos, ou seja, que não seria punida se ele deixasse de cumprir. Mas você acha que foi uma decisão fácil? Naquele dia, Eleni também chorou, sabia? Ela teve tanta pena de Hyoga que chorou para mim de noite.”
“Então ele nem devia ter tentado me ajudar naquele dia.”
“É, mas ele ajudou. E você só está aqui por causa dele, só tem os poderes que tem porque ele lhe ensinou. E tudo isso porque quebrou a promessa de não viver mais próximo ao túmulo da mãe, uma promessa que era mais importante que a própria vida. Charis, ele decidiu ceder de novo porque não quer que você morra também. Ele não quer que ninguém morra.”
“Mas isso é…”
“Desonroso.”
Charis assentiu com a cabeça e chorou. Levantou-se e, antes de partir, olhou para o ex-líder.
“Vou voltar agora. Você vem?”
“Não”, respondeu Myles. “Vou ficar e descansar um pouco à sombra da Kedreatis. Eu também preciso decidir o que fazer, sabe?”
“Está bem.”
Myles viu Charis partir e sorriu.
‘Eu sei que ela vai tomar a decisão certa’.
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Hyoga ajudou Myles a levantar-se do chão à noite, puxando os braços rígidos para cima. Lyris trocou o cobertor por um novo e tentou fazê-lo beber um chá.
“Vamos, Myles, beba…”
“Eu não sei se é uma boa”, respondeu ele, com voz trêmula. “Afinal, um idiota prometeu que morreríamos.”
“Como você acaba de dizer, ele é um idiota”, respondeu Hyoga. “Vamos, as promessas que valem são as que fazemos com o coração. Esqueça ele, Myles.”
“Como esquecer, se ele não pára de falar a mesma coisa no meu cérebro de novo e de novo? Eu prefiro morrer a ver esse desgraçado pelo resto dos meus dias. Eu quero voltar para Eleni e Tibalt.”
“Eleni ficaria furiosa comigo se eu o deixasse assim. Vamos.”
Hyoga não tinha coragem de comentar como a situação se invertera. Antigamente, quando ainda estava em fase de adaptação, Eleni e Myles vinham, junto com Tibalt, ver como ele estava e tratar seus ferimentos. Agora era o ex-líder que estava sozinho e ainda era atormentado pelo Justice Light. Colocou-o nas costas e caminhou de volta para casa.
“Myles, venha conosco. Você ainda precisa ensinar muita coisa ao nosso pequeno Iakodos, esqueceu? É o mestre dele. Não desista.”
“Eu prometi que o treinaria… não?”
“Sim. E foi uma promessa feita com toda a honra de um homofalco. Eu não vou permitir que isso mude. Tudo continuará como antes, não é? Mesmo que eu manche a minha honra… Tudo continuará como antes…”
Ao passarem na frente da casa de Charis, Hyoga parou e observou demoradamente, com pensamentos perturbados. Lyris voltou-se a ele, preocupada.
“Hyoga? Você não vem?”
Hyoga voltou a si e olhou para a sacola que amarrara num dos elos da corrente de Prometeu e que carregava sempre que ia trabalhar.
”Lyris, pode fazer um favor? Abra a minha sacola.”
Obedecendo, Lyris tirou um velho livro da bolsa e mostrou-lhe.
“É isto que quer?”
“Sim. Pode deixar esse livro em cima da mesa da Charis? Ela não está em casa agora, mas tenho certeza de que virá mais tarde.”
“Está bem.”
Enquanto esperava pela esposa, Myles mostrou-se curioso e perguntou, mesmo que ainda tremesse de frio.
“Hyoga, o que é isso?”
“Quando eu fui preso pela primeira vez nesta terra, quase morri de tédio. Ficava preso naquela jaula semi-aberta e fria, sem ter nada para fazer. Depois de ler todos os livros homofalcos de que tinha direito, fiquei mais entediado do que nunca. Então decidi escrever algo para passar o tempo.”
“E sobre o que escreveu?”
“Eu cheguei a pensar em escrever sobre os cavaleiros de Athena, mas… Na época eu estava escondendo a minha identidade. Então decidi contar sobre as minhas impressões dos homofalcos. Isso acabou virando um costume. Mas… Mais do que escrever sobre os homofalcos… Muitas das minhas impressões foram escritas pensando na futura líder dos homofalcos… Charis.”
Lyris voltou, e Hyoga continuou a caminhar. Esperava que Charis ao menos lesse as primeiras páginas.
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Lyris olhou através da janela e notou que havia uma movimentação diferente na cidade. Levou Iakodos até Hyoga e colocou-o nos braços.
“Pode olhá-lo só por um instante?”
“Claro.”
Hyoga sorriu e dirigiu-se até a bacia onde Lyris banhava o filho. Mergulhou-o na água e continuou a dar-lhe o banho, enquanto a esposa dava uma rápida saída de casa. Geralmente, por pressão da sociedade homofalca, Lyris não tinha coragem de pedir a Hyoga para ajudá-la nas tarefas. No máximo, pedia que o segurasse. Entretanto, Hyoga não se importava de ajudar, contanto que não tivesse de trocar as fraldas de Iakodos, tarefa da qual ele fazia questão de abster.
Shun e Seiya, que o visitavam de tarde, aproximaram-se de bom humor, apesar dos estragos do ataque de Prometeu.
“Quer dizer que Lyris confia em você o suficiente para deixá-lo aqui.”
“Por que ela não confiaria em mim?”
“Porque você não sabe cuidar de bebês?”, zombou o cavaleiro de Pégaso.
“Heh.”
Contudo, Iakodos nada tinha a reclamar dos trejeitos do pai; ria de vez em quando ao ser ensaboado, mas não escapava das mãos habilidosas que o mantinha sob controle.
“Ele me parece feliz e comportado o suficiente”, notou Shun.
O motivo era muito simples para Hyoga. Apesar de Lyris cuidar de tudo para Iakodos, Hyoga criara Adelphos por vários meses antes de casar-se, o que lhe deu muita prática antes de aposentar-se como babá. Por um momento, as lembranças de Adelphos doente invadiram-lhe a mente, enchendo-o de tristeza. Sempre que isso acontecia, tentava focar-se em Iakodos e no fato de o filho ser saudável. Fez um gracejo e arrancou uma risada do filho, antes de tirá-lo da água e enrolá-lo com a toalha.
“Ele é feliz”, disse, tentando afirmar aquilo para si mesmo. “Não é mesmo, filho?”
Iakodos ainda soltou alguns sons, algo que Hyoga supunha ser um sim ou uma vaga esperança de palavras. Lyris entrou às pressas em casa, interrompendo-os.
“Rápido, Hyoga! O homofalco que está voando em círculos lá em cima está avisando a todos para reunirem-se no centro da cidade. A Charis vai assumir a liderança dos homofalcos!”
“Não pode ser! Ela teria me avisado antes!”
Lyris rapidamente cobriu Iakodos com cobertor para protegê-lo do frio e saiu com os rapazes, em direção ao centro da vila. Depararam-se com Charis e Myles, no centro de um círculo de homofalcos. Luna estava pendurada na sua cintura, e Myles declamava ao povo com firme voz.
“E tal como seria de direito após a morte de nosso estimado líder, Ájax, entrego o título de líder a Charis, sua filha, e herdeira justa.”
‘Isso não é uma mentira?’, observou Hyoga. ‘Segundo Charis, o Justice Light é uma prova de que Timeus era mesmo o líder de direito dos homofalcos. Portanto, o mais lógico seria se Átias estivesse morto. Entretanto… Considerando que este está morto, Charis deve mesmo ser a líder justa. Charis…’
Naquele momento, Charis notou que ele estava presente e sorriu-lhe gentilmente. Segurava o livro num dos braços, sinal de que o lera naquela tarde. Adiantou-se aos homofalcos e ergueu-se no ar para ser vista por todos.
“Eu agradeço, Myles. É com muito orgulho que assumo a posição de liderança dos homofalcos, e ciente de como nossa situação é delicada. Desde que nasci fui treinada para este dia. E agora que ele chegou, quero pedir a ajuda de meus amigos nesta missão de proteger os homofalcos das forças de Prometeu e dar-lhes tranqüilidade e paz. Para essa vital missão, peço a ajuda de valiosos amigos que me acompanharam até agora. De Myles, de todo o exército… e principalmente… de meu mestre. Eu presenciei a batalha de ontem com o coração na mão e a espada em punho, desejosa de ajudar nosso companheiro Myles, que recebeu um poderoso golpe de Átias, mas venceu-o com honra. Vendo o seu sacrifício, chego a uma importante conclusão. Não importa quanto sangue derramemos, vamos expulsar Prometeu de nossas terras para sempre!”
Gritos de aprovação foram emitidos pelos homofalcos. Provavelmente eles não sabiam como o Justice Light funcionava, ou teriam buscado a verdade em Myles. Aproveitando disso, Charis decidiu esconder a verdade e agir como se eles estivessem certos. Só o fato de não morrer já era descumprir a lei da palavra dos homofalcos, mas Charis o fazia para manter o povo vivo. Esperava que aquela promessa fosse apagada da história e desaparecesse para nenhum homofalco mais precisar sentir aquela culpa, aquela traição que ela sentia com relação a si mesma. Segurou o livro que ganhara de Hyoga com força quando ergueu Luna no alto.
“Por causa do incidente, tivemos de adiar nossa empreitada à base inimiga por dois dias. Mas eu prometo que esse tempo será aproveitado para nos reerguermos com asas e espadas firmes! Peço a colaboração de todos, portanto… Voltem para as suas casas e reconstruam-nas quantas vezes forem necessárias!”
A agitação do povo era evidente, assim como eram novas as esperanças depositadas sobre a garota que tão precocemente assumia o peso de todo o povo. Depois de ver os homofalcos dispersarem, Charis aproximou-se de Hyoga, com os olhos marejados.
“Agora sei como se sentiu quando mentiu para proteger Lyris, mestre.”
“Desculpe”, sorriu ele, compreensivo. “Não esperava que você tivesse de sacrificar sua honra também por eles. Mas você, Charis, possui uma missão muito mais importante.”
“Sim. Devo dar condições para que os homofalcos possam viver com esse princípio da promessa e da verdade. Para isso, para mantê-los vivos… Preciso sacrificar-me. Da mesma forma como você doou-se para mim… Está na hora de fazer isso por eles. Meu avô nem tinha o direito de prometer algo assim… Ele sujou a nossa honra. Mas eu não vou permitir que isso nos mate, mestre. A lei dos homofalcos serve para que possamos viver, não morrer. Além disso, nem todos precisam mentir para manter tudo isso vivo… Apenas o líder.”
Dizendo aquilo, com a sensação de ter a alma suja por quebrar tão sagrada promessa, Charis desatou a chorar, esquecendo-se de sua posição e voltando a ser uma menina assustada.
“Mas eu quero manter a minha palavra! Eu quero ser honesta e tirar minha própria vida, porque meu avô assim prometeu no passado. Eu tenho orgulho de ser homofalca porque nós não mentimos como os humanos! Mas…”
Hyoga compreendia perfeitamente o que Charis queria dizer. Abraçou-a ternamente, a despeito de sua posição como mestre.
“Eu sei, é importante para você, Charis… Sua honra sempre se manteve intacta porque você lutou por isso. Eu entendo porque homofalcos não mentem e não admitem a mentira dos outros. Não é fácil manter sempre a sua palavra, porque precisa ser forte o tempo todo. Mas há uma coisa também.”
E fitando-a nos olhos, disse, com toda a sinceridade.
“Para carregar esse novo fardo, você também precisará lutar, Charis. É o que tenho feito esse tempo todo. Tenha orgulho da força que precisará para isso.”
Enxugando os olhos, Charis voltou-se a Myles, que também lhe sorria.
“Myles… O que você acha que o meu pai faria numa situação dessas?”
“Bem, Charis… É difícil responder”, disse o homofalco, tentando ganhar um tempo. “Seu pai e eu crescemos juntos desde pequenos, até fizemos o treinamento de soldado juntos. Depois, voltávamos e ainda explorávamos estas terras como se estivéssemos prontos a morrer pelos homofalcos. Peripécias dos tempos de menino. E eu acho que… Ele faria todo o possível para proteger os homofalcos, como você está fazendo agora. Ájax era muito voltado ao bem-estar do povo, você sabe. Ele coordenava o treino, mas logo saía para alegrar as pessoas. Ele gostava de vê-las sorrindo.”
“Eu queria que isso fosse verdade”, disse ela, tentando sorrir. Em seguida, devolveu o livro a Hyoga.
“Continue, mestre. Quero que minha vida fique na história dos homofalcos por suas mãos. E… obrigada por tudo o que disse sobre mim. Jamais imaginei que se importasse tanto comigo e com os homofalcos. Desculpe por ter desconfiado de você.”
“Você é uma peça rara, Charis”, respondeu Hyoga. “Mesmo chorando, não desista.”
“Sim… Eu preciso ir agora… Tenho responsabilidades a assumir. Mas mais tarde quero continuar o treino, mestre! Não pense que meus poderes pararão aqui.”
Charis voou e partiu para assumir sua nova missão. Myles espreguiçou-se e concentrou o cosmos.
“Vejamos… Nicholas está naquela direção. Eu só preciso andar até lá, não?”
“Lyris, pode levá-lo até lá, por favor?”
A esposa assentiu e pegou o braço de Myles, mas este recusou gentilmente.
“Não, não precisa, Lyris. Isso é um bom treino para mim também. Ajuda a… ignorar esse cara chato falando besteiras.”
Hyoga observou o amigo partir com pena de sua nova condição. Iakodos grunhiu, e ele lembrou que mal o enxugara antes de sair de casa; apenas o protegeu com o cobertor para não se esfriar. Acomodou-o nos braços e tomou o caminho de volta para casa. Seiya aproximou-se, sentindo-se mal pelo comentário do dia anterior.
“Hyoga… A verdade é vista como honra máxima aos homofalcos?”
“A verdade é mais do que uma identidade aos homofalcos, Seiya. A promessa e a palavra são as bases da vida dos homofalcos. Eles são orgulhosos porque nunca mentem e sempre cumprem as promessas, mesmo que para isso precisem morrer. O preconceito que eles possuem pelos humanos é principalmente por causa disso e não da ausência de asas, eles têm orgulho de nunca mentir. Para eles, a mentira é maior que a própria vida, mas… Charis colocou a vida deles acima da própria honra. Isso a feriu profundamente.”
“Agora entendi. Perdoe-me por ter menosprezado essa lei, Hyoga. Não sabia que era tão importante. Quando Saori disse que não podíamos mentir nestas terras, fiquei revoltado, mas… Agora entendi…”
“É, você sempre foi muito lento pra tudo, Seiya”, riu Hyoga, zombeteiro. “Não é mesmo, Iakodos?”
O bebê sorriu, sem ter sequer idéia de o que acontecia entre seu pai e Seiya. Mas o cavaleiro de Pégaso tomou como gozação.
“É, espere só até você crescer, Iakodos. Vai pagar em dobro por essa risada.”
Antes de entrar, contudo, Hyoga parou à porta de casa, hesitante. Lyris parou atrás, e ele passou-lhe o bebê nos braços.
“Lyris, pode cuidar do resto?”
“O que vai fazer?”
“Charis foi ajudá-los sozinha. Eu também preciso fazer o mesmo. Vou dar uma volta e ajudar nos consertos das casas. Afinal, não posso abandonar a minha discípula ainda.”
Pegando a caixa de ferramentas, saiu.
“Não lhe disse?”, comentou Shun com Seiya, depois de Hyoga desaparecer da visão numa das ruas. “Hyoga mudou bastante desde a última vez que o vimos, não é?”
“É… Nós o perdemos para os homofalcos.”
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Cinco soldados queimavam o cosmos e passavam seus poderes de fogo para Luna, que a todos recebia com armazenamento infinito. Enquanto isso, Hyoga pregava a madeira da parede da casa de uma homofalca cujo marido fora morto no último combate. Sempre que alguém necessitava, Hyoga se colocava como opção ao trabalho, devido ao juramento de servi-los, não importava como. Uma das mãos suportava o peso do tronco inteiro enquanto a outra oscilava rapidamente com o martelo. Charis segurava a outra ponta, dando suporte ao conserto.
“Só mais um”, comentou ele, tirando um dos pregos que segurava com a boca. “Então ficará firme o suficiente por um longo período.”
“Logo nós iremos para Adliden… Precisamos aproveitar para ajudar no que der por enquanto, certo, mestre?”
“Claro. Mas também não devemos nos esquecer que nosso objetivo é voltar vitoriosos, não morrer ali.”
“Como se fosse fácil me matar!”
Hyoga sorriu, e mostrou o cosmos, que queimava firmemente.
“Se querem nos matar, terão muito trabalho.”
“Eu não agüento mais!, gritou um dos homofalcos que carregava Luna. “Não tenho mais cosmos pra encher… Eu sinto muito, senhores.”
Ele não era o único. Logo, todos os homofalcos se cansaram e pararam para descansar, deixando Luna sozinha, fincada no chão. Charis aproximou-se da espada e queimou o cosmos com ela, para ver quanto de poder havia na sagrada arma.
“Mestre, acho que já é mais do que o suficiente. Por que não dá uma olhada?”
Hyoga queimou o cosmos com calma e sentiu que o seu poder também era sugado pela espada, como quando a corrente de Prometeu estava ativada. Havia já uma enorme quantidade de cosmos depositada ali, o que lhes garantiam uma viagem segura para Adliden.
“É, parece que estamos prontos para a viagem. Vamos, Charis, vamos pegar os demais e partir.”
Para eles, era como uma expedição; para muitos, como a entrada do inferno. O rosto temeroso de Lyris no momento da partida era o sinal de que aquela não seria uma viagem fácil. O cavaleiro sorriu e acariciou a cabeça de Iakodos, que dormia nos braços da mãe.
“Quando eu voltar, prometo que troco aquele vidro quebrado da estufa, Lyris.”
“Isso é uma promessa? Soa como um tranqüilizador temporário.”
“Não… Espere por mim. Por favor, cuide de Myles enquanto estiver fora.”
“Está bem.”
Não havia muito a fazer para tirar a expressão triste de Lyris. Hyoga voltou-se aos amigos e ajeitou a volumosa mochila nas costas.
“Estou pronto. Vamos?”
Charis sorriu e voltou-se aos soldados.
“Vocês estão prontos? Temos quilômetros de vôo pela frente, portanto não podemos perder tempo.”
“Nós vamos dar um carona com o jato da Fundação até a boca do desfiladeiro”, disse Saori. “Depois desse limite, não temos tecnologia para seguir adiante. Então teremos de usar o poder acumulado em Luna.”
“Que está bem aqui comigo”, disse Charis, de bom humor. “Nada pode dar errado, eu tenho fé disso. Vamos.”
A surpresa dos soldados ao verem a enorme nave não foi pouca. Alguns pararam antes da escada e não tiveram coragem de subir. Hyoga achou graça, lembrando que Charis também ficara assim na primeira vez em que subiu num avião. Otis, o amigo de treino e que agora comandava uma parte do exército como um dos mais destacados soldados, segurou a bainha de sua espada por não ter outro lugar em que se apoiar. De forma a encorajá-lo, Hyoga riu.
“Eu não sabia que era tão covarde a ponto de não conseguir subir uma escada de metal, Otis. Não foi você que me disse que nada o assustava?”
O semblante assustado de Otis refletia o medo de todos os soldados.
“Eu estava me referindo às coisas normais. Isto”, disse, apontando para o jato, “absolutamente não é normal.”
Charis subiu nos degraus sem medo e acenou-lhes.
“Ei, soldados! Se vocês são verdadeiros homofalcos, jamais deviam temer isto. Vamos logo!”
Agora Charis não falava mais como uma garotinha. Agora era uma líder, e suas palavras eram ordens a Otis e aos outros. Até mesmo Hyoga precisava obedecer-lhe. A nova situação era deveras estranha, mas Hyoga apenas supunha que precisava conformar-se em receber ordens de Charis e obedecê-las. Subiu no jato e sentou-se num dos bancos, ao lado de Shiryu. Faltava pouco para entrar em batalha.
Quando o jato decolou, Shiryu puxou conversa, pois sabiam que levariam algum tempo até se aproximarem do desfiladeiro. Hyoga estava com os olhos fechados, sonolento, mas disposto a falar.
“Hyoga, quando tudo isso terminar, o que vai fazer? Creio que os homofalcos não precisarão mais de proteção.”
“Depois… Vejamos…” E depois de pensar um pouco, disse: “Vou consertar as estufas e as casas que foram destruídas. Preciso continuar o treino dos soldados, pois eles ainda precisam melhorar muito na arte da guerra. Também quero treinar Charis mais um pouco. Além disso, quero passar um tempo ajudando as homofalcas das estufas. E preciso encontrar um discípulo que queira ser um cavaleiro de Athena para passar os ensinamentos de Camus adiante. Também há a Lyris e o Iakodos… Creio que vou passar um bom tempo ocupado”, sorriu.
“Seus planos são provas de quão vinculado você está ao presente. Antigamente, eles apenas eram permanecer em Kohotek e talvez arranjar um discípulo.”
“Minha vida nunca mais será a mesma. É por isso mesmo que preciso voltar vivo. Como agora estou adaptado ao modo de vida dos homofalcos, pergunto-me onde arranjarei um discípulo para ser um cavaleiro de Athena. Os homofalcos nascem com uma mentalidade totalmente diferente dos cavaleiros, será difícil encontrar um discípulo que tenha noção da justiça dos homens.”
“Há tempo para encontrar um. Não deve ficar afobado, você sabe que o destino fará o trabalho para nós.”
“Tem razão, Shiryu. Mas… Eu realmente ficaria feliz se algum dia houvesse um homofalco cavaleiro.”
Naquele momento os olhares dos homofalcos caíram sobre ele, curiosos com o que Hyoga estava para dizer.
“Os homofalcos possuem uma força inexplicável da verdade e da promessa que resgata o que falta em muitos cavaleiros de bronze e de prata que vemos no Santuário. Com certeza ele sofreria muito no mundo dos humanos, mas… Acho que deixaria belas heranças na história dos cavaleiros de Athena.”
“Agora que os vi lutando, entendo o que quer dizer. Mas imagine um homofalco no mundo dos humanos, Hyoga. É como um peixe vivendo num rio poluído. Simplesmente não é natural e saudável. De tanto engolir sujeira, o peixe morre e vira sujeira. Não gostaria disso para nenhum homofalco.”
“Você acha mesmo que um homofalco não sobrevive ao mundo dos humanos, Shiryu?”, perguntou Charis. “Pois eu acho que os homofalcos são fortes para enfrentarem qualquer desafio, até mesmo o mundo dos humanos.”
“Eu acho que é quase impossível para os dois lados”, comentou Hyoga. “Um humano com os homofalcos inevitavelmente, em algum momento, acabaria mentindo, a menos que já tenha sido criado com a noção de honra guerreira, como eu. E também acredito que um homofalco enlouqueceria com tanta sujeira lá fora. Com certeza acabaria matando todos os humanos, como Prometeu disse que o faria. Não posso culpar nenhum dos dois.”
“Então é melhor que cada um fique em seu respectivo lado, é isso, Hyoga?”
“É. Pensando sob esse ponto de vista, não vejo como vou conseguir discípulos assim.”
“Ora”, comentou Charis, “se o humano conseguir a luz azul do cristal, não vejo problemas de ele morar conosco, contanto que se mantenha sob a sua responsabilidade, mestre.”
“Acha que Ájax aprovaria algo assim, Charis?”
“Eu não sou o meu pai”, respondeu a garota, cruzando os braços. “Se o cristal não aponta nenhum problema, então não existe nenhuma lei que o impeça de treinar um humano em nosso território. Mas é claro que ele seria submetido à nossa lei e teria de respeitar a nossa cultura. E se você tiver um discípulo… Deixe-me treiná-lo também!”
Charis sorriu e olhou pela janela. Já estavam chegando e em breve teriam de usar o poder de Luna. Era um grande peso em suas mãos, mas já não se sentia tão nervosa. Talvez fosse porque todos os cavaleiros assumiam uma postura paternal com ela e ajudavam no que fosse preciso. A segurança que eles transmitiam era como ter Ájax ao seu lado.
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No mesmo instante em que a porta abriu, Charis e os soldados dotados de cosmos de fogo invocaram seus poderes e aqueceram o entorno antes que congelassem. Mesmo assim, o frio que fazia era absurdo, e os cavaleiros encolheram-se sob os grossos casacos, atônitos.
“Que horror”, comentou Seiya, “nem em Asgard faz tanto frio assim! Como pode haver vida por aqui?”
“Não há vida”, comentou Hyoga, protegido por seu próprio cosmos, mas sentindo os efeitos do vento cortante. “O desfiladeiro de Adliden é o local mais frio da Sibéria, completamente inabitável. Aqui só há cadeias gigantescas de montanhas, que nunca derretem, nem mesmo no verão.”
Charis tirou Luna da bainha e concentrou o seu cosmos no dela. O poder fluiu suavemente para ela e a temperatura aumentou consideravelmente.
“Pronto, disse ela, assim que estabilizou a temperatura. Podemos seguir adiante assim. Não saiam de perto de mim. Soldados, façam o apoio à deusa Athena.”
Imediatamente, os soldados prepararam um assento improvisado de madeira apenas para transportar Saori pelos ares. Charis pensara em todos os detalhes antes de partir, e sabia que Saori gostaria de um mínimo de conforto até o local dos inimigos. Quanto aos cavaleiros, ela e os demais soldados ofereceram-se como transportadores. Hyoga segurou-lhe o cinto, como fizera na última batalha, e o grupo partiu em direção ao desfiladeiro. Seguiam próximos às montanhas de gelo, procurando por quaisquer sinais de vida.
Não demorou muito para que Otis, que voava à frente sem carregar ninguém, notasse uma porta ao longe.
“Uma porta! É igual à da base dos inimigos que ficava nas montanhas próxima à vila.”
“Então vamos lá”, comandou Charis. Suas asas bateram agilmente na direção da entrada, junto com o grupo. Aterrissaram na reentrância, e Hyoga aproximou-se da porta com o cosmos a queimar fortemente.
“Tome cuidado, Hyoga”, alertou Seiya. “Eles podem estar bem atrás dessa porta, prontos para atacar.”
“Acha que não sei? Vamos, preparem-se.”
Utilizando o cosmos, Hyoga congelou a tranca e quebrou-a em poucos instantes. Preparado para defender-se de qualquer ataque, segurou a maçaneta e abriu a porta. Abriu-a devagar, imaginando se ainda não tinham notado sua presença no esconderijo. Contudo, um cheiro fétido exalou do interior, forçando-o a recuar.
“Mas…!”
“Que cheiro é esse?!”, indagou Seiya, sem se preocupar com o volume de voz.
Hyoga espiou o interior, mas logo recuou e apoiou-se na parede, cobrindo a boca com a mão. Segurou-se ao máximo para não vomitar, e respirou ofegante.
“O que foi, Hyoga?”
“Um mar de corpos em decomposição”, respondeu antes de abrir mais a porta.
As moscas voavam pela sala escura, cheia de corpos comidos e cobertos de vermes. Imediatamente, todos cobriram as bocas diante de tão chocante cena. Apesar do mau-cheiro, Charis entrou alguns passos e notou que todos tinham asas.
“São homofalcos… Todos mortos… Mas o que significa isto?!”
“Estão mortos há alguns dias… Será que foi no dia do ataque?”
Um dos soldados lançou uma pequena bola de cosmos incandescente que iluminou todo o recinto. Havia naquela sala cerca de cinqüenta homofalcas, todas mulheres e crianças. No chão da sala, as vísceras misturavam-se à pele descamada e coberta de vermes, que passeavam livremente pelos cadáveres. Os olhos abertos e expressando desespero, com os cabelos secos e desgrenhados, pioravam a imagem. Hyoga tapou o nariz e caminhou entre as vítimas, até alcançar a porta que dava acesso a um corredor. Abriu-a e encontrou mais corpos em decomposição.
“Pela deusa, o que é isto?!”
Sentindo-se nauseado, cobriu a boca de novo e correu para fora, buscando ar puro. Parou do lado de fora, apoiou-se na parede de gelo e vomitou, escondido da vista de todos. Recuperou-se ofegante e limpou a boca, constrangido.
“Perdoem-me, não consegui evitar. Não dá… O cheiro é insuportável, dá até vontade de desmaiar. Essa é mesmo a única entrada?”
“Esperem aqui”, disse Otis, empunhando a espada. Eu vou ver até onde consigo ir.
Tirou um lenço do bolso e amarrou-o no rosto para suportar o cheiro. Bateu as asas e avançou até o corredor. O grupo esperou do lado de fora, receoso de novos ataques. Entretanto, o cosmos de Otis mantinha-se estável. O soldado voltou alguns minutos depois, pálido.
“Não há saída, só corpos. Todos foram cortados ou pelo pescoço ou pelo peito. Eu acho que… foi um suicídio coletivo…”
“O que quer dizer, Otis?”, perguntou Charis, chocada.
“Não há sinais de luta, e também não vi outros tipos de ferimentos… Há várias facas no chão…”
“De qualquer forma, se não há saída, não adianta ficarmos aqui, certo?” disse Ikki, em tom prático. “Vamos continuar e procurar outra entrada. Não podemos perder tempo com meras suposições.”
“Do que está falando?!”, revoltou-se um dos soldados. “Eles são homofalcos!”
Charis interveio, evitando a discussão.
“Ele tem razão, homens. Luna não permitirá paradas inúteis. Por mais que nos doa, temos de deixá-los aqui. Vamos em frente.”
Charis voou baixo e deixou que Hyoga agarrasse em seu cinto.
“Você está bem, mestre?”
“Mais ou menos. Não se importe comigo, precisamos continuar.”
E fechando a porta, Charis partiu com o grupo.
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