Capítulos: 1 2 3 4 5 6 7
Autor: Nemui
Fandom: Cavaleiros do Zodíaco
Gênero: drama
Status: Completa
Classificação: não disponível
Resumo: Axton é uma fanfic constituída de 7 capítulos, cada um narrado por um personagem diferente. Todos eles são sobre um personagem que criei: Axton, um guerreiro andarilho armado com espadas e filho de um cavaleiro, que causa estranhamento por onde passa. Em cada uma das pessoas com quem lida, Axton deixa um pouco do que é, do que pensa e do que acredita.
Não havia muito a fazer num inverno como aquele além de transações comerciais com as vilas mais próximas. Algumas pessoas da aldeia saíam no inverno para trabalhar nas imediações e juntar algum dinheiro. Eu já preferia ficar em Kohotek e visitar a planície congelada todos os dias. Já não sabia mais rezar como quando era criança, nem podia mais mergulhar até o navio. Restava-me ficar do lado de fora, sem fazer nada.
No inverno, mal havia flores para levar ao local do navio, por falta de clima adequado para plantar e de dinheiro. Às vezes, eu apenas ficava de pé sobre a planície, com o coração pesado e a cabeça no passado. Para não ficar depressivo, voltava-me a Kohotek e ajudava, ou ia treinar. Mas nas horas de descanso ia para lá e me sentia perdido. Talvez aquele fosse o mal de viver numa aldeia onde não acontecia nada.
“Com licença.”
Olhei para o lado e quase acendi o cosmos em reflexo. Não tinha sentido a presença daquele sujeito! Ele levantou as mãos, em sinal de paz.
“Ei, calma… Não vou fazer nada. Não quero lutar, nem nada.”
“Afinal, o que você é? Se não senti sua presença, é porque sabe combater, e muito bem.”
“É um costume, costume que adquiri no meu treino… Faço desde criança. Desculpe se o deixei nervoso. Meu nome é Axton.”
Axton… Aquele nome não me era estranho. Pensei por uns segundos até resgatar na memória de onde o ouvira. Fora Saori? ‘Um guerreiro chamado Axton virá te visitar. Receba-o bem’, foram as palavras dela, mais ou menos. Não tinha certeza, porque ela tinha me dito aquilo há dois meses. Eu esperei nos próximos dias, mas o sujeito não veio. Simplesmente deixei o assunto para lá.
“Você… é o sujeito do qual a deusa Athena me avisou… Mas isso foi há dois meses!”
Ele riu, fingindo a culpa. Era o tipo de sujeito que não pediria desculpas ao chegar atrasado aos compromissos.
“Eu sei… É que sou devagar para fazer as coisas. Muitos contratempos.”
Que pedra no sapato ele era. Um completo idiota.
“E o que veio fazer aqui?”
“Não é nada importante, nada mesmo. Vim conhecer a região. Quero conhecê-la tão bem quanto os nativos. Mas não quero ficar de graça. Há aqui algum lugar para ficar e trabalhar?”
“Se é trabalho que procura, veio para o lugar errado. O trabalho aqui no inverno não rende. Nós sobrevivemos com a economia que acumulamos em outras estações. No inverno, pescamos muito pouco e passamos os dias tremendo de frio. Se tivesse vindo no verão, teria muito que fazer.”
“Mas ainda é possível ficar e viver, não?”
“Vai ser difícil nesta época. Tem certeza disso? Athena me disse para recebê-lo bem, por isso não me importo que fique em casa.”
“A casa eu aceito, mas não o dinheiro. Já abusei demais das pessoas.”
Provavelmente ele arrancara moedas de ouro do pessoal do Santuário para viajar até a minha casa.
“Bem, a única coisa que pode fazer em troca da estadia é ajudar os moradores com a manutenção da aldeia e na pesca da tarde.”
“Tudo bem. Eu não me importo com isso.”
Meu tempo livre chegava ao fim. Mas como era uma ordem da deusa, não podia deixá-lo sem atenção.
“Primeiro, vamos deixar suas coisas em casa. Você já se alimentou hoje?”
“Desde anteontem, não comi nada. Não consegui comida na última vila.”
“É porque não há nenhuma sobressalente.”
Se estava há dois dias sem comer, teria de descongelar parte da minha reserva para alimentá-lo. Guiei-o pela planície, em direção à aldeia.
“Não se importa se eu perguntar o que fazia na planície? Não há nada lá.”
“Cuide da sua própria vida, visitante. Não sei o que veio fazer em nossas terras e nem quero saber mais do que o necessário. Por isso não se meta nos meus assuntos.”
“Tudo bem, não perguntarei de novo.”
Finalmente ele calou a boca. Por quanto tempo ele pretendia ficar na aldeia? Não me sentia bem com aquele sujeito perambulando por Kohotek enquanto carregava duas espadas no cinto.
Parei em frente de casa pensando nisso. Mesmo que fosse confiável, eu não conseguia ficar mais calmo. Precisava tomar-lhe as armas.
“Eu fico com elas, pelo menos enquanto você estiver aqui.”
“Sem problemas”, respondeu ele. Por um momento, achei que ele fosse recusar, mas Axton cedeu sem oferecer qualquer resistência. Entregou-me as espadas com um sorriso tranqüilo.
“Já aviso que nada farei a qualquer aldeão. Não quero causar problemas a ninguém.”
“Se causar algum problema, terá de se entender comigo. Sou responsável pela segurança das pessoas daqui.”
“Eu entendo, eu entendo… Não se preocupe com nada. Nem com a minha comida. Eu sei me virar.”
“Aqui? Você pode se dar muito bem em terras quentes, mas passaria por apuros aqui, sem ajuda.”
Eu tinha um pacote de carne congelada no armário e alguma farinha para forrar o estômago. Dei a carne para ele, e isso era o máximo que faria com uma despensa tão pobre.
“Sabe preparar isso? Ou quer que eu lhe ensine?”
Ele olhou de forma incerta para o bloco de gelo com carne dentro e admitiu a falha:
“Ahn… Não faço a menor idéia de como preparar essa coisa. Talvez eu não saiba, mesmo não gostando de admitir.
Era um completo perdido mesmo. Quando cheguei em Kohotek, no começo do treinamento, também não tinha idéia de como me virar.
“Eu preparo para você. Afinal, a deusa me pediu para recebê-lo bem. Mas aviso que a vida aqui não lhe dará conforto, nem um pouco. O que posso fazer por você é quase nada.”
“Pelo menos eu não morrerei de fome, não é?, respondeu ele, sem se abalar. “Acho que isso já é muito.”
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“Conserte isso aí”, disse Yosef. Se Axton quisesse trabalhar, teria de consertar cabanas. Não tínhamos muito que fazer no inverno, além de trabalhos de manutenção nas casas. Sem mencionar que aquele era um serviço que preferíamos fazer no verão.
“Talvez eu não seja capaz de fazer muito por vocês. Não sou bom com esse tipo de serviço, mas prometo que darei o melhor de mim.”
“É bom que dê. Não pagamos trabalho mal feito.”
Deixei meu hóspede trabalhando para o pessoal da aldeia e sentei-me na varanda da casa de Yacov para observá-lo. O normal seria eu caminhar pelas ruas e verificar se tudo estava em ordem na aldeia, mas a presença de Axton me deixava desconfiado. Precisava mantê-lo sob controle para que ninguém saísse prejudicado por causa dele.
“Hyoga.”
Yacov estava varrendo a varanda de casa, e eu estava no meio do caminho. Levantei-me.
“Já tão cedo, Yacov?”
“Meus amigos me chamaram para uma corrida de trenós hoje. Mas… Hyoga, quem é aquele moço que está trepando na casa do Yosef?”
“Hum… Ele é uma encomenda enviada pelo Santuário para que eu cuidasse. Pediram-me para recebê-lo em nossa aldeia. Como queria trabalho, deixei que trabalhasse.”
“Ahn… Mas consertar casas em pleno inverno?”
“Bem, não há o que fazer no inverno. E já que ele não quer ficar parado… Por causa disso, não posso fazer ronda na aldeia hoje. Será que você poderia fazer isso para mim? Ou é muito problema?”
“É claro que não, Hyoga. Faço isso rapidinho. Mas e o seu treino?”
“Teoricamente, minha missão é cuidar desse sujeito. O treino deve ficar para depois. Yacov, quer que eu varra para você?”
“Pode fazer isso para mim? Se o fizer, irei agora para ver o resto da aldeia.”
“Claro. Obrigado, Yacov.”
O que eu não faria para manter os olhos sobre aquele suspeito? Eu jamais me perdoaria se algo ocorresse com a aldeia por causa daquele cara.
Terminei de varrer a varanda, joguei a sujeira e esperei ali até a noite. Estava quase dormindo, mal podia ver os detalhes da casa. Axton simplesmente não fizera um minuto sequer de pausa. Tinha dificuldades com a madeira congelada, é claro, mas não era descuidado. Quando pisquei e quase caí no chão, faminto, levantei e fui falar com ele.
“Não quer dar por encerrado? Você pode continuar amanhã.”
“Logo agora que peguei o jeito da coisa? Olha, só falta eu trocar esta madeira aqui, que está podre. É pouca coisa.”
“Vai levar pelo menos uma hora. Eu estou cansado, só de olhar.”
“Você não precisa me vigiar. Não vou fazer nada aos moradores daqui, e também não quero que se incomode por minha causa.”
Senti uma ponta de irritação em sua voz. Aquilo o incomodava, assim como incomodaria a mim. Mas era necessário.
“Desculpe. Mas ser cauteloso faz parte de minha natureza.”
Axton desceu e me olhou sério, irritado.
“Talvez seja eu quem não deva confiar.”
Se aquilo continuasse, acabaríamos numa briga de rua. Desisti de irritá-lo.
“Está bem, vamos parar com isso. Eu só quero voltar para casa e relaxar. Vamos embora.”
“Não.”
“Aquele cara estava pedindo para morrer? Virei e quase o puxei pelo braço, mas assim nossa irritação viraria de fato uma briga. Suspirei e mantive o controle.
“Ah… Se quer terminar, termine. Eu vou esperar.”
“Termino amanhã. Mas há mais uma coisa que gostaria de fazer.”
“Mais uma coisa?”
“Sim. Você pode voltar para casa se quiser. Eu vou demorar.”
Ele realmente esperava que eu voltasse para casa e o deixasse solto pela aldeia? Quando Axton afastou-se, eu o segui. Não sabia o que ele queria, mas tinha de ser cauteloso.
“Hyoga, você está aí?”
Estávamos quase saindo da aldeia quando Arina veio, um tanto afobada. Considerando sempre a sua calma diante das crises, era muito.
“Aconteceu algo?”
“Yosef queria tapar o buraco que ficou no canto do telhado e acabou caindo da escada. Estou achando que ele quebrou a perna. Posso deixar Dora em sua casa hoje? Pode me fazer esse favor?”
Como dizer não para Arina? Eu precisava ficar de olho naquele cara, mas não podia deixá-la na mão. Afinal, ela me prestara inúmeros favores no passado, e éramos amigos próximos.
“Faço isso se quiser”, respondeu Axton, depois de eu hesitar. “Gosto de crianças.”
E eu permitiria aquele estranho pôr as mãos numa menininha?
“Eu faço, Arina, deixe comigo.”
“Conosco”, insistiu meu irritante hóspede.
Ela olhou desconfiada para Axton e depois para mim.
“Hyoga, pode ficar de olho nela? Vou levar o Yosef para a vila de Oden, por isso vou passar a noite fora.”
“Não se preocupe”, respondi. “Eu fico de olho nos dois.”
“Está bem.”
Dora foi posta no chão e cambaleou de volta para a mãe. Provavelmente choraria pela separação; era pequena demais. Axton levantou-se, sorriu para a menina e depois olhou para Arina.
“Vamos fazer diferente? Vamos deixar que Dora durma na própria cama, em vez de ficar aqui. Nós ficamos por perto. Acho que assim será melhor para ela. Sempre nos sentimos mais à vontade em nossa própria casa.”
“É verdade. Acho que farei isso. Mas não temos uma cama extra pros dois. A menos que queiram dividir uma cama de casal.”
Aquilo não se dizia, mesmo que fosse piada! Mas Axton riu antes de responder:
“Eu durmo no chão, pois já estou acostumado. Qualquer lugar me cabe.”
“Obrigada. Eu deixo a Dora na cama, o resto fica com vocês.”
Arina fez como dissera. Pôs Dora na cama, esperou que dormisse e nos deu breves e vagas instruções, às pressas. Enquanto ouvia sobre as possíveis cismas de Dora, eu desejava ardentemente que a menina ficasse desligada até a volta da mãe, o que era muito pouco provável. Quando acordasse, seria um berreiro por toda a aldeia. Por dentro eu receava, não sei se isso chegava ao meu semblante.
“Olhe, não se preocupe. Eu voltarei assim que possível.”
Axton parecia relaxado demais com tudo aquilo. Sentou-se no chão do quarto sem emitir qualquer ruído, cruzou os braços em torno dos joelhos e ficou ali parado, olhando para o berço. Não queria deixá-lo a sós com Dora, por isso sentei na cadeira no canto do quarto e esperei.
Ficamos ali por horas… E eu não conseguia mais ficar acordado. Contudo, Axton estava com os olhos bem abertos, olhando para o berço, sem piscar nem nada. Estava distraído com os próprios pensamentos, mas eu sinceramente não queria mais esperar. Não consegui evitar um bocejo.
“Não vai dormir? Ela não vai acordar”, perguntei, esperando que ele cedesse.
“Não. Você pode ir, se quiser.”
Aquele cara não dormia? Ou ele estava simplesmente esperando que eu capotasse de sono? Esfreguei o rosto, suspirei e bocejei de novo. Que inferno!
Axton riu e acabou mudando de idéia.
“Está bem. Estou vendo que você não confia em mim e não irá dormir antes. Eu me arranjo no tapete da sala, vá para a cama.”
Voltamos pro quarto da Arina. Axton enroscou-se no cobertor e deitou-se sobre o tapete. Em menos de cinco minutos, roncava baixo. Se estava tão cansado, por que não fora dormir antes? Por acaso estava me testando para saber até quando eu agüentava?
Decidi deixar aquilo de lado. Estava com tanto sono que tinha medo de não acordar caso ele fizesse algo. Enfim, o sono venceu a minha desconfiança.
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Quando despertei, percebi que já era dia por causa das vozes dos moradores lá fora. A primeira coisa que fiz foi procurar Axton no tapete do lado. Pulei num segundo ao vê-lo vazio, com o cobertor amassado do lado. Corri para o quarto de Dora, com o coração a mil. E se ele fizesse algo? Era só uma menina, e eu tinha de protegê-la! Saori podia tê-lo mandado, mas eu não podia confiar num guerreiro desconhecido qualquer.
Abri porta numa explosão e vi Axton sentado na cama com Dora abraçada a ele. Em sua volta, o cosmos queimava sem parar. O que ele tinha feito?!
“Axton!”
Ele me olhou com uma calma irritante e pediu que fizesse silêncio. Dora estava soluçando? Estava chorando, segurando-o forte. Então para que o cosmos? O que ele fazia?
“O que está fazendo?”
“A dona Arina ainda não chegou?”
“Não, não está aqui. Pra que o cosmos?”
Ele me pediu silêncio de novo e sorriu para a garota.
“Olhe… Não precisa se preocupar. Ela vai chegar logo e, se não chegar, eu mesmo vou atrás dela. Não estou mentindo, viu? Vamos esperar mais um pouco.”
Dora estava relativamente calma, comparada com outras ocasiões. Geralmente ela chorava escandalosamente quando a mãe não se encontrava por perto. Desta vez, porém, chorava em silêncio.
“Vou preparar seu café da manhã. Anime-se!”, disse ele, levantando-se. Foi até a cozinha com Dora no colo, preparou uma mamadeira com apenas uma mão e virando-se com o fogão de lenha. Se lhe faltava habilidade com marcenaria, tinha de sobra como babá. Fiquei de olho, é claro, pois ainda não podia confiar nele. Por que o cosmos?
Por incrível que pareça, Dora comportou-se bem enquanto mamava. Já que ele estava na cozinha, aproveitei para fazer algo para nós. Pensei em Arina e resolvi preparar algo para ela e Yosef, que não deviam demorar. Tinha trazido alguns pães de casa e preparei com eles alguns sanduíches, mas Axton não comeu: estava entretido demais com Dora.
Será que eu me preocupava à toa? Vendo daquele ponto de vista, Axton não me parecia uma má pessoa. Mas por que o cosmos? Ainda cismado com isso, pensei em trocar de lugar com ele e cuidar um pouco de Dora depois de comer.
“Passe ela para cá.”
“Só não a faça chorar. Não sei como não acordou hoje de manhã com os gritos que ela estava dando.”
Peguei Dora no colo, e ela me olhou como se eu fosse um monstro. Fez careta, abriu a boca e ameaçou, como se jamais me tivesse visto na vida.
“Queime o cosmos”, sugeriu Axton. Que diabos de conselho era aquele? Queimei o cosmos, mas Dora só se sentiu mais insegura. Começou a chorar e a chamar pela mãe, enquanto se esperneava. Meu colega riu.
“Você não tem nem um pouco de carisma com crianças, hein? Pode deixar que eu cuido dela.”
Admiti a derrota e deixei que ela ficasse com Axton. Como num passe de mágica, Dora acalmou-se com ele. Depois de circular pela cozinha com a pequena nos braços, comentou:
“Seu cosmos é muito agressivo. Ela se sente insegura assim.”
“Como assim?”
“Deve haver algo que o prejudica… Você está tenso agora, não está?”
“Considerando que um completo estranho com cosmos está perambulando pela minha aldeia… Eu protejo todos aqui, eles esperam isso de mim. Eu não sei se posso confiar em você. Não o conheço, Axton.”
“Sei… É por isso que Dora está com medo. Seu cosmos está agressivo porque você está desconfiado de mim. As crianças sentem isso.”
“Está dizendo que elas conseguem ler o cosmos?”
“Você não sabia? Eu conseguia ler o cosmos de meu pai quando era pequeno. Eu sempre sabia como ele se sentia, e minha irmã também. Porque você acha que os cavaleiros preferem pegar crianças para fazê-las aprendizes? É por causa dessa sensibilidade. Se você estiver tranqüilo, Dora entenderá. Basta mostrar calma e segurança pelo seu cosmos. Não é difícil. O cosmos nunca mente, nunca.”
Era a primeira vez que via alguém usar o cosmos para acalmar uma criança. Axton sentou-se na cadeira e continuou:
“Eu era pequeno, e minha irmã ainda era um bebê. Meu pai era um cavaleiro e, quando saía de casa para as missões, sempre queimava o cosmos e nos abraçava. Sempre que Alyssa chorava, ele fazia isso. Ela parava de chorar na hora! Depois… Depois que ele morreu, eu fazia isso para ela, mas ela sempre chorava. Só depois de um tempo eu descobri por quê. Só ajuda se você transmitir calma e segurança.”
“Então aprendeu isso de seu pai, um cavaleiro?”
“Ah, sim. Ele era o maior. Eu era só um moleque quando ele morreu, mas eu me lembro muito bem dele. Ele me ensinou o básico do cosmos, o resto eu aprendi sozinho.”
Sozinho? Aquele cosmos quase tão poderoso quanto o meu? Eu tinha percorrido um longo e íngreme caminho para alcançar aquele cosmos e Axton simplesmente o adquirira do nada?
“Como aprendeu sozinho?”
“Sim… Nunca deixei de treinar, sabe? Eu vivia ajudando as pessoas da minha vila. Assim como você, que cuida desta aldeia. Por isso entendo por que desconfia de mim. Sei como se sente. Na verdade, eu devo é elogiá-lo. Você não tirou os olhos de mim, mesmo capotando de sono. É cuidadoso, responsável com sua aldeia. Eu não fui assim…”
“O que houve com sua vila?”
“Não com a vila… Mas minha irmã foi seqüestrada quando me avisaram de um problema. Era um trote, ele seqüestrou a minha irmã… e assassinou-a.”
Não havia um caminho plano para ele, então. Desviei o olhar, envergonhado. Não devia ter perguntado tanto.
“Sinto por perguntar. E pela sua irmã.”
“Não se preocupe com isso. Além disso, você não deve confiar em mim apenas porque eu lhe disse isso. As vidas de todas essas pessoas dependem de você. Ser cavaleiro é uma enorme responsabilidade, e eu percebi isso no dia em que minha irmã desapareceu por minha culpa. Por isso, não quero que acredite em mim, assim como não desejo que acredite em ninguém que possa colocar as vidas das pessoas desta aldeia em perigo.”
“Mas desconfiar é irritante.”
“É irritante, não vou negar. Mas é necessário. Sim, é necessário. Afinal… Esta aldeia é importante para você, não é?”
“Eu fui criado aqui, afinal. Aprendi a viver sozinho com a ajuda de todos da aldeia, por isso eu os ajudo como posso. Eu só quero que coisas boas aconteçam com todos, já que a vida aqui é difícil. Eles cuidaram bem de mim. Devo retribuir.”
“Eu entendo… Ah, ela está fazendo força. Será que a dona Arina volta logo?”
“Você quer deixar de fazer o trabalho sujo?”
“Não que eu não saiba… Eu troquei muita fralda da minha irmã. Mas é algo que prefiro deixar para outra pessoa…”
Passou-se algum tempo, e nada da Arina. Vencido pelo tempo, Axton levantou-se.
“Tudo bem, eu faço… Vamos, pequena.”
Arina abriu a porta e deixou que Yosef saltasse para dentro de casa. Dora já estava em cima da mesa, enquanto Axton preparava-se psicologicamente para tirar a fralda e comprovar o inevitável.
“Hyoga, obrigada pela ajuda. E você também, Axton. Felizmente, ele não quebrou o pé, mas vai ter que ficar com essa tala por uma semana. Ah, ela fez cocô? Deixem que eu troco. Axton, não quer terminar o trabalho hoje? Senão o Yosef vai tentar subir no telhado de novo.”
“Eu já estou indo”, declarou ele, deixando Dora. Devia ser um alívio não ter de trocar a fralda dela. “Não vai demorar, dona Arina.”
Eu já estava cansado de ficar vigiando. Axton não parecia perigoso, e creio que poderia deixá-lo sozinho. Contudo, melhor era agüentar mais um pouco e esperar.
“Eu vou ajudar. Ao menos não ficarei entediado.”
“Cansou de me vigiar?”
“Sim… Mas isso não significa que não me preocuparei. Não vou me sossegar até você sair desta aldeia.”
“Isso é que é ser cuidadoso. Fique à vontade para observar. Eu não me importo.”
Subi a escada e assumi o conserto, já que era mais rápido que Axton quando lidava com madeira. Terminei o trabalho em menos de uma hora, deixando tudo como novo. Axton observou com interesse.
“Vendo assim, até parece que é fácil.”
“É fácil. Eu poderia ter feito o mesmo trabalho em duas, três horas. Já estou acostumado.”
“Bom para você. Eu sou bom com madeira, mas… madeira seca! Não essa aí, que está toda congelada. Mas agora estou sem ter o que fazer.”
Guardei a escada e olhei em volta. Arina já parecia estar bem, por isso não havia mais afazeres. Bem que eu precisava treinar. Se não tivesse um pouco de desconfiança em Axton, não teria feito nada, mas ele não devia ser mesmo uma ameaça.
“Diga, você treina todos os dias?”
“Sim, um pouco”, respondeu ele, olhando para o lado. “Quando era mais novo, ficava desde manhã até a noite, sem parar. Mas agora que estou viajando, ando negligenciando meus exercícios. Meu pai me espancaria se me visse parado assim.”
Além de não ser guerreiro de profissão, ainda largava o próprio treino? Achei que estava na hora de descobrir quais eram os limites do pacote enviado pelo Santuário.
“Eu gostaria de me exercitar um pouco, já que ontem fiquei sentado o dia inteiro. Não quer vir treinar? Assim não terei de vigiá-lo sem fazer nada.”
“Bem”, respondeu ele, “acho que você não tentará me matar de verdade. Posso não ser muito bom parceiro de treino, mas aceito. Também preciso me exercitar. E não é todo dia que podemos enfrentar um cavaleiro de Athena, eu que não sou um de vocês.”
“Quer usar suas espadas?”
“Você decide. Posso lutar com ou sem elas. Sei que cavaleiros não podem usar armas, mas eu não sou um cavaleiro, por isso não me prendo às suas leis.”
“E um cavaleiro de Athena não enfrenta apenas inimigos desarmados. Nós somos treinados para enfrentar qualquer arma. Suas espadas são bem vindas neste treino.”
“Será interessante. A última vez que lutei contra um cavaleiro com estas espadas… Foi incrível! Eu perdi para ele. Vamos ver como você se sai.”
Ele já tinha enfrentado cavaleiros? Bem, era verdade que Axton viera do Santuário. Provavelmente enfrentara algum cavaleiro por diversão. Peguei as espadas, entreguei-as e fomos para a planície, onde ele era completamente inofensivo. Axton quase escorregou na superfície gelada. Era difícil dizer que ele tinha a vantagem naquele lugar.
“Eu estou pronto, Hyoga. Acho…”
E eu não esperaria. Estava interessado em saber até onde ia aquele poderoso cosmos. Para começar, uma luta corpo a corpo para acostumar ao ambiente. Avancei, dei um soco, e Axton desviou por pouco, quase perdendo o equilíbrio.
“Aah! Como você faz para ficar de pé nesse gelo?”
“Eu patino, oras. Eu moro aqui há anos, sei me virar bem no gelo. Quer mudar o local de treino?”
Ele pensou e considerou a proposta. Mas sorriu e respondeu:
“Eu estou bem assim. Vamos continuar.”
Axton queimou o cosmos, tomou impulso e avançou, meio escorregando no gelo. Sua intenção foi bem clara: ele concentrava o cosmos naquelas espadas e as fortalecia com o próprio poder. Não era uma má técnica. Antes que ele me cortasse, caí no gelo e dei-lhe uma rasteira, aproveitando que meu oponente não estava acostumado àquela superfície. Axton caiu e fincou uma das espadas na neve para levantar-se.
“Isso é sujeira… Meu ponto fraco está muito evidente.”
“E eu com isso? O problema é seu. Resolva-o sozinho.”
Axton então olhou para a espada fincada no chão e sorriu.
“E acho que sei como…”
Ele estava pensando em usar as espadas para equilibrar-se? Aquilo seria inútil. Para provar o quanto estava errado, afastei-me um pouco e desafiei-o.
“Duvido que consiga. Venha me pegar.”
“Eu vou e vou mesmo!”
Axton correu desajeitadamente sobre o gelo, meio patinando, meio escorregando. No trecho final, no entanto, segurou as espadas de um jeito diferente, voltando as lâminas para baixo feito hastes de esqui. Fincou-as no chão e controlou o equilíbrio no gelo com elas. Contudo, agora estava vulnerável.
“Idiota! Abriu a defesa!”
Preparei-me para atacar. Segurando as espadas daquele jeito, ele não conseguiria dar um bom golpe. Esperei que viesse e imaginei um bom soco em seu rosto. Axton segurou o meu braço esquerdo quando passou do lado, e eu só precisava usar o outro braço para atacá-lo. Virei o corpo para socá-lo, mas percebi que a outra espada estava praticamente no meu pescoço. Usando o peso do meu corpo, Axton contornara por trás e rapidamente encostara a lâmina no meu pescoço.
“Por essa não esperava, hein? Posso ver pelo assombro em seu rosto.”
Fiquei congelado por dentro, com medo de que Axton de fato me matasse. Mas ele me soltou logo em seguida, rindo.
“Meu pai dizia: quando não souber o que fazer, improvise com o que tem. Era uma espécie de ditado pessoal, que minha mãe odiava.”
“Mas as espadas… Você estava segurando ao contrário…”
“Eu sei. Mas é possível usá-las assim também.”
Aquele sujeito tinha habilidade e instinto de um assassino. Sua prioridade na luta era chegar aos pontos vitais dos inimigos sem ser notado, como comprovava o seu cosmos, sempre discreto e imperceptível, e suas habilidades, quase mecânicas, mas notáveis.
Axton reassumiu postura de luta, mas eu estava com receio agora. Precisei falar.
“Axton… Quantas pessoas você matou até hoje?”
“Como…?”
“Pelos seus movimentos… Você está acostumado a matar, não está? Não posso permitir que um assassino fique na aldeia. Responda, Axton.”
Por sua expressão, eu acertara. Para a minha surpresa, ele não pensou em defender-se. Soltou as espadas e respondeu:
“Se quer que eu parta, partirei. Não vou negar o que disse. Já perdi a conta de quantas pessoas matei, Hyoga, e muitas delas eram inocentes. Eu digo que só me resta apenas uma pessoa para matar, por isso pode ficar tranqüilo. Não vou prejudicar a sua aldeia. Mas que é verdade, é. Eu já matei tantas pessoas que tenho o costume de matar. Um costume que não consigo perder quando luto.”
De repente, perdi a vontade de lutar. Se continuasse, acabaria matando Axton de verdade.
“Eu devia saber sobre isso.”
“Eu sei disso. Mas você não me permitiria ficar se eu contasse. Athena me purificou, mas… Eu ainda sinto que estou banhado de sangue…”
Eu jamais tinha passado por um ritual de purificação. Mesmo sendo um cavaleiro de Athena, não acreditava nisso.
“É porque você ainda está banhado de sangue, idiota. Nenhum ritual traz de volta as vidas das pessoas que foram mortas por você. Se acha que foi perdoado pelo mundo todo… Está enganado.”
Ele sentou-se no gelo com as pernas cruzadas, sem mais vontade de lutar.
“É um fardo pesado… Ter de carregar a morte de tantas pessoas… Eu não sei como cavaleiros de Athena vivem com a consciência limpa, pois também se banham de sangue no campo de batalha. A única maneira de viver que me resta é ajudando os outros, mas sem sentir a carga ficar mais leve. Ela é sempre, sempre pesada. Eu entendo a sua raiva. Vou pegar as minhas coisas e ir embora.”
Bem que eu desejava a partida dele. Mas a ordem de Athena fora clara: eu devia recebê-lo bem. Provavelmente ela queria libertar aquele rapaz do peso do crime, talvez tivesse planos para ele. Suspirei.
“Esqueça. Eu não tenho tempo para levá-lo para a vila agora. Tenho outras coisas a fazer. Você disse que queria trabalhar. Trabalhe para mim.”
Não sabia que tipo de trabalho daria a ele, porque não havia nenhum. Mas não podia permitir que ele fosse embora.
“Não está com medo de que eu assassine as pessoas da sua preciosa aldeia?”
“Antes de fazer isso, você precisa me derrotar antes, o que é impossível. Você por acaso quer me matar? Podemos travar uma batalha de verdade, aqui e agora, Axton.”
Compreendendo que eu não queria que partisse, Axton levantou-se, guardou as espadas e entregou-as a mim.
“Eu já estou cansado de matar pessoas. Pegue as minhas espadas. O trabalho que tiver, eu aceito.”
“Depois de treinar, preciso passar pela planície… E então vou recarregar minha pilha de lenha.”
“Tudo bem, eu espero. Pode fazer suas coisas. Eu só irei acompanhá-lo.”
Será que um guerreiro tão habilidoso e poderoso precisaria conquistar a minha confiança para atacar alguém? Se ele quisesse, podia matar todos os aldeões de Kohotek sem que eu sequer notasse. Afinal, o que ele pretendia? Perdido em indagações, fui até a planície congelada para prestar honras a minha mãe. Não podia rezar, apenas falar com ela através do coração. Era a única coisa que me restava.
Por baixo daquela casca de gelo, não se via mais o navio, não se tinha mais notícias do acidente. Ele já tinha sido apagado da memória dos outros. Apenas em mim continuava vivo. Ajoelhei-me no chão, pensei nela e lhe dirigi íntimas palavras. Por todo o tempo, Axton permaneceu em silêncio. Falou quando eu me levantei, depois de terminar.
“Para quem estava rezando?”
Não faria mal contar para ele, faria? Afinal, não estávamos lutando. Fora do campo de batalha, eu podia demonstrar sentimentos pessoais.
“Não exatamente rezando, porque cavaleiro não reza. Estava conversando com a minha mãe.”
“Sua mãe? Aqui?”
“Não é possível enxergar daqui, mas… Neste ponto do mar, há um navio naufragado. Ninguém mais sabe que ele se encontra aqui, além de mim. Quando eu era um garoto, minha mãe me colocou num navio para o Japão. Mas nós nunca conseguimos sair da praia siberiana. Ela foi a única pessoa que não conseguiu se salvar… Por minha culpa.”
Axton então olhou e olhou para o gelo, na tentativa de localizar o navio.
“Não posso vê-lo. Como sabe que o navio naufragado está aí?”
“Antigamente, eu mergulhava todos os dias para ir visitá-la. Nadava até o navio, levava uma flor, falava com ela. O navio afundou mais, e ficou oculto pelo mar. Mas eu sei que está aqui.”
“Então… Você deixou de visitá-la porque ele ficou muito fundo?”
“Não. Eu tenho força suficiente para nadar até o fundo e visitá-la, mas… Eu jurei que nunca mais voltaria a mergulhar.”
Axton cruzou os braços e olhou de novo para a camada de gelo.
“Sei… Você resolveu enterrar o seu passado, por mais importante que fosse… É preciso muita força de vontade para fazer isso, principalmente depois de virar um hábito. Mas… Porque diz que ela morreu por sua culpa?”
“Ela ficou presa no navio… Quando voltou para me buscar, sendo que eu já estava salvo. Ficou me procurando… E não pôde se salvar. Foi minha culpa.”
Axton continuou olhando para o gelo, com uma evidente curiosidade. Mas era uma curiosidade de um turista olhando para um monumento. Ou tentando encontrar o monumento.
“Mas… Eu tenho certeza de que ela não se arrependeu disso.”
Axton sorriu, olhou para mim e disse:
“Ela deve ter ficado aliviada por não encontrá-lo. Não brava, nem arrependida. Apenas… aliviada e triste pela separação. Eu sei disso.”
“Como pode saber o que minha mãe sentiu naquela hora? Pessoas diferentes têm reações diferentes.”
“É… que eu não imagino uma pessoa tão amada agir diferente. E minha mãe também. Ela era igualzinha em relação ao meu pai. Ele podia cometer os piores erros. Mas quando ele voltava das missões, isso pouco importava. Pelo menos nos dois primeiros dias”, acrescentou, rindo.
“Não acho que ela me culpe, embora eu seja culpado. Ela me amava demais para me perdoar. Mas é isso que dói, sabe? O fato de ela não poder ficar com raiva e descontá-la em mim. Queria que ela me culpasse, porque eu mereço ser culpado.”
“Não diga isso. Em vez de culpar-se, faça o bem para outra pessoa. Assim poderá se redimir da culpa. É o que eu faço. Talvez seja por isso que eu tenha demorado a chegar aqui. Mas eu me sinto bem quando as pessoas são beneficiadas com minha ajuda. Você não se sente bem quando as pessoas da aldeia são ajudadas por você?”
“É claro… Mas pensei que você fosse só um assassino. O que o demorou para chegar aqui?”
“Algumas coisas… Trabalhei para algumas boas pessoas, ajudei outras, sofri um acidente de ônibus e ajudei a curar as vítimas.”
“Um acidente? Isso deve ter levado tempo mesmo. Mas o que você fez para ajudar?”
“Hum…” Axton hesitou um pouco, mas enfim respondeu:
“Para você, acho que eu posso contar. Eu ajudei um curandeiro, chamado Lukian. Ele me disse que o conhecia.”
Seria a Sibéria tão pequena para Axton encontrar Lukian? Fiquei surpreso, mais do que surpreso. Não esperava ouvir o nome do cavaleiro curandeiro.
“Lukian… E como ele está?”
“Ah, ele está bem. Meio estressado e exausto com tantos pacientes, mas está bem. Só precisa de umas férias.”
“É bom que ele trabalhe. Quando o assunto é qualquer coisa além de curar, ele é um desleixado. Como é um desertado do Santuário, não precisa fazer missões.”
“Por falar nisso, seu dever deveria ser matá-lo, não?”
“Não vale à pena. Ele não está fazendo nada de errado, entende? É um cavaleiro que segue o código dos cavaleiros. Só que desistiu de lutar. Talvez um dia ele perca a armadura, mas até isso é prejudicial às pessoas que cura. Deixe-o, deixe-o… Assim é melhor para ele e para os pacientes dele, não acha? Além disso, eu sou grato a ele. Não me importaria ir contra o próprio Santuário para impedir que ele fosse executado. Lukian já pagou o preço de ter desertado o Santuário, há muito tempo.”
“Você tem razão”, respondeu Axton, sorrindo. Ele concordava comigo?
“Mesmo sendo filho de um cavaleiro, acha que isso é certo?”
“Bem, eu não sou um cavaleiro, só um humano comum. Mas se eu fosse o mestre do Santuário, apontaria o dedo para ele, muito bravo, e diria: cavaleiro Lukian! Por ter desertado o Santuário, terei de puni-lo! Deverá curar um milhão de pessoas!”
“Um milhão é bastante.”
“Mas provavelmente ele curou muito mais do que isso.”
Axton era bastante simpático quando estava de bom humor. Mas ainda me restava uma pergunta para confiar nele.
“Axton… Mudando de assunto, eu preciso perguntar para você. O que veio fazer em Kohotek? De verdade. Não viria até esta aldeia apenas para morar e trabalhar, certo?”
Eu tinha deixado as espadas no chão. Axton pegou uma delas, desembainhou-a e apreciou a longa e reluzente lâmina. Seu semblante tornou-se sério, tanto que tive receio. Parecia um verdadeiro assassino naquele momento.
“Eu não queria contar, porque é apenas um problema pessoal, Hyoga. Mas eu sei que é injusto não revelar, porque esta aldeia é importante para você. É injusto, porque eu posso acabar derramando sangue nesta terra, na pior das hipóteses.”
Aquilo realmente me deixava receoso. Porque ele não podia falar de um jeito menos temeroso?
“Do que está falando? Quer matar alguém daqui?”
“Não, é claro que não”, sorriu Axton, brevemente. “Mas não quero me desviar da verdade. Eu disse a você que só me resta uma pessoa para matar, não disse? Bem, existe uma pequena chance de ela aparecer na sua aldeia. É por isso que eu vim. Se eu cruzar com ela nas ruas da aldeia, mato-a no mesmo segundo.”
“Mas por que isso?”
“A pessoa que estou procurando deseja matar cinco cavaleiros de Athena: Seiya, Shun, Shiryu, Ikki e… você, Hyoga. Athena já deve tê-lo alertado disso.”
Sim, ela tinha me dito algo do tipo, mas nada tinha acontecido até Axton chegar.
“Sei…”
“Essa pessoa que deseja a sua morte… É a mesma pessoa que matou a minha irmã mais nova.”
Quando ele me disse aquilo, senti que aquele relato duraria boas horas. Seria melhor se fosse num lugar mais quente. Entreguei a outra espada para ele.
“Vamos voltar para casa. Lá você pode me contar essa história com calma… perto da lareira.”
“Está bem”, sorriu ele. “Tem certeza de que posso ficar com elas?”
“Não fará muita diferença tê-las ou não com um cosmos como o seu.”
Não era verdade, e eu sabia daquilo. Axton era muito mais forte e perigoso com as espadas. Mas eu queria acreditar nele. Pelo menos queria acreditar que não precisaria lutar com ele de novo.
Passávamos pela rua principal da aldeia em direção à minha cabana. Illias vinha do outro lado, levando o pequeno Viktor, filho de Sergei.
“Olá, Illias.”
“Oi, Hyoga. Estou levando Viktor de volta para casa agora. E você, está indo trabalhar?”
“Mais ou menos.”
“Está certo. Vejo você mais tarde. Até mais.”
“Até.”
Depois do curto diálogo, voltamos a andar. Falávamos de como a aldeia ficava devagar no inverno, mas Axton preferiu mudar o assunto.
“Quem é aquele morador?”
“Illias. Ele é primo do Sergei. Ele já morava aqui antes mesmo de eu vir treinar.”
“Hum… Ele chama a atenção, porque não parece russo.”
“Ah, sim. É que eles são meio-irmãos.”
Axton riu:
“Que mistura deve ser, hein? Eu sou inglês biologicamente, mas fui criado numa vila pequena, no sul da África, no terreno de meu pai. Nunca fui à Inglaterra. Meu pai era o cavaleiro responsável da região, por isso não saíamos de lá. É engraçado como nessas regiões você não vê muita gente diferente de outros países.”
“Mas quem iria querer vir para cá? Além de você, é claro. O que atrai são as cidades, a tecnologia, os empregos. Sua vila devia ser como aqui: pacata e semimorta.”
“Pacata, sim; semimorta não, por favor. Minha vila tinha tanta vida quanto esta. Não é pouco. Todos trabalham duro, sabe? Eu mesmo trabalhei muito quando era moleque.”
“Você entendeu o que eu quis dizer.”
“Mas semimorto, não. Olha, você devia valorizar mais a sua aldeia. Você, que se preocupa tanto com as pessoas daqui… tenha orgulho de sua gente. Pode ser que eu não carregue boas lembranças do lugar onde nasci, mas ele ocupa um lugar especial aqui dentro, e eu sou capaz de dar a minha vida por eles. Acho bonito você protegê-los com tanto cuidado.”
Sentia sinceridade em suas palavras. Chegamos em casa, joguei lenha, acendi a lareira, comecei a preparar um chá de cevada e peguei um pão já assado, que era tudo o que tinha no momento para um lanche à tarde. Axton sentou-se à mesa e esperou até que eu terminasse. Ele parecia impaciente para contar-me o resto da história. Servi o chá com o pão, e ele pouco se interessou. Queria mesmo era contar o resto de sua história.
“Essa história começou já há algum tempo. Nossos pais já tinham morrido, eu morava sozinho com minha irmã. Como o meu pai não protegia mais a nossa vila, eu assumi essa sua tarefa. Eu vivia para proteger os moradores da vila, exatamente igual a você. Quando entrava um estranho em nosso meio, eu já ficava de guarda. Era assim, igual a você. Eu me preocupava muito com eles.”
“E o que houve com a sua irmã?”
“Minha irmã sempre ficava em casa quando eu saía para resolver os problemas. Ela era mais nova, e eu não podia envolvê-la em possíveis brigas. Então eu era obrigado a deixá-la esperando. Um dia, dois moradores me procuraram, pedindo ajuda num problema com um assaltante. Eu saí de casa, como de costume, deixei minha irmã esperando e fui com um deles. Quando cheguei à vila, recuperei o objeto furtado, procurei pelo ladrão e nada. E… quando eu voltei para casa, não encontrei a minha irmã.”
Axton suspirou. Olhou para o chá de cevada, pegou a caneca para tomar um gole, mas parou antes de pôr os lábios na borda. Devolveu a xícara à mesa, passou a mão nervosamente nos cabelos, jogando-os para trás e só então continuou.
“Eu esperei por ela. Esperei durante toda a tarde, passando para a noite, até a madrugada. Acho que foi a espera mais dolorosa pela qual passei. Fiquei pensando logo nas piores coisas. Quando não agüentei mais ficar parado, fui procurá-la. Não dormi, não comi, nem sequer bebi. Eu achava que beber água era perda de tempo, porque precisava encontrá-la. Fiquei vagando pela vila e os arredores por mais dois dias, sem fazer pausas. Eu saí de casa e fui cada vez mais longe. Fiquei mais de um mês procurando por ela. E quando… quando eu voltei para casa, morto de cansaço, encontrei uma carta passada por baixo da porta. Era o seqüestrador, encomendando um assassinato. Se eu não obedecesse, minha irmã morreria.”
Seria esse o motivo de ter habilidade de assassino? Axton fora forçado a ter aquele tipo de vida?
“Então você aceitou?”
“Não foi uma decisão fácil. De início, eu não fiz nada, de tão indeciso. Eu não sabia o que fazer. Mas então eles cortaram o dedo polegar de minha irmã e o enviaram para mim, em sinal de advertência. Eu até pensei em me matar… Mas aí eu tinha certeza: matariam a minha irmã. Então eu decidi ser um idiota egoísta. Fui até a casa do homem que eu teria de matar. Ele era o melhor amigo do meu pai, um ferreiro. Era um homem de grande caráter, um homem que jamais deveria ter morrido. Expliquei a situação para ele, chorei diante dele… e disse que não sabia o que fazer.”
“Como pode fazer isso para alguém que vai matar?”
“Eu não podia atacá-lo sem mais nem menos. Ele era um amigo próximo de meu pai, por isso sempre o víamos. Nós sempre tivemos muito carinho por ele. E ele gostava da gente, era como um tio para nós. Eu jamais esquecerei… o que ele fez por mim… por nós…”
Uma lágrima ameaçou cair, mas Axton enxugou-a rapidamente. Fungou e desviou o olhar. Não estava fingindo, estava? Se estivesse, seria muito bom ator.
“Desculpe…”, disse e parou para acalmar-se. “É muito raro eu contar isso para alguém. Mas o fato é que ele foi a minha primeira vítima. Depois de contar-lhe tudo, ele pôs a mão sobre a minha cabeça e sorriu, muito tranqüilo. ‘Não se preocupe’, disse para mim, ‘não vou permitir que sua irmã morra’. Então ele me levou para a sua oficina e pediu que eu o ajudasse. Nós trabalhamos dia e noite para confeccionar as espadas. Quero dizer: eu apenas auxiliei, ele é o artesão. Ele que fez lâminas tão perfeitas. No final, entregou-as para mim… e pediu que eu as testasse… em seu pescoço!”
Aquilo me surpreendeu tanto quanto devia ter surpreendido Axton no passado.
“Ele… entregou a própria vida por causa da sua irmã?”
“Como eu disse, ele gostava de nós. Quando o meu pai ficava fora, ele era quem preenchia o vácuo. Depois de eu ter vagado por tanto tempo, sem me preocupar comigo mesmo, fui parar em sua casa, mas mal podia me manter de pé. Nem parecia que eu tinha ido para matá-lo. Ele me acolheu e cuidou de mim como um pai. E depois ofereceu a própria vida. Ele me disse que o espírito dele continuaria vivo nas espadas. E que eu devia usá-las para matar todas as pessoas que o seqüestrador pedisse… e depois matasse o próprio seqüestrador com elas. Assim, a culpa seria dele e não minha. Mas é claro que eu sei que a culpa é minha. Ele foi apenas uma vítima… a primeira.”
Como responder àquilo? Nenhuma resposta me veio à mente. Axton sorriu, mas estava chorando com o passado desenterrado.
“Eu devia ter recusado. Eu devia ter recusado… Mas era muito burro para entender naquela época. Estava desesperado para salvar a minha irmã. Eu aceitei suas palavras como verdadeiras e matei muita gente. Sou mesmo um idiota. Se o Shun não tivesse aberto os meus olhos…”
“Shun? Você o conhece?”
“Ah, sim, ele é a continuação do meu relato. Eu matei muitas pessoas, sem hesitar, porque tinha medo de receber outro dedo. Matei e matei, derramei litros de sangue. Até que me chegou uma carta, pedindo que eu matasse o cavaleiro Shun de Andrômeda. Eu estava muito amargo nessa época. Mas o Shun, mesmo com o meu aviso de que o mataria, convidou-me para jantar em sua casa! Eu não pude acreditar. Ele não parecia ser o tipo de pessoa que fingia ser amigo. Então, quando contei o meu problema, ele me fez perceber que estava errado. E com a sua ajuda, pude matar um dos seqüestradores.”
“Então você recebeu a ajuda de Shun. O fato de você ter vindo me procurar tem alguma relação com ele?”
“Sim, existe. Mas na hora eu não tinha percebido. Eu só soube de uma coisa do seqüestrador: minha irmã tinha morrido numa queda de água de mais de vinte metros. Desisti de matar pessoas e passei a procurar quedas de água, tal como o sujeito descrevera. Não sabia se era verdade, mas era o que tinha. Fui parar numa região remota da China, chamada Rozan.”
Imediatamente, percebi a ligação.
“É o lar do Shiryu. Você também o encontrou?”
“É claro. E não foi só o seu amigo Shiryu quem eu encontrei. No fundo de uma montanha, no meio do mato… encontrei o cadáver de minha irmã.”
“Então… sua busca terminou lá.”
“Minha busca pela minha irmã. Depois de encontrá-la, entrei numa nova busca: a de procurar o seqüestrador. Antes, passei no Santuário para avisar a deusa do perigo em que vocês, seus cavaleiros, estavam. Isso foi há dois meses. Então vim para cá, por dedução. O irmão mais velho de Shun não tem residência fixa, por isso é difícil localizá-lo. Seiya, o cavaleiro de Pégaso, está morando no Santuário, que é uma impenetrável fortaleza. Restava você na lista. Vim para cá, na esperança de encontrar o assassino de minha irmã. Quero destruí-lo com estas espadas.”
Peguei uma das espadas e tirei-a da bainha para dar uma olhada. Procurei nela alguma assinatura, mas não vi nenhuma.
“O amigo do seu pai não assinava a própria obra?”
“Assinar, assinava. Quero dizer, desenhava uma letra, um ‘a’ maiúsculo.”
“Um ‘a’? Por que isso?”
“De ‘Athena’. Toda arma que ele confeccionava era para uso do Santuário, nos treinos dos soldados. Meu pai costumava levá-las para lá. Mas essa aí não tem assinatura nenhuma. Afinal, seria uma vergonha colocar a inicial da deusa para uma arma assassina de vingança. Mas ela é a obra-prima de meu ‘tio’. Sua lâmina mais bem acabada.”
“E depois de matar esse seqüestrador… O que fará com as espadas?”
“Meu ‘tio’ me pediu para destruí-la, mas… não se apaga um passado assim. Não posso me livrar do passado como quem joga fora o lixo semanal. Eu quero morrer com elas. Eu gostaria de morrer por uma boa causa, fazer alguma boa ação com essas espadas, antes de receber o meu castigo de Hades.”
Era uma história de fato estranha, na qual era difícil acreditar. Não sei se era excesso de sentimentalismo meu, mas eu quis acreditar em sua história. Devolvi-lhe a espada.
“E você descobriu algo desde que veio, Axton?”
“Infelizmente… sim”, respondeu ele, enfim pegando o chá para tomar um gole. Bebeu um pouco e comeu um pedaço do pão, antes de continuar. “Descobri o assassino, mas você não me permitirá matá-lo.”
“Como assim? Quem é o assassino?”
“É Illias, aquele sujeito que vimos na rua. É irônico, não? Eu disse que, se o encontrasse na rua, iria cortá-lo ao meio, não é? Pois é: eu o encontrei, mas não o matei. Não queria traumatizar o garoto e sair matando um morador da aldeia na sua frente assim, sem explicação. Confesso que não sei o que fazer.”
Por um momento, aquilo me pareceu um completo absurdo.
“Tem certeza de que é Illias? Digo, ele mora aqui há anos.”
“Eu nunca tive tanta certeza. Jamais esqueceria os rostos daqueles malditos… Mas não posso matá-lo enquanto ele estiver sob sua proteção. A vida dele está em suas mãos, Hyoga. Você decide se eu posso ou não matá-lo. Apenas uma palavra, e minha vingança chegará ao fim.”
—————————————————————–
Por muito tempo, fiquei pensando naquela história, decidindo o que fazer. Axton ficou esperando à mesa, ainda sem terminar o pão e o chá, já frio. Eu queria acreditar no relato, só não conseguia conceber a idéia de que Illias era o assassino da irmã de Axton. Ele era uma figura bastante singular, admitia, mas não o achava capaz de matar alguém.
Contudo, Illias era um homem de vida atribulada. Além de mim, era o que mais viajava de Kohotek. Suas ausências nunca eram explicadas, e duravam mais de um mês. Além disso, tinha sido adotado quando criança, por isso não era exatamente alguém da aldeia desde o nascimento, como os demais. Ninguém sabia de seu passado. Talvez fosse o momento de descobrir sobre ele.
Depois de contada, a história também era minha. E como líder de Kohotek, não podia ficar parado e não fazer nada. Pensei em como fazer, e só chegava a uma conclusão: precisava confrontar Axton e Illias. Se a história de Axton fosse verdadeira, ele, como filho de cavaleiro, de acordo com as leis do Santuário, tinha o direito de matá-lo dentro dos nossos limites. Kohotek pertencia ao Santuário. Ele não teria direito se fosse o assassinato do pai por punição do Santuário, mas o de um ente familiar por alguém de fora do Santuário era punível com a morte, com vingança concedida a um membro da família. Voltei à cozinha.
“Promete que só o matará depois de receber a minha permissão?”
Como resposta, Axton jogou as espadas para mim.
“Eu jurei que só o mataria com essas espadas. Enquanto você estiver com elas, nada farei.”
Eu podia não acreditar naquela história da espada. Se Axton quisesse, podia matá-lo com um único soco. Mas eu queria acreditar. E decidi acreditar.
“Então vamos lá bater um papo com Illias. Se provarmos que ele seqüestrou sua irmã, será a última conversa em vida.”
“Não vai me impedir?”
“Você tem o direito de matá-lo, por causa de seu pai, que foi cavaleiro. Eu sigo as leis do Santuário, e elas não proíbem a sua vingança. Eu só preciso de uma prova. Preciso saber se foi Illias.”
“Tente isso.”
Axton foi até a mala e tirou de dentro um bolo de papéis. Olhei para cada uma delas. Todas eram ameaças, escritas com recortes de jornais e revistas. Entre elas, havia o pedido para matar Shun, com a localização exata de sua casa na ilha de Andrômeda.
“Esses papéis precisam ter saído de algum lugar. Sei que ele deve ter jogado fora, mas… Não custa tentarmos.”
“Pode ser”, respondi, relendo a carta encomendando a morte de Shun. Ela parecia um pouco diferente das outras.
Levei Axton, as cartas e as espadas para a casa de Illias. Ele voltava depois de levar Viktor para a casa de Sergei. Paramos na porta, e ele sorriu para nós. Não sei se era apenas impressão, mas ele parecia mais nervoso do que o normal.
“Ei, Hyoga. Nos encontramos mais uma vez hoje. Em que posso ajudar?”
“Illias, preciso conversar com você.”
“Claro, claro… Não quer entrar? Lá dentro é mais quente.”
Eu não podia deixar que ele escapasse, se fosse o culpado. Teria de confiar em Axton. Sim, eu confiava mais em Axton do que em Illias.
“Axton, faça um favor para mim. Mantenha-o distraído aqui fora enquanto eu dou uma vasculhada na casa dele. Não faça nada até eu voltar, está bem?”
“Você é que manda”, respondeu ele, sem hesitar.
“Mas o que significa isso?”, perguntou Illias, revoltado, “não pode entrar assim em casa, me ameaçando!”
“Eu posso, porque sou o responsável por esta aldeia. Se estiver enganado, prometo que me desculparei depois.”
Entrei na casa com as cartas em mãos. Revirei todos os armários, móveis, cantos estranhos, papéis, um por um. Infelizmente não encontrei nada. Pela janela, ainda via Axton manter Illias em frente de casa. Sentei na cama dele, olhando para o quarto, desolado. Se era verdade ou mentira, talvez jamais soubesse. Suspirei.
Olhei para o chão de madeira. O piso era tão mal conservado… cheio de frestas.
“Illias precisa cuidar melhor disso, porque cria cupins.”
Entraria cupins, baratas, formigas, todos os tipos de insetos… Entraria pó, sujeira, fiapos de madeira… papéis.
Tive um estalo. Levantei, ajoelhei-me de quatro no chão e tentei ver por aquelas frestas. Estava muito escuro. Então fiz algo impensável. Enfiei os dedos entre as frestas de puxei com força, arrancando metade de uma tábua. Insetos correram desesperados pelo chão, tentando fugir. Sob o piso, havia uma caixa de madeira. E para a minha surpresa, não estava tão coberta de pó assim. Quebrei mais madeira e tirei a caixa do chão. Abri a tampa e olhei estarrecido: eram pilhas de jornais e revistas importados, com buracos em algumas letras.
Com uma nova energia percorrendo o corpo, de uma raiva recém-despertada, peguei a carta que encomendava a morte de Shun e comparei com a última edição recortada. E encontrei encaixes perfeitos para cada letra.
Sim, Axton teria a sua vingança.
Saí da casa bufando de raiva e encontrei Illias no chão, deitado de bruços com os braços imobilizados nas costas por Axton.
“Ele tentou fugir correndo quando ouvimos um barulho de dentro da casa, Hyoga.”
“É claro que tentou. Porque ele sabia que eu encontraria isto aqui.”
Passei o jornal para Axton, que verificou os buracos para ter certeza de que fora Illias, embora já tivesse a certeza. Assumi o controle sobre o desgraçado: forcei-o a levantar-se e prensei-o contra a parede pelo pescoço.
“Você tem menos de um minuto para começar a falar, ou terá uma morte cem vezes mais demorada e dolorosa, Illias. Vamos!”
“Hyoga… Mas… O que houve com você, que…”
Que impertinente! Joguei-o de novo na parede, fiz questão que batesse a nuca.
“Não brinque comigo!! Você tramou contra o Shun! Por quê?!”
Como ele não respondia, dei mais um golpe bem merecido no desgraçado. Seria bom que doesse!
“Fale!!”
“Pare!! Foi por causa do Santuário! Por causa do mestre, do grande mestre que vocês mataram, do único mestre que reconheço no Santuário!”
Então ele tinha relações com o Santuário. Por que nunca tinha percebido antes?
“Depois de tudo o que houve, ainda diz que é leal ao antigo mestre do Santuário?”
“Ele era um homem de ambições verdadeiras! Vocês, cavaleiros de bronze e a deusa… O que fizeram desde que assumiram? Nada! Vocês mataram o mestre, tiraram dele o poder, e desde então só têm lutado em guerras estúpidas contra os grandes deuses! Nós não lutamos contra os deuses! Nós servimos a eles! Todos vocês deveriam morrer, tal como os cavaleiros de ouro que se revoltaram contra o mestre! Assassinos!”
Tive tanto nojo de suas palavras que não mais quis vê-lo vivo! Atirei-o ao chão, ao mesmo tempo em que jogava as espadas para Axton.
“Imbecil! Você não estaria vivo se esses cavaleiros de ouro não tivessem sacrificado as vidas! Você tem a sua vingança, Axton, faça!”
Axton pegou as espadas. Uma delas trespassou na perna de Illias e fincou-se no chão, prendendo-o. Com a outra espada, preparou-se para dar o golpe de misericórdia. Contudo, hesitou. Não sabia se era devido à minha fúria, mas ele parou a meio caminho do golpe. Notei que os moradores tinham se aglomerado em volta, assustados com o meu surto. Para eles, tudo era um mistério. Mas aquele traidor enojava-me insultando a deusa e os cavaleiros de Athena! Nós vínhamos lutando para que pessoas como ele não morressem!
“Você… Conte-me… como a minha irmã morreu?”
“Ela escorregou! Eu sou jurado do Santuário, por isso não minto! Nós estávamos visitando, estudando Rozan! Ela escorregou! Não pretendíamos matá-la!”
A mão tremeu, ele continuou hesitando. Como eu era o líder da aldeia, ninguém podia intervir em minhas ações, felizmente. Mas eu sabia que muitos ali reprovavam a minha raiva.
Axton abaixou a espada e jogou-a no chão, fora do alcance de Illias.
“Não posso.”
“Está hesitando com um verme como esse?”
“Não vou negar que seja um verme, um maldito verme que merece a morte. Mas algo não está certo.”
Eu tinha tanta raiva que não compreendia. Aproximei-me de Axton para incitá-lo, mas parei quando notei que ele tinha trilhos de lágrimas no rosto.
“Mas eu sou um verme muito pior. Não consegui proteger a minha irmã de um sujeito tão desprezível. Isso só me torna mais desprezível, Hyoga. Não posso acreditar que obedeci a um monstro como esse. Ambições do Santuário? Que tipo de ambições? A única ambição que os cavaleiros devem ter não é a de ajudar os outros? Não foram os cavaleiros de ouro verdadeiros heróis que morreram nas últimas batalhas contra os deuses? Athena me contou deles com tanto carinho. Eu me sinto envergonhado por ter dado ouvidos a ele. Que desprezível eu sou. Não posso matá-lo, Hyoga.”
Devia ser terrível ver a verdade concreta, bem ali, na sua frente. Axton certamente tinha perdido as forças para terminar a sua vingança. Mas eu não.
Peguei a espada. Foi um giro rápido, na goela. Era uma boa lâmina.
“Hyoga! O que está fazendo?! É o Illias”, gritou um dos moradores. Mas eu não me importava. Sentia nojo dele, muito, muito nojo.
“Pronto, Axton”, disse, olhando para a cabeça decepada. “Sua irmã está vingada.”
Até mesmo Axton me olhava estarrecido.
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Depois de um longo período de reflexão, percebi que tinha sido levado pelos sentimentos pessoais, mais uma vez. Pensar naquelas injúrias e na encomenda do assassinato de Shun fazia o meu sangue ferver. Mas um sujeito como aquele receberia a morte como punição, mesmo que eu não o matasse. Talvez tivesse sido melhor assim. Receberia uma punição por usar uma arma contra alguém desarmado, tinha certeza. Mas nem me importava.
Axton arrumava as coisas para partir ao Santuário. E eu também partiria, para receber a minha punição. Mesmo sabendo que eu cometera um crime ao empunhar a espada, não estava arrependido. Havia naquela espada todo o desejo de vingança de Axton. Desejo muito justo, a meu ver.
Saí com a mala de viagens, vi Axton sentado no canto da sala, também preparado para partir. Estava com o olhar perdido na parede.
“Eu estou e não estou arrependido, ao mesmo tempo. Acredita?”, declarou ele.
“Fale com a deusa sobre isso quando chegar ao Santuário.”
“Ela pode ajudar?”
“Não sei, só sei que eu não posso. Não imaginei que ficaria tão furioso por ver um sujeito escrever uma encomenda de assassinato de um amigo como o Shun. Perdi a calma. Desculpe.”
“Bem, não fiquei bravo. Só assustado. Você podia matá-lo?”
“Sim, eu podia. Qualquer cavaleiro pode vingar a morte de um familiar de um colega do Santuário. É uma questão de manter a honra do companheiro. Só não podia tê-lo feito com a espada.”
Axton desembainhou a espada, mais ou menos limpa do sangue.
“Acho que agora ele está em paz. Ele também amava a minha irmã… Você se acalmou depois de matá-lo… Acho que só eu é que acabei sem paz alguma…”
“Paz? Do que está falando? Já viu cavaleiro em ‘paz’? Isso não existe, Axton, nunca existirá, nem na morte. Vamos indo?”
“Você pode ir na frente. Vai para o aeroporto mais próximo, não é? Eu não. Eu preciso ir a pé.”
“Você é quem sabe.”
Que figura mais estranha era aquele Axton. Eu me senti meio mal por não ter lhe dado mais tempo para vingar-se. Mas talvez não ter matado tivesse sido melhor para ele. Defender a honra de alguém era uma coisa; vingar-se, outra. Ele defendera a honra da irmã por ter ido tão longe. Mas não a vingara. Sim, isso era uma boa coisa. Talvez fosse uma ajuda.
Mas eu jamais poderia ser ajudado. Eu era incorrigível, inflexível, duro demais. Eu era sentimental demais. Frio demais.
“Hyoga.”
Axton levantou-se e seguiu-me.
“O que foi?”
“Quem vai ficar e proteger a aldeia enquanto estiver fora? Você pensou nisso antes de matar Illias?”
Sim, era verdade. Eu tinha me esquecido daquilo. Mas eu não podia proteger sempre a aldeia. Já tinha aquilo como uma verdade. Eu a protegia com todas as minhas forças… para compensar o tempo em que não podia.
“Ninguém. Não posso protegê-la o tempo todo. Fico com a preocupação na cabeça, mas não há nada que eu possa fazer. Eu vivo em dois mundos, Axton.”
“Quer que eu fique e a proteja enquanto você se ausenta? Eu sei que ela é importante para você.”
Aquele cara, com tantos problemas, ainda queria me ajudar? Ele parecia o Shun ao dizer isso. Se bem que esse seria um favor que faria de bom grado a um amigo. Sim, a um amigo. Sorri.
“Não precisa se incomodar. Se eles precisarem de ajuda, o Santuário mandará algum cavaleiro. Além disso, você já tem problemas demais na cabeça, assim como eu. Vá para o Santuário, converse com a deusa Athena. Eu chegarei primeiro lá, por isso pedirei a ela que o receba bem.
“Não confia em mim?”, respondeu ele, sorrindo.
“Não diga besteiras. Se quiser me matar, me mate. Eu sei que não o fará. Nem estou preocupado de deixar a aldeia primeiro, antes de você. É muito difícil eu confiar nos outros, principalmente quando acabo de conhecê-los. Mas em você eu acredito.”
Sim. Esperava, sinceramente, que ele se achasse. Que não fosse como eu. Saí da vila, sob olhares assustados. Mas quando saí de Kohotek, meu humor mudou. Senti-me otimista. Há quanto tempo não confiara em alguém além dos meus amigos? Pensando nisso, segui em direção ao aeroporto, a três vilas de distância. Não pensava no azar, na amargura, mas num presente relativamente otimista. Era estranho e novo e reconfortante.
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Cena extra ^-^
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Axton: É ele! Foi ele que matou a minha irmã!
Hyoga: Illias? Mas como? Ele sempre morou aqui!
Axton: Eu tenho certeza! Jamais esqueci o rosto dele!
Illias: Não! Não sou nenhum seqüestrador! É o meu irmão gêmeo! O Illion!
Hyoga: O que, só falta dizer que seu irmão é o irmão gêmeo malvado que você abandonou…
Illias: Mas é verdade!
Illion: Huahahahahaha!!
Illias: Estão vendo?! Ele é o malvado!
Saga: Qualquer um pode ver que é o mau.
Kanon: Sinto uma certa simpatia por ele.
Hyoga: Hum… sei não… Ele só me parece um sujeito que ri muito.
Illion: Huahahahahaha!!
Axton: É verdade, ele só fica aí, rindo…
Illias: Mas ele está rindo porque é mau!
Hyoga: E quem disse que todo mundo que ri é mau?
Shun: Hahahaha! Axton… Desodorante Axton! Vou falar para Saori lançar algo assim… Hahahaha!
Hyoga: Está vendo? Nem todo mundo que ri é mau.
Illion: Huahahahahaha!!
Illias: Mas é risada de mau!
Axton: Que nada, é risada de internet.
Hyoga: É, vamos matar o Illias!
Illion: Huahahahahaha!!
Illias: SOCORRO!!!
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