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[Saint Seiya] Axton - Capítulo 2, escrita por Nemui

Capítulos: 1 2 3 4 5 6 7
Autor: Nemui
Fandom: Cavaleiros do Zodíaco 
Gênero: drama
Status: Completa
Classificação: não disponível
Resumo: Axton é uma fanfic constituída de 7 capítulos, cada um narrado por um personagem diferente. Todos eles são sobre um personagem que criei: Axton, um guerreiro andarilho armado com espadas e filho de um cavaleiro, que causa estranhamento por onde passa. Em cada uma das pessoas com quem lida, Axton deixa um pouco do que é, do que pensa e do que acredita.

O caminho desde Rozan até a vila era longo, principalmente quando se levava um carro de madeira como o meu. Todos os fins de semana, descia as montanhas carregado de verduras e legumes que plantava no rico vale e tirava um pouco de dinheiro para Shunrei e eu. Era praticamente um ritual, feito com uma pontualidade de minuto. Como sempre, montava minha barraca na rua principal e vendia tudo, até o entardecer.

Eu estava negociando com uma senhora que a cada dia ousava pechinchar mais barato. Por mais que eu quisesse vender minhas verduras, não podia esquecer que não havia apenas o meu esforço ali, mas também o de Shunrei. Por isso, não cedia facilmente. Ela já discutia comigo há quinze minutos, sem sucesso. Por fim, pegou o dinheiro, irritada. Contudo, antes de entregar-me as moedas, disse:

“Se me der o desconto, dou uma notícia.”

“Eu não quero notícia.”

“Mas você vai querer essa!”

“Não. Desculpe, senhora.”

Outro sujeito, que também estava cansado de esperar sua vez, entrou na conversa:

“Ora, fale de uma vez, mulher! Se o cavaleiro, senhor da justiça, achar que sua notícia vale o desconto, ele o dará!”

“Até parece que ele dará!”

Como eu também estava cansado daquela senhora, respondi:

“Se valer, eu darei. Diga logo a notícia, pois os outros estão esperando para comprar.”

“Pois vai lá! Como vocês sabem, eu tento ganhar minha vida com qualquer coisa possível, até abrigar gente na minha casa! Pois olhem só que homem mais charmoso e bonito apareceu na minha velha barraca! Um rapaz de cabelos compridos, com alguns fios no queixo, um menino! Ele é um estrangeiro forte, com braços bem definidos, musculosos, bom pra casar! Carrega duas espadas na cintura, como aqueles praticantes de artes marciais. Ele está em casa, e está pagando pela cama!”

“E que tipo de notícia é essa? Não vale nem uma pedra!”

Contudo, eu tinha uma opinião contrária à daquele homem. Se havia um homem armado na região, era minha obrigação verificar se ele não representava nenhum perigo aos moradores. Sim, era uma notícia interessante, afinal. Coloquei mais uma acelga na sacola da mulher.

“Está bem. Diga-me, o sujeito ainda está na sua casa?”

“Ah, ele já saiu. As coisas dele ainda estão lá, mas ele saiu com as espadas para conhecer a região.”

“Ele parecia perigoso?”

“Não… Parecia gente boa.”

“Entendi. Obrigado.”

Se esperasse com calma, talvez o tal sujeito aparecesse na vila. Passei o resto da tarde mais atento às pessoas que caminhavam em volta do que nos meus clientes. Infelizmente, não consegui localizar o tal visitante e ainda errei em alguns cálculos de troco. No final da tarde, antes de voltar para casa, passei na casa da mulher para saber sobre o sujeito, mas ela apenas me informou que o estrangeiro ainda não tinha voltado. Sem mais opções, decidi voltar para casa.

O caminho de volta, apesar de carregar menos peso, era mais árduo por causa da subida. Não tinha pressa, por isso fui devagar, prestando atenção nas redondezas. O que um homem armado desejava num local como Rozan? Decidi que tentaria descobrir com calma no dia seguinte.

De volta para o vale de Rozan, parei o carro no nosso pequeno armazém, lavei o rosto no rio e entrei em casa. A essa hora, Shunrei normalmente ficava dentro de casa, preparando o jantar, mas tudo estava escuro e silencioso. Aquele estava sendo um dia atípico. Acendi as lanternas, dentro e fora de casa, antes de ir procurá-la. Não precisei nem de cinco minutos. Shunrei estava parada no caminho de volta da plantação, segurando uma cesta com as verduras do dia. Seu semblante parecia preocupado.

“Shunrei?”

“Ah, Shiryu… Já voltou? Eu ainda não comecei o jantar.”

“Aconteceu alguma coisa?”

“Não, nada. Desculpe, eu vou preparar a comida agora. Acabei me distraindo no meio do caminho e perdi a noção do tempo.”

“Não se preocupe, não tenho pressa. Não quer ajuda?”

“Você acabou de chegar, descanse um pouco”, respondeu ela, sorrindo para mim. Normalmente, ela sempre pedia ajuda para fazer as tarefas mais pesadas, mas agora parecia querer distância de mim. Como nunca questionávamos a ação do outro, não insisti.

“Está bem. Vou meditar um pouco antes da janta. Estarei na cachoeira, se precisar de mim.”

Eu ia me afastar, quando ela segurou-me o braço.

“Ah, Shiryu…”

“O que foi?”

“Eu lembrei agora… Será que você podia dar uma passada na plantação antes de treinar? Hoje eu tive a impressão de ter visto umas manchas esbranquiçadas nas folhas de trigo, mas não tive certeza do que eram.”

Ela não tinha acabado de dizer que era para eu descansar? Eu tinha certeza de que as manchas podiam esperar até amanhã.

“Fungo?”
“Não sei, pode ser… Será que você podia ver para mim?”

Não havia como recusar um pedido de Shunrei. Já bastava eu abandoná-la aos prantos sempre que partia para a guerra.

“Está bem. Mas se for mesmo fungo, não terei muito que fazer hoje.”

“Desculpe… Eu só me lembrei disso agora.”

“Está tudo bem”, respondi. Afastei-me de Shunrei e dirigi-me à plantação. Quanto mais cedo terminasse aquilo, mais cedo poderia treinar.

Olhei para cada planta em busca das tais manchas, mas encontrei apenas dois pequenos brotos com fungos, que logo arranquei. Por que Shunrei se incomodaria com isso? Levara mais de uma hora para procurar aqueles dois brotos. Fiquei aborrecido e tive vontade de desistir do treino. Contudo, treinar era uma necessidade básica diária, como escovar os dentes. Tinha a impressão de que Shunrei não queria que eu treinasse.

Já que precisava subir a trilha para voltar para casa, decidi ir direto à cachoeira. Passei por alguns atalhos no meio do bambuzal, tomando o cuidado com as folhas cortantes, até chegar ao rio da base da cachoeira. Parei, atônito.

Parado na margem do rio, com a água até os joelhos, havia um sujeito desconhecido. As duas espadas penduradas nas costas para não molharem indicava que aquele era o estrangeiro. Aproximei-me sem esconder a minha presença. Se ele era um guerreiro, certamente saberia de mim.

Quando me notou ali, virou-se, sem demonstrar hostilidade.

“Você é o dono destas terras?”

“Digamos que eu seja o responsável.”

“Disseram-me que a entrada é proibida, mas eu precisava vir e conhecer este rio. Será que eu posso circular por aqui?”

Quem era aquele sujeito? Por que alguém desejaria circular pela região de Rozan?

“Desculpe, eu não posso permitir a permanência de ninguém. Pelo menos não de desconhecidos. Quem é você, estrangeiro?”

Seus olhos eram bastante afiados, apesar das palavras educadas. Parecia ser um guerreiro com boa experiência em combate. Ele saiu da água e amarrou as espadas na cintura.

“Desculpe por não me apresentar. O meu nome é Axton. Sou um guerreiro andarilho. Não posso dizer por que, mas estou viajando pelo mundo para adquirir experiência. Tenho especial interesse por esta região, conhecida por Rozan.”

“Sua conversa não me inspira confiança. Para que você deseja visitar Rozan? O que ela tem de especial?”

“Eu ainda não sei, para ser sincero. Mas realmente gostaria de passar um tempo aqui. Por favor, deixe-me ficar. Eu não pretendo ficar por muito tempo, nem tenho a remota intenção de atrapalhá-lo. Só estou aqui para saciar uma vontade estúpida minha.”

O que eu devia fazer com uma resposta tão vaga? Aquele sujeito parecia estar determinado a permanecer em Rozan, mesmo que eu o proibisse.

“Sua resposta é tão vaga que devo recusar, Axton, eu sinto muito. Não posso permitir que fique se não há uma justificativa aceitável. Além disso, como posso confiar num homem que vem armado para Rozan? Este é um local de paz.”

“Sei que pareço suspeito, mas não vim com o objetivo de arranjar problemas. Estas espadas sempre me acompanham aonde quer que eu vá. Elas foram forjadas especialmente para mim, por isso as trouxe. Talvez isto possa fazê-lo mudar de idéia…”

Axton desamarrou as espadas da cintura e entregou-as para mim com as duas mãos, de forma humilde.

“Permita que eu fique. Para provar que não vim atrás de brigas, deixarei minhas espadas com você até ir embora. Pode escondê-las onde quiser, ou usá-las se lhe agradarem. Enquanto elas estiverem com você, não poderei fazer nada ou ir embora. Seu cosmos é mais poderoso do que o meu, por isso você deve saber que eu não sou capaz de roubá-las de você.”

Cosmos? Aquele sujeito conhecia cosmos? Mas eu não sentia um cosmos desenvolvido da parte dele. Provavelmente estava escondendo o próprio poder, apenas para não me assustar ou não me chamar a atenção. Mas se quisesse se passar por uma pessoa sem cosmos desenvolvido, bastaria não falar sobre o próprio poder.

“Como você sabe da existência do cosmos?”

“Meu pai era um cavaleiro de Athena. É por isso que eu sei.”

“Então você é ligado ao Santuário?”

“Não… Pelo menos, não por enquanto. Como pode ver, eu ando armado, e os cavaleiros estão proibidos de usar armas. É só que eu uso as mesmas técnicas de luta, que herdei de meu pai. Mas eu já recebi uma proposta para fazer parte do Santuário. Ainda não a aceitei, mas penso no assunto com seriedade.”

“Você deseja proteger Athena?”

“Não que eu tenha algum interesse direto na deusa. Trata-se de manter o que meu pai deu a vida para proteger. A morte dele não faria sentido se a deusa morresse, não é verdade? Mas ainda não estou pronto para isso. Estou viajando por muitos lugares, atrás de experiência. Vim para cá apenas para aprender.”

Eu sentia que aquele homem escondia muitas verdades por trás daquela explicação, mas também sentia que ele não mentia. Ficaria de olho nele, para garantir a segurança de Shunrei.

“Está bem. Cuidarei de suas espadas até que vá embora. Eu também ficarei de olho em você o tempo todo, por isso não pense em fazer besteira.

“Obrigado por aceitar. Eu prometo que não causarei problemas.”

Olhei para as espadas, que eram muito leves comparada a outras que já tinha visto. Desembainhei uma delas e deparei-me com um lâmina fina, extremamente bem acabada, sem o nome do ferreiro e com pequenos traços de gordura, indicando que já tinham cortado seres vivos.

“É uma espada especial… de fabricação especial, leve e perfeita para matar. Além disso… ela tem pequenos traços de gordura, apesar de estar bem cuidada. Quer dizer que você já matou alguém ou alguma coisa com ela.”

“É uma descrição muito precisa.”

“Já matou pessoas com ela?”

“Já. Não vou negar isso. Já matei muitas pessoas no passado, culpadas e inocentes. Contudo, já não faço mais isso. A última coisa que matei com essa espada foi um cervo que cozinhei há alguns dias.”

“É um desperdício usar uma espada destas para matar um cervo.”

“Apenas aconteceu de eu precisar de uma lâmina rápida e longa.”

Então aquela gordura era de um cervo? Ou de um humano? Esse sujeito era suspeito, não importava sob o ângulo visto. Guardei a espada e desisti do treino, pelo menos até que ele fosse embora. Não podia deixá-lo sozinho em Rozan.

“Vou guardá-las num lugar seguro enquanto estiver por aqui. E não quero que ande sozinho por Rozan. Pelo menos nestas montanhas, eu o acompanharei.”

“Entendi. Então passarei sempre por sua casa antes de vir para cá, enquanto estiver aqui.”

Ele passaria por minha casa? E Shunrei? Comecei a temer pela segurança dela.

“Podemos nos encontrar aqui mesmo. Eu sempre treino neste vale de manhã.”

“Como desejar, cavaleiro.”

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“Então ele pretende ficar alguns dias por aqui?”, perguntou Shunrei, de forma tímida.

“Sim, parece que sim. Mas eu vou ficar de olho nele o tempo todo, não se preocupe. Além disso, ele não deve ter mentido para mim. Pelo menos, eu senti isso.”

“Que bom.”

“Ao contrário de você, que me segurou para que eu o visse. Por que fez isso, Shunrei?”

Tomada de surpresa, Shunrei corou, parou de comer e desviou o olhar envergonhada. Não queria que ela reagisse daquela forma, só desejava saber da verdade desde o início.

“Não estou zangado por isso, Shunrei. Eu só quero saber a verdade de você.”

Shunrei olhou para mim com aflição, aquela mesma aflição com que se despedia antes das batalhas.

“É que sempre que alguém vem, você sai para lutar e me deixa sozinha.”

E acrescentou, num tom mais baixo.

“Desculpe. Sei que foi errado, mas… eu tenho medo por você.”

Seria ótimo para Shunrei amar uma pessoa diferente de mim. Uma pessoa que não a decepcionasse por ser um soldado, alguém que não matasse, não partisse, não fosse ausente e não lhe quebrasse o coração. Eu nunca mentia para Shunrei. Isso significava que eu jamais poderia prometer-lhe voltar da guerra sem saber se sobreviveria ou não. Vivendo comigo, Shunrei seria infeliz, extremamente infeliz.

“Tudo bem, eu entendo o seu medo.”

Sem pensar direito, levantei-me da mesa. Saí de casa, parei abaixo do beiral. Estava chovendo, e eu me molhei um pouco. Contudo, não voltei a entrar. Ouvi Shunrei levantar-se também e recolher a louça para lavar.

Por muito tempo, continuei ali fora, pensando. ‘Seja bom para ela’, dizia o meu mestre. Só que eu não me sentia bom. Eu não conseguia ser bom para ela da forma como outro homem, que saía de casa num emprego relativamente seguro e que podia facilmente dizer que estaria de volta à noite. Eu jamais dizia que voltaria porque era um cavaleiro de Athena. Para mim, era impossível fazê-la feliz de verdade.

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Acordei cedo no dia seguinte para aproveitar algumas horas de treino. Não tinha me exercitado no dia anterior, por isso não podia deixar de fazer algum exercício antes. Tinha deixado as espadas junto à minha armadura, com a segurança de que Axton não poderia recuperá-las sem que eu soubesse. Enquanto esperava por eles, treinava golpes na base da cachoeira, águas que subiam até quase a metade da queda, mas depois sucumbiam à força de Rozan.

Eu já estava inteiro molhado pelo treino, quando Axton aproximou-se, entrou no rio e parou ao meu lado, olhando para a cachoeira.

“Esta é uma queda muito forte. É preciso ter muita concentração para fazer um golpe subir até o alto. Até onde será que eu consigo…?”

Ele assumiu postura de luta de frente para a água, concentrou-se e aplicou um soco muito bem dado na água. Seu golpe subiu alto, quase tanto quanto o meu. Axton devia ser um ótimo combatente, mesmo sem as espadas.

“Não consigo fazer a água subir mais alto que você. Ainda me falta treino e força para isso.”

“Não foi ruim. Mas… Agora que veio, o que pretende fazer aqui, Axton?”

“Talvez você fique entediado se continuar comigo. Não quero nada de mais, apenas desejo olhar esta região.”

“Mas para quê?”

“Nem eu mesmo sei… Ou melhor, no fundo eu sei, só não quero admitir. Por favor, eu prefiro manter isto para mim.”

Axton afastou-se, e eu continuei sem respostas. Segui-o para fora do rio, e ele agachou-se na margem e olhou as pedras no fundo com cuidado e interesse. Não fazia a menor idéia do que ele pretendia com aquela investigação, mas preferi me manter calado. Axton ia e voltava, olhava cada pedra, folha, flor, peixe e partícula d’água, procurando por algo que pelo menos eu não conseguia ver.

Segui Axton, caminhando à margem sem pressa, passando por uma mata incrivelmente fechada. Por que ele tinha tamanho interesse por aquele rio? Ele parava a cada momento para dar uma boa olhada em volta, sem me dizer o que procurava. No meio do caminho, não resisti e perguntei, tentando não ser intrometido.

“Não gostaria da minha ajuda?”

“Não, obrigado. Só estou dando uma boa olhada neste rio.”

Bem que Axton podia ser mais específico quanto àquilo. Andamos metade do dia, até que o rio desaguou em outro, mais largo. Era também o limite de Rozan. Ele parou e comentou:

“A vegetação desta área está muito bem preservada.”

“Você é alguma espécie de biólogo pra ficar tanto tempo olhando para a vegetação daqui?”

Pela primeira vez, Axton sorriu sutilmente.

“É claro que não. E você não precisa ficar preocupado. Só estou dando uma olhada mesmo. Uma boa olhada. Vou fazer o percurso de volta a nado.”

Aquele sujeito cada vez mais me intrigava. Mergulhou com roupa e tudo no rio e nadou próximo ao fundo, olhando o submerso com cuidado e voltando para respirar de tempos em tempos. Eu o segui pela margem, já achando tudo uma grande perda de tempo. Começava a achar que ele era um completo maluco.

Já perto de casa, ouvi a voz de Shunrei. Ela estava esperando na margem do rio, carregando uma cesta, provavelmente com o nosso almoço. Axton estava ali. Seria seguro deixá-los interagirem. Parecia que eu não tinha escolha.

“Shiryu! Shiryu! Eu trouxe o almoço para vocês, não querem fazer uma pausa?”

Axton voltou à tona, passou a mão no rosto num movimento mecânico, enxugando-o, e aproximou-se da margem.

“Ah, mocinha… Eu a vi ontem, de longe.”

Shunrei olhou para ele, tímida, mas sorriu-lhe.

“Eu sou Shunrei. Moro aqui desde que era um bebê, junto com o mestre de Shiryu.”

“Sou Axton, um andarilho.”

“Eu… Sempre trago uma toalha a mais, de reserva. Pegue uma.”

Axton aproximou-se da margem e de Shunrei. Fiquei de olho, com o cosmos quase saltando à pele, de medo e de desconfiança. Ele estava próximo demais. Se quisesse, poderia arrancar a cabeça dela. Avancei na direção dele sem nem pensar. Antes de me aproximar, contudo, ele parou, com a mão já erguida.

“Ah. Meu pé prendeu num galho aqui. Shiryu, você não se importaria de pegar a toalha para mim?”

Eu pude ver muito bem que ele mentia. Axton afastou-se de Shunrei devagar e aceitou a toalha de mim. Em seguida, afastou-se e saiu do rio, sempre mantendo uma distância dela. Inventou outra desculpa qualquer para que eu pegasse o lanche dele, com muito cuidado para não ficar perto dela. Sentei-me ao lado de Shunrei para dividir a minha parte com ela. Vendo-nos, Axton comentou:

“Vocês parecem se dar muito bem, sem conflitos. É bem diferente daqueles dois.”

“Dois? De quem você está falando?”
“Estou falando de um casal que eram cavaleiros de Athena. Eu os conheci quase por acaso. Eles pareciam ter algum problema de relacionamento quando os conheci, mas eram boas pessoas. Vocês, ao contrário deles, parecem se dar extremamente bem.”

“Dois cavaleiros casados?”

“Se eram casados, eu não sei. Mas moravam numa casa de apenas uma cama.”

Eu não conhecia muito bem os novos cavaleiros que estavam entrando no Santuário, por isso não perguntei por mais detalhes. Eu queria mesmo era devorar toda a comida e manter Axton separado de Shunrei para a sua segurança. Apesar de parecer confiável, Shunrei era importante demais para arriscar uma aproximação.

Axton comia com gosto, olhando para a água e, de vez em quando, para nós. Numa das bocadas, parou o hashi no meio do trajeto para a boca, surpreso. Devolveu a comida à tigela e voltou-se a Shunrei.

“Seu broche é lindo. Eu quase não notei porque é rosa como a sua roupa, mas… agora que vi, achei bonito.”

Shunrei corou. Aquele sujeito estava se engraçando com ela? Meu instinto protetor gritou por uma atitude, mas agora por outro motivo.

“Obrigada”, respondeu Shunrei. “Quase ninguém o nota.”

“Será que eu posso dar uma olhada?”

“É claro.”

O broche passou da mão de Shunrei para a minha, da minha, para Axton, que o olhou de cima a baixo, muito interessado. Esperava que ele fosse elogiar mais uma vez apara agradar Shunrei, mas, em vez disso, perguntou:

“Onde você o comprou?”

Agora ele queria saber onde ela o conseguira? No que aquele sujeito estava pensando? Em comprar um broche cor de rosa para si?

“Eu o encontrei… Mais ou menos nesta região, no meio do bambuzal.”

“No mato? Mas que sorte!”

“É mesmo… Eu estava colhendo algumas frutas para a sobremesa do jantar… E vi esse broche caído no chão. O Shiryu até ficou preocupado quando soube e procurou por pessoas em volta, mas não havia ninguém.”

“Devia ser época de turistas, não? Eles vivem se perdendo.”

“Não, não foi. Foi num inverno, e ninguém tem coragem de vir para Rozan nessa época, porque é muito frio, neva e tudo mais. Eu encontrei o broche na neve!”

“Encontrar no meio da neve… Foi mesmo afortunada, Shunrei. Eu gostaria de comprar um broche exatamente assim para a minha irmã mais nova, sabe? Foi por isso que perguntei.

Irmã? Por que alguém viajaria e deixaria a família para trás, ainda mais uma irmã menor?

“Ora… Se quiser, pode ficar com ele, Axton! Eu não preciso desse broche tanto quanto você, afinal.”

“Está… Está falando mesmo sério, Shunrei? Porque, se me oferecer, eu não vou recusar.”

“Mas é claro”, riu ela, de uma forma muito adorável, “já é seu, quero dizer, já é da sua irmã!”

“Muito obrigado… Muito obrigado mesmo. Pelo broche e pelo lanche delicioso que fez.”

“Não foi nada!”

Por algum tempo, Axton olhou para o broche com um estranho interesse. Depois, olhou para mim, apontou para a direção de uma encosta montanhosa onde havia uma trilha bastante fácil.

“Shiryu, pode me dizer o que existe além daquela montanha? Desde que cheguei, ela me chamou a atenção pela trilha, que me parece a menos difícil de todas.”

Por que a mudança repentina de assunto? Mesmo sem saber aonde ele queria chegar, respondi:

“É uma trilha fácil, mas traiçoeira. Naquela direção a cadeia de montanhas só piora, com muitas pedras soltas. Eu uso aquela trilha para ir treinar nas montanhas há anos, por isso está sempre bem demarcada. Mas acredite, você não vai querer ir para lá.”

“Talvez eu queira”, respondeu ele, em voz baixa. Em seguida levantou-se, lavou a tigela na água do rio e devolveu-a para mim.

“Vou continuar nadando na margem. Você vem?”

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Depois do inútil passeio com Axton, voltei para casa mais irritado do que antes e duas vezes mais desconfiado. Aquele sujeito era mais do que esquisito. Apesar disso, Shunrei gostara muito dele, e já falava sobre o almoço do dia seguinte para o nosso visitante.

“Ontem eu fiz peixe, mas estava pensando em fritar ovos. Você acha que ele gosta, Shiryu?”

“Não sei”, respondi, pensando mais no estranho comportamento de Axton do que em seus gostos gastronômicos. “O que você fizer, está bom. Você cozinha bem, Shunrei.”

“Acha mesmo…?”

“Acho.”

Shunrei riu. Aparentemente, minha distraída resposta a deixara contente. E isso era tudo o que eu conseguia: deixá-la contente, apenas por alguns momentos, muito passageiros.

“Acho que serão ovos mesmo. Espero que o Axton goste. Ele é o único além de você que notou o broche, mesmo ele ficando discreto na minha roupa. Fiquei feliz quando ele notou.”

Havia algo de suspeito, tanto naquele broche quanto na trilha da montanha. Decidi que o investigaria assim que Axton partisse de Rozan. Shunrei parou de andar, ficando para trás. Fitei-a.

“O que houve?”

“Você acha que aquele broche ficava bem em mim?”

“No começo eu estranhava, mas depois me acostumei com você usando-o.”

“Mas… Era bonito?”

“Hum… O broche era bonito, mas eu nunca achei que combinasse com você, Shunrei. Não dizia nada porque você sempre gostou dele.”

O rosto triste de decepção apareceu no rosto dela, algo que eu jamais deveria permitir. Por isso, acrescentei, rápido.

“Acho que é porque ele não era tão bonito a ponto de merecê-la.”

Desta vez, ela sorriu e correu para juntar-se a mim. Mais uma vez, pude deixá-la contente. Uma felicidade muito passageira, muito momentânea. Do tipo que é cortada em uma hora, que é destruída com… uma morte numa guerra. Eu só estava aumentando a altura da queda dela. Pobre Shunrei quando eu morresse.

“Mesmo que…”, murmurou ela, bem baixo. Acho que não era para eu ouvir, mas ouvi. “Mesmo que seja mentira… “

Não era mentira. Eu jamais mentia para Shunrei. Por isso mesmo, eu não prometia o que não sabia se daria para cumprir. Eu podia ser duro assim, mas, pelo menos para Shunrei, queria ser uma pessoa verdadeira.

Uma ave passou gorjeando, vinda das montanhas. Lembrei-me da trilha. Queria muito ir lá para saber o que tanto interessava a Axton. Iria lá e investigaria, tão cedo pudesse. Teoricamente, Axton era um aliado, por pretendia ser um cavaleiro de Athena no futuro, contudo, não arriscaria a segurança de Shunrei enquanto ele estivesse ali. Era meu dever protegê-la.

Chegamos em casa. Shunrei avançou para a cozinha, pegou algumas batatas para cozinhar, mas parou antes.

“Eu preciso ir ao banheiro, antes.”

Num relance, vi o rosto de Shunrei entrando no corredor, com um fio de lágrima escorrendo no rosto. Pensei em ir atrás, mas não queria mentir para acalmá-la. Por isso, pensei em eu mesmo fazer o serviço dela, apesar de minha comida ser péssima.

Eu era um péssimo homem. Eu só a tornava infeliz. Shunrei merecia um homem melhor, que a cobrisse de elogios, que prometesse que voltaria. Eu era o pior dos piores.

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Não consegui conversar direito com Shunrei, desde o dia anterior. Fiquei tão preocupado que dormi tarde demais e não consegui acordar cedo o bastante para ir treinar. Tinha acabado de lavar o rosto e saí para deixar a porta de casa aberta, quando notei que Axton estava parado a certa distância da casa, esperando. Aproximei-me.

“Axton? Porque não me esperou no rio?”

“É porque hoje eu não vou ao rio. Eu vim avisar que não vou andar pela região de Rozan, e que por isso você não precisa ficar me seguindo. Eu tenho certeza de que tem afazeres mais importantes do que vigiar um louco como eu.”

Nesse momento, Shunrei saiu de casa. Eu não queria que eles se vissem, mas ela, sem perceber que era perigoso, aproximou-se de Axton, que deu alguns passos para trás.

“Ora, Axton… Você veio bem cedo hoje. Desculpe, eu estava preparando um lanche para vocês, mas ainda…”

“Não vai ser preciso, Shunrei. Eu não pretendo passar o meu dia com o Shiryu. Talvez mais tarde passe por aqui, mas não pretendo ficar na região de Rozan por hoje.”

“Ah…”

“Mas eu aceito o seu lanche, já que teve o trabalho de fazer. Em troca, eu posso pagar com isto aqui?”

Do bolso, Axton tirou um pequeno embrulho. Ele ainda teve o cuidado de inclinar o corpo para frente e oferecer o objeto com as duas mãos, numa profunda reverência que possuía um objetivo. Naquela posição, eu poderia atacá-lo facilmente caso ele atacasse Shunrei. De fato, Axton era um guerreiro perspicaz para lidar com cada situação.

“É… É para mim?”

“Para quem estou dando, afinal?”

“Obrigada…”

O conteúdo do pacote revelou ser um novo broche, da cor dourada e com o formato de uma delicada flor. Aquele sim combinava muito bem com ela, mas me doía do fato de ser um possível inimigo o presenteador.

“Como eu lhe tirei um broche, resolvi trazer-lhe outro, que se destacasse mais. Espero que tenha gostado, pois foi difícil achar um que merecesse a sua beleza.”

Shunrei ficou em silêncio por um curtíssimo momento, que deve ter sido imperceptível para Axton, que não mudou a expressão nem um pouco.

“É… É realmente lindo. Obrigada.”

“Espero que se anime um pouco. Não gosto de vê-la triste.”

Como ele sabia que Shunrei estava sofrendo? Por acaso estava espionando a gente?

“Como…?”

“Seus olhos estão um pouquinho mais inchados, mas só um pouquinho mesmo. Você devia se alegrar. Afinal, é feliz neste lugar, não é?”

Shunrei sorriu, mas não respondeu. É claro que ela não era feliz. É claro que ela era extremamente infeliz por minha causa. Shunrei colocou o broche novo e sorriu para Axton.

“Se eu estivesse sozinha, certamente seria infeliz . Mas eu sou feliz e afortunada e alegre por causa do Shiryu. Ele é que me faz feliz neste lugar. Ele é a pessoa especial que me faz feliz. Por isso, eu sei quando ele está feliz ou triste.”
“Entendi. Muito bem, vou sentar aqui fora enquanto você prepara o lanche. Mais uma vez, obrigado, Shunrei.”

Shunrei sabia mentir. Certamente sabia mentir. Axton percebeu, mas ele ignorou a mentira de Shunrei e esperou tranquilamente pelo lanche. Quando ficou pronto, dirigiu-se para a montanha.

“Hoje, eu só vou cruzar Rozan para ir às montanhas. Shiryu, hoje você não precisa vir comigo.”

Ele realmente achava que eu seria tão descuidado assim?

“Mas se eu quiser, eu posso ir. Afinal, aquela é a minha área de treino.”

“Certamente. Só acho que vai acabar decepcionado, como ontem. Eu não estou fazendo nada de mais.”

Essa era uma mentira tão grande que até Shunrei notara. Eu o segui em silêncio pela trilha até chegarmos ao pico. Certamente Shunrei acompanhava-nos com o olhar, mas já devíamos ser pequenas silhuetas aos seus olhos. Nesse momento, Axton comentou:

“Deve ser difícil viver com pessoas comuns, sendo um cavaleiro. Meu pai costumava sofrer muito com isso.”

“O que você sabe sobre isso?”

“Ei, eu sou filho de um cavaleiro! Eu já estive no lugar de Shunrei. Meu pai sempre saía em missões desconhecidas, geralmente voltava ferido. Eu sou o filho mais velho, por isso sei. Minha mãe ficava inquieta enquanto ele não voltasse, sempre fazendo coisas para nós, não por nossa causa, mas porque precisava ignorar a preocupação por ele. Ela ficava muito infeliz quando ele saía.”

Para mim, dava nojo receber um sermão de um sujeito que nem era cavaleiro ou alguém confiável. Contudo, outra coisa me chamara a atenção.

“Ela… ficava? Ela não era?”
“Não, não que eu me lembre. Meu pai sempre foi bondoso demais para fazê-la infeliz enquanto estivesse em casa. Ele vinha e brincava conosco, mesmo ferido, depois ia atrás de nossa mãe e desaparecia com ela por horas e horas. Eles sempre voltavam rindo. Havia aquela energia positiva em volta dele, muito contagiante. Meu pai era um ótimo cavaleiro, ótimo pai e um marido perfeito, tirando as suas ausências. Ele sempre prometia algo: quando eu voltar, consertarei o telhado; quando eu voltar, levarei vocês a um restaurante. Ele sempre voltava e fazia o prometido. Minha mãe tinha muito medo de ele não voltar e, para não perder as esperanças, preparava-se para os planos do pai. Nessas horas, ela era infeliz, mas tudo mudava quando ele voltava. Eles se amavam muito mesmo. Eu tive sorte de tê-los.”

Axton desceu algumas pedras, escorregando, e caiu sentado sobre uma pedra. No movimento, acabou cortando um pouco a mão, mas não se importou.

“Ela perdeu a vontade de viver quando ele morreu. Ele tinha prometido que iríamos pescar no rio, porque era época de cheia. Minha mãe tinha preparado até o almoço de nosso passeio, numa cesta, e deixara as varas todas preparadas, bem perto da porta de casa. Mas o meu pai nunca mais voltou. Desde então, ela se tornou infeliz. Ela não tinha coragem de tirar as varas e a cesta de cima da mesa. A comida estragou, o cheiro tornou-se insuportável, mas ela os manteve ali. Um dia, quando ela saiu para fazer compras, eu limpei tudo. Ela precisava superar a morte dele. Mas… Eu a matei fazendo aquilo.”

Axton esperou que eu descesse. A história dele me fizera esquecer se descer a encosta. Saltei até um arbusto, segurei em suas raízes e cheguei à base da montanha. Ele me seguiu até lá e terminou o relato:

“Depois que ela voltou e viu o que fiz, trancou-se no quarto. Achei que ela conseguiria superar. À noite, eu a chamei para jantarmos e fui até o quarto dela… para descobrir que ela tinha se enforcado. Ela nunca conseguiu superar a morte dele. Por isso eu entendo porque você é infeliz e por que faz a bela Shunrei ser mais infeliz ainda. Para que a queda não seja de uma altura insuportável. Eu entendo. O meu pai entendia. Mas ele também sabia que não fazer promessas falsas só a deixaria infeliz em tempo integral. Os anos passariam, e ela jamais seria feliz. Cada um lida com a situação do seu próprio jeito. É por isso que, se eu me apaixonar por alguma jovem, não cometerei o erro de ser um cavaleiro de Athena.”

Axton continuou a procurar não sabia o que pelo chão de pedras. E eu fiquei imóvel com suas palavras. Axton estava me dizendo que a única forma de Shunrei não ser infeliz era não ter me conhecido ou eu não ser um cavaleiro de Athena? Como resolver tudo agora que eu não podia mais deixar de ser um cavaleiro nem podia mais ser esquecido por Shunrei?

“Ah!”, disse Axton, logo em seguida. “Isto é…”

Olhei para ele e me surpreendi. O broche! Ele estava segurando o broche de Shunrei! Mas… Parecia um pouco diferente. Axton pôs a mão do bolso e tirou o broche recebido de Shunrei.

“São dois… O que isso quer dizer?”

Mas ele não respondeu. Agora muito sério e em silêncio, nosso visitante olhou em volta, invocou o cosmo e pôs a mão no chão, irradiando-o suavemente. Com aquela técnica, um cavaleiro era capaz de sentir todos os seres vivos em volta, todos os pequenos cosmos. Depois de alguns segundos, ele parou, levantou-se, correu até a boca de um toca de raposas e começou a cavar o chão com as mãos.

“Axton? O que está fazendo?”

Novamente, não obtive respostas. Axton de repente ficou nervoso e cavou com mais velocidade, num desespero inédito. Aproximei-me do buraco e levei um susto: era um esqueleto!

“Mas… o que é isto? Na base da montanha, sem túmulo…”

“Não podo ser!”, comentou ele, mais para si mesmo, “não pode ser!”

Eu não podia ficar parado sem fazer nada, Ajoelhei-me do outro lado do buraco e comecei a cavar também, mas não tão rápido e desesperado quando Axton. Quem seria aquele cadáver?

Descobrimos o crânio e parte do peito. Havia, em torno do pescoço, uma corrente de ouro. Ele parou de cavar com as mãos trêmulas e cobertas de lama. Tirou a corrente do pescoço, limpou-o cuidadosamente e abriu o pingente, que guardava um pequeno retrato. Sua respiração falhou, ele começou a chorar.

“Alyssa… Alyssa… Minha irmãzinha… Me perdoe, me perdoe… Alyssa…”

Afinal era isso o que Axton estava procurando, e que não sabia se encontraria. Devia ser uma terrível surpresa, da mesma forma como fora para mim. Desde quando ela estava morta? Se ela tinha passado por Rozan, como nós não vimos? Axton inclinou-se sobre o buraco, continuou a cavar entre as lágrimas e soluços até descobrir todo o corpo. O esqueleto estava todo comprimido, numa posição fetal. Provavelmente ela morrera por causa da queda e do frio das montanhas.

Quando enfim a descobriu inteira, Axton deitou-se no chão ao lado dela, apoiou a testa no crânio consumido pelos vermes e continuou a chorar, um pouco menos agitado. E eu não sabia o que fazer. Por isso esperei, com o coração pesado. Aquela era a última pessoa que restara da família de Axton. Agora ele estava, verdadeiramente, sozinho.

Eu esperei ali, vendo de perto a dor de nosso visitante, por mais de uma hora. Em seguida, como se se esquecesse de minha presença, Axton ficou olhando para o crânio oco, acariciando os ossos, ternamente.

“Alyssa…”, murmurou mais uma vez antes de enxugar o rosto na roupa suja e olhar para mim.

“Desculpe por isso, Shiryu. Eu jamais imaginei encontrá-la assim. Por favor, deixe-me. Eu preciso ficar um tempo sozinho. Não precisa se preocupar com a segurança de Shunrei. Você sabe que não farei nada contra ela.”

Mesmo com a dor da perda da irmã, Axton parecia muito calmo e sensato nas palavras. Sem escolha, eu subi a montanha e deixei-o, envergonhado da desconfiança por ele. Tudo o que Axton queria era encontrar a irmã morta e não prejudicar Shunrei ou eu. Voltei para casa e encontrei Shunrei lavando as minhas roupas no rio. Ela quase se levantou quando me viu.

“Shiryu! Por que está todo sujo? Aconteceu alguma coisa?”

“Sim… Mas prefiro não falar sobre isso agora.”

“Então vá se trocar. Já que estou lavando roupa, já lavo essa que você está usando.”

Eu não podia mentir, nem contar a verdade. Felizmente, Shunrei nunca insistia demais nos questionamentos. Troquei a camisa e passei o resto da tarde sentado na base da cachoeira, meditando. Era difícil encontrar concentração com a visão daquele esqueleto e a dor de Axton.

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Axton só apareceu novamente à noite, coberto de lama por ter se deitado naquele buraco com o esqueleto da irmã. Os olhos cansados indicavam o quanto chorara, mas ele sorria amigavelmente e nem parecia estar sofrendo.

“Desculpem a demora. Eu me entusiasmei com as montanhas e resolvi passar o dia treinando lá.”

“Céus, está tão sujo”, comentou Shunrei, assustada. Apesar de eu tê-lo visto deitado na lama, vê-lo naquele estado era de fato chocante. Por isso, decidi que seria um bom anfitrião pelo menos uma vez.

“Eu vou preparar um banho para você. Se voltar assim à vila, vão pensar que é um ladrão.”

Axton me seguiu, apesar de não precisar fazê-lo. Enquanto eu enchia a caldeira de água para esquentar, ele se aproximou e falou, em voz baixa.

“Eu preciso de ajuda, Shiryu.”

“Ajuda?”

“Sim. Eu preciso de ajuda para ajudar vocês. O fato de eu ter encontrado minha irmã aqui não é coincidência.”
“Do que está falando?”

“Minha irmã foi seqüestrada em nossa casa, na África do Sul. Foi a última vez que a vi. Eu pergunto a você, então: o que o corpo dela faz na China, aqui em Rozan?”

“Eu esperava que você soubesse isso.”

“A única coisa que eu sei é que o seqüestrador de minha irmã queria que eu matasse Shun de Andrômeda.”

“O quê? O Shun?”

“Mas eu desisti de cumprir com o desejo dele depois de conhecer o Shun e a June. Com a ajuda deles, consegui pegar o seqüestrador e matá-lo. Antes disso, ele me disse que minha irmã estava morta há tempos, que ela caiu de uma queda d’água. Então decidi viajar pelo mundo para decidir o que fazer de minha vida agora, sozinho. E antes que percebesse, estava procurando por quedas d’água, à procura dela… E encontrei aqui, em Rozan, morada de outro cavaleiro de Athena.”

“Está dizendo que o seqüestrador…”

“Esse seqüestrador quer os cavaleiros de Athena mortos, isso com certeza. Não sei por quê. Mas… Eles usaram-me… Mataram a minha irmã… Agora que sei disso… Não posso ficar parado. Eu preciso de ajuda. Preciso da ajuda dos cavaleiros de Athena para encontrar o outro seqüestrador… E cortá-lo em micropedaços com minhas espadas.”

“Então há mais um seqüestrador… E agora irá trilhar o caminho da vingança?”

“É mais forte do que eu… Eu só quero pôr um ponto final nesta história, Shiryu. Mas preciso da ajuda dos cavaleiros de Athena para isso. Seria terrível se algo parecido acontecesse com Shunrei, você não acha?”

“Está me ameaçando?”

“Não. Estou tentando alertá-lo para os perigos. Ser um cavaleiro de Athena é estar sempre em perigo. Aconteceu com a minha família. E eu não quero que isso ocorra com mais ninguém. Ninguém mesmo.”

O que faria? Devia acreditar em sua história? No que Shun teria pensado a respeito dele? Provavelmente não demonstrara tanta desconfiança. Eu tinha motivos para desconfiar, mas não podia ignorar o que ele acabara de me contar.

“Vou conversar com Athena sobre o seu problema. Provavelmente eles vão analisar o corpo de sua irmã em busca de pistas do nosso seqüestrador. Quanto a você… sugiro que vá pessoalmente ao Santuário falar com ela.”

“Obrigado. É toda a ajuda de que necessito, Shiryu. Partirei amanhã, bem cedo. Virei buscar as espadas e depois o deixarei em paz, prometo.”

“Não se preocupe comigo.”

“Há mais uma coisa que devo dizer a você. Quando o seqüestrador me mandou matar o Shun, ele me enviou a localização exata da casa dele na ilha de Andrômeda. Significa que… o fato de ele ter estado aqui… pode significar um sinal de alerta. Você devia ser mais cuidadoso com a segurança de Shunrei. Em vez de ficar perto de um possível inimigo, deveria permanecer ao lado dela, o tempo todo. Este é um conselho de amigo. Além disso, vocês podem se tornar mais próximos assim. Para nós, guerreiros, a vida é curta demais.”

Com aquelas palavras reverberando em minha mente, esperei a água ferver, tremendo por dentro.

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Shunrei esticou para ele uma pequena trouxa, com outro lanche preparado para Axton. De fato, ela se simpatizara bastante com ele. Eu não mais precisava servir de intermédio, pois sabia que ele não faria nada como atacá-la. Sorrindo, ele respondeu:

“Obrigado, eu não mereço tanto.”

“Aonde você pretende ir agora, Axton?”

“Ainda não decidi”, mentiu ele. Eu sabia que ele iria para o Santuário, mas ele simplesmente não mencionou nada, com medo de lembrar Shunrei de minha profissão. “Talvez para um lugar charmoso? Itália? Parece-me uma boa opção.”

“Você com certeza leva uma vida muito emocionante”, comentou ela, rindo. Apareça qualquer dia para nos contar de suas andanças!”

“Eu irei. Até logo!”

Depois de vê-lo partir, Shunrei pegou uma cesta de palha e anunciou, de bom humor.

“Eu vou pegar alguns cogumelos para o almoço. Acho que você vai querer treinar agora, não é?”

Nos dois últimos dias eu mal tinha treinado. Precisava sim treinar, mas… O medo estava instalado em mim. Escondi minha preocupação e sorri de volta para Shunrei.

“Acho que quero mais passar um tempo com você do que treinar agora. Vamos lá colher. O que vai preparar com os cogumelos?”

Shunrei sorriu, de uma forma que eu não via há algum tempo. Ela sempre trazia a paz para mim, mas raramente eu fazia o mesmo. Isso precisava mudar. Começamos a andar em direção à mata.

“Eu estava pensando em cozinhar no molho de soja com algumas verduras. Eu sei que você gosta disso, mas nunca acho muitos cogumelos. Então pensei em procurar daquele lado do rio, onde é mais úmido…”

Foi um dia raro, diferente dos outros. Fizemos praticamente as mesmas coisas que fazíamos todos os dias. Mas o simples fato de eu ter passado mais tempo com ela, um pouco por causa do choque da visão do cadáver, fez com que Shunrei parecesse feliz.

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Cena extra ^-^

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Shunrei: Axton? Você voltou tão depressa… O que houve?

Axton: Ontem… eu esqueci de pegar as minhas espadas. Será que posso tê-las de volta?

Shiryu: Quer suas espadas de volta?

Axton: Sim, por favor. Elas são muito importantes para mim.

Shiryu: …

Axton: O que foi? Onde você escondeu as espadas?

Shiryu: Ah, sim… Eu as escondi… na vila. Você sabe a loja de artigos usados na rua principal?

Axton: Você… vendeu as minhas espadas?!

Shiryu: Achei que não as quisesse mais.

Axton: Seu grande idiota! *sai correndo*

Shunrei: Shiryu? Por que mentiu para ele?

Shiryu: Eu não tenho coragem de dizer para ele que guardei as espadas embaixo da cachoeira, e que elas enferrujaram…

Shunrei: Achei que o mestre tivesse te ensinado que não se deve fazer isso.

Shiryu: Discípulos erram e esquecem coisas Shunrei… Infelizmente!

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