Capítulos: 1 2 3 4 5 6 7
Autor: Nemui
Fandom: Cavaleiros do Zodíaco
Gênero: drama
Status: Completa
Classificação: não disponível
Resumo: Axton é uma fanfic constituída de 7 capítulos, cada um narrado por um personagem diferente. Todos eles são sobre um personagem que criei: Axton, um guerreiro andarilho armado com espadas e filho de um cavaleiro, que causa estranhamento por onde passa. Em cada uma das pessoas com quem lida, Axton deixa um pouco do que é, do que pensa e do que acredita.
A porta do meu quarto pesava uma tonelada. Ou pelo menos assim parecia, depois de trabalhar sessenta horas seguidas sem descanso. Maldita epidemia! Maldito dia em que esse vírus chegou à vila! Eu mal terminava de curar um paciente, logo aparecia outro aos delírios de febre. Tratei os casos mais graves, mas ainda faltavam as pessoas que estavam mais ou menos, e eu estava moído de cansaço de tanto curar!
Arranquei as botas e me enfiei sob os cobertores, com calafrios. Quando passava a noite em claro, acabava com calafrios na hora de dormir. Ainda era de manhã e não estava tão frio, mas eu estava quase tremendo. Tudo o que eu queria era dormir e dormir, até acordar de fome.
Quando o interior do cobertor finalmente se aqueceu, senti-me pronto para embarcar numa longa e relaxante viagem. Embalado por aquele calor, no macio, no confortável, na sensação inigualável do descanso merecido.
Ajuda… Ajuda… Certo, ajudo amanhã. Ajuda… Ajuda… Mas quem diabos estava falando? Era outro paciente? Logo agora que eu estava quase dormindo? Com os olhos que mal se mantinham abertos, olhei em volta e notei que a vila estava num completo silêncio. Acho que era minha imaginação, depois de passar dois dias com pessoas desesperadas à minha volta, pedindo ajuda, algum eco restara nos ouvidos.
‘Ajuda, por favor… Preciso de ajuda… Alguém!’
Mas que saco. Agora aquela voz não me deixava dormir! E eu estava tão cansado… Afinal, de onde vinha?
‘Há pessoas feridas… Sofremos um acidente… Por favor, alguém nos ajude… Precisamos de um médico…’
Eu não era um médico, e estava morrendo de sono. Tentei dormir de novo, mas minha consciência começou a pesar. Mesmo que piscasse inconscientemente, a preocupação começou a tomar conta da minha maldita cabeça. De que adiantaria ir ajudar, se estava esgotado?
‘Por favor, alguém…’
“Cale a boca!”, respondi para o quarto vazio. “Estou tentando dormir!”
‘Pode me ouvir? Você pode me ouvir? Por favor, eu imploro, ajude-nos!’
Ótimo. Agora eu estava conversando com uma voz dentro da minha cabeça. Eu devia era ir visitar um psiquiatra.
“Escute, voz do além, eu não durmo há dois dias. Por favor, eu imploro, me deixe dormir!”
‘É um cavaleiro? Por favor, eu preciso de ajuda. Basta que ligue e chame ajuda para nós. Eu preciso muito.’
Sentei na cama, ainda enrolado no cobertor. Estava muito frio para fazer hora fora da cama. Foi quando eu notei de onde vinha aquela estranha voz. Havia um cosmos agindo por toda a região, provável dona da voz. Como eu não tinha parado de usar o cosmos por horas, sem parar, havia uma pequenina porção que eu mantinha queimando inconscientemente e que tinha entrado em contato com aquele outro cosmos.
“É um cosmos… Quem é você?”
‘Meu nome é Axton. Estava viajando de ônibus para o leste… Sofremos um acidente na estrada. Alguns morreram, muitos estão feridos em estado grave. Preciso de ajuda! Chame médicos para cá!’
Aquilo não podia ser uma brincadeira, podia? Se fosse, seria uma nova modalidade de passar trote. E eu estava tão cansado! Não sei se agüentaria curar aquelas pessoas. O pior é que naquela vila, não havia telefones, nem nada. Eu era o único que poderia ajudar na hora. Saí da cama, já pensando nas pessoas que teria de salvar.
“Não posso oferecer ajuda rápida. Você consegue manter o seu cosmos queimando por um longo tempo?”
‘Isso não é problema. Posso mantê-lo queimando por quanto tempo você precisar, mas por favor, venha o quanto antes! Eu não sei o que fazer!’
“Fique calmo. Estanque os ferimentos abertos, mantenha o pessoal aquecido, com o seu cosmos, se não tiver opções. Eu tentarei chegar o quanto antes.”
Não poderia haver um momento pior! Saí de casa com dois casacos e cobertores extras. Peguei um trenó emprestado e enchi-o de água e de comida. Uns moradores iriam para a próxima cidade buscar ajuda, mas com certeza demorariam. Eu era o único, e estava esgotado.
Estalei o chicote, os cães se puseram a correr, felizmente descansados e cheios de vigor. Corri por mais de dois quilômetros em busca do tal ônibus, mas não encontrava sequer a estrada na qual trafegaram. Além disso, meus olhos estavam pregando sozinhos. Recorri à única pessoa disponível.
“Axton, está me ouvindo?”
‘Claro. Fale.’
“Estou literalmente quase dormindo. Mantenha-me acordado!”
‘Você disse que não dorme há dois dias, é isso? Basta que me traga médicos. Agüente mais um pouco.’
“Não havia médicos na vila onde estava. Eu mandei mensageiros para a cidade. Eles entrarão em contato com algum cavaleiro de Athena para nos localizarem depois. Eu estou indo para aí sozinho, levando mantimentos e cobertores. Assim que chegar, ajudarei todos.”
‘Preciso de um médico urgente. O que mais podemos fazer?’
“Não se preocupe quanto a isso. Eu posso dar conta do recado.”
Houve um silêncio até a resposta, como se ele duvidasse de mim. Mas ele não demonstrou nenhum tipo de desconfiança.
‘Obrigado pela ajuda. Ainda não sei nada sobre você.’
“Eu sou Lukian, o cavaleiro de bronze de Grou. Também sou um curandeiro, por isso posso ajudá-los. Agüentem firme.”
‘Um cavaleiro… Mais uma vez, meu caminho se cruza com o de um cavaleiro. Eu estive no Santuário recentemente, apesar de não ser um cavaleiro.’
Ele não era um cavaleiro?! Ele não era?! Mas de onde surgia um cosmos tão poderoso quanto o dele? Talvez fosse o mais poderoso cosmos entre os cavaleiros de prata! Talvez alcançasse o nível dos cavaleiros dourados!
“Está dizendo que não é um cavaleiro de Athena? Com um cosmos mais poderoso do que o meu?”
‘He he he… Consegui despertá-lo, não consegui?’
“Mentiu para me acordar, desgraçado?”
‘Eu não estou mentindo. Mas acalme-se. Concentre-se no meu cosmos e no caminho à sua frente. Daqui a uma ou duas horas, você chega.’
Sem perceber, eu estava naturalmente nervoso. Acho que era o estresse das últimas horas acumuladas. Quem era aquele homem, Axton? Quem me dera Hyoga estivesse comigo para explicar-me. Contudo, ele estava muito distante, do outro lado do país.
“Desculpe. Não durmo há dois dias, estou exausto. A vila onde estava está cheia de pessoas doentes. Trabalhei direto para atendê-las.”
‘Tentarei o meu melhor para mantê-lo acordado. Se a conversa estiver chata, basta avisar-me, e com sinceridade. Não quero que durma na estrada.’
Axton começou a contar para mim sobre a sua última visita ao Santuário, achando que isso me interessaria. Falou de um tal Seiya, nome que não me era estranho, apesar de não ter contato com o Santuário. Fora Hyoga quem me falara dele? Aparentemente era o cavaleiro de bronze de Pégaso, que deveria tê-lo acompanhado na viagem, mas desistiu no último momento.
Foram duas horas nas quais falamos sobre o Santuário, Seiya, cosmos e lutas, até que encontrei a tal estrada. Era uma velha estrada que quase não era mais usada. Pelo lado de fora do asfalto, na neve, incitei os cães já exaustos, com as esperanças acesas. Vinte minutos depois, vi uma claridade vermelha na neve, ao lado de um ônibus tombado. Saltei do trenó e corri, ajudando os cães nos últimos metros. Uma figura levantou-se ao longe: era Axton, um guerreiro alto, de longos cabelos negros. Carregava duas espadas na cintura, uma de cada lado.
“Você é Axton, não é?”
“Lukian, graças à deusa! Por favor, venha ajudar!”
A primeira pessoa à qual Axton me guiou foi um pequeno bebê, com sérios ferimentos pelo corpo. Ajoelhei-me ao seu lado e invoquei o cosmos, enfraquecido por causa do excesso de trabalho.
“Axton, pegue a minha armadura no trenó.”
Axton agiu rápido, sem perder um segundo de tempo. Puxei a alavanca e abri a urna. A armadura envolveu-me, dando o seu poder. Normalmente eu não precisava dela para curar ferimentos como aquele, mas estava debilitado demais. Concentrei o meu poder e curei as feridas do pequeno com perfeição. Geralmente deixava o trabalho acabado pela metade para poupar o meu poder quando havia muitos doentes. Mas um bebê merecia ser curado até o último arranhão.
A pessoa seguinte era uma mulher, que chorava sem parar de dor. Fiquei pasmo como estado de sua perna, arrancada pela metade. Axton tinha conseguido deter a hemorragia, mas eu precisava fechar aquele buraco. Novamente usei o poder da armadura.
Havia tantas outras pessoas inconscientes ou não… Quando terminei de curar a mulher, notei que não tinha mais forças. Mal consegui queimar o cosmos. Notando o meu cansaço, Axton pegou um pouco de sopa quente e entregou para mim.
“Lukian, vá com calma. Você está exausto. Precisa de alguma coisa?”
Eu precisava era de horas e mais horas de sono. Estava quase dormindo enquanto curava, meus olhos pareciam pesar quilos, eu me sentia completamente fora da realidade. Axton cobriu-me com o cobertor, mas ele caiu na neve com a tremedeira. Espere, desde quando eu estava tremendo?
“Lukian… Escute, você precisa descansar um pouco.”
Mas e aquelas pessoas desmaiadas? O estado delas era sério, e elas podiam morrer! Balancei rapidamente a cabeça, tentando acordar e continuei a curar, muito lentamente, com pouquíssimo cosmos.
“Como aprendeu essa técnica?”, perguntou ele, quando quase caí sobre um paciente.
“Com meu mestre… Inicialmente era pra luta… Mas… Não posso… Eu preciso continuar.”
“Não pode dormir? Está quase sem poderes. Não conseguirá curar assim.”
“É que a cura gasta muito do meu cosmos. O ferimento é como um vampiro a sugar o meu poder. Eu fico exausto muito rápido.”
Subitamente, Axton levantou-se.
“Espere, eu te empresto o meu poder.”
Axton tocou na ombreira da minha armadura e começou a queimar aquele poderoso cosmos. O poder abundante fluía através de mim. Eu não podia desistir. Não ainda. Fiz um esforço extra para manter os olhos abertos e concentrei meu poder no grave ferimento do senhor de idade, coberto de sangue. Ele precisava ser salvo. Todos precisavam da minha ajuda.
Com a ajuda de Axton, curei mais três pessoas que estavam num estado mais delicado. As demais, que não estavam tão feridas a ponto de precisarem de ajuda imediata, reclamaram pela cura, mas Axton foi inflexível:
“Eu sei que vocês estão preocupados com os seus machucados, mas ele não pode ajudá-los sem descansar antes. Vamos nos ajudar e permitir que Lukian se recupere. Não quero ninguém prejudicando o descanso dele. Por favor, tenham paciência.”
Eu estava tão exausto… Não tinha sequer ânimo para preparar-me uma cama. Deitei no meio da bagagem do trenó e me esqueci do mundo.
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Quando despertei, estava debaixo de três cobertores sob um abrigo de madeira improvisado e próximo a uma fogueira. Já era madrugada, e os passageiros dormiam. Levantei a cabeça e notei que Axton estava sentado do meu lado, sem nenhum tipo de agasalho, protegido apenas pelo cosmos. Nos braços, envolto um casaco e uma grossa manta, estava o bebê que salvara, dormindo.
“Acordou? Volte a dormir. Descanse mais.”
“E a ajuda?”
“Já era para ter chegado. Pode ser que tenha acontecido algo. Agora estou usando o meu cosmos para chamar ajuda de novo, mas ninguém me responde. Você é o único cavaleiro desta região?”
“Bem, eu suponho que sim. Não sei responder.”
“Não? Achei que estivesse informado de seus companheiros…”
O que eu poderia responder? Com a verdade? Que eu era um cavaleiro desertado do Santuário? Que eu não pretendia voltar a servir a Athena?
“Eu… Não posso responder a você.”
Axton permaneceu alguns segundos em silêncio, nos quais eu me perguntei no que ele pensava de haver um cavaleiro tão desinformado e que não queria responder perguntas. Ele simplesmente recostou-se ao pilar de madeira que afincara com perfeição no chão. Precisava admitir que Axton era muito habilidoso para construir um abrigo resistente como aquele em tão pouco tempo.
“Tudo bem. Então eu não vou perguntar. Não gosto de tocar na ferida de ninguém, sabe? Eu também tenho coisas a esconder, afinal. Além do mais, você veio nos ajudar, e talvez tenha salvado as vidas destas pessoas. Devo minha gratidão a você.”
Aquele sujeito falava feito um cavaleiro, apesar de não ser.
“Mas você só pediu ajuda. Você quer dizer, estas pessoas é que devem gratidão a mim e não você. Aliás, elas devem gratidão a mim e a você. Mas não vejo por que você deveria gratidão a mim.”
“Digamos que eu tenha ficado muito preocupado com elas. Você acreditaria?”
“Geralmente não. Mas quanto a você, estou em dúvida.”
Ele sorriu e voltou-se ao bebê, que acordara com a conversa.
“Volte a dormir. Daqui a algumas horas, terá de curar o resto do pessoal.”
Ele ficou ali, dando alento ao pobre órfão que ainda mal sabia de sua condição. Notei que o sorriso desvanecera, e o olhar tornara-se triste, úmido, quase derramando lágrimas. Aquele sujeito estava emocionado com aquilo? Eu via desgraças piores todos os dias. Ao menos o garoto estava vivo, certo?
“Eu me sinto mal”, disse ele. “Eu tenho um bom cosmos, mas não consegui salvar os pais deste bebê.”
“Se eu me sentisse mal com toda pessoa que não conseguisse curar neste mundo, morreria.”
Passaram-se alguns segundos, antes que ele respondesse:
“Deve ser difícil morrer todos os dias…”
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Não consegui dormir de novo. Precisava curar todos antes de dormir. Pedi ajuda de Axton, que me ofereceu seu cosmos para continuar a cura. Depois de dormir algumas horas, estava novamente apto a curá-los, pelo menos mais um pouco. Ainda estava exausto, ainda sonhava com uma cama bem confortável e grossos cobertores bem pertos de uma boa lareira. Enquanto curava o braço quebrado de uma senhora, comentei com o meu novo ajudante:
“Quem me dera estivesse no quarto, perto de uma lareira bem quente e cobertores à vontade.”
Axton pareceu-se esquecer de que estávamos em apuros, com pouca comida, poucos cobertores e sem a ajuda da cidade. Riu, transmitindo uma calma que me surpreendeu.
“Não há nada melhor do que isso num tempo como este, hein? Depois desta, bem que merecemos um dia inteiro de ócio e conforto. Além da cama e da lareira, podemos acrescentar uma sopa de carne, daquelas que esquentam a alma, e um bom vinho.”
“Sem falar de um pão que acaba de sair do forno.”
Por um momento, paramos para imaginar o paraíso do conforto, mas apenas por um instante. Tínhamos um trabalho a fazer, um trabalho que parecia nunca acabar.
“Pois quando nos tirarem daqui, eu vou fazer tudo o que estão imaginando”, disse a boa senhora. Só de pensar que aquilo era o meu futuro, ficava com um sorriso do tamanho do rosto!
“Promete? Olha que eu apareço mesmo em sua casa, senhora!”
“Se me prometer que vai curar o meu braço, faço sim.”
Apenas curar o braço? Que maravilha seria comer por um trabalho tão simples. Axton comentou em seguida:
“Mas você precisará voltar para a vila infestada, não é, Lukian? Há inúmeros doentes lá.”
“Por que você tinha que me lembrar? Eu queria tanto um paraíso…”
“Parece que eu serei o único que poderei desfrutar disso”, comentou ele, rindo. Ele com certeza se divertia vendo a minha miserável situação.
“Seu desgraçado! Está se aproveitando do trabalho dos outros!”
Ele riu de novo, mais alto.
“Não é todo dia que temos essa chance, não é?”
Meu destino seria servir aos outros, para sempre. Como curandeiro e como outras coisas. Eu sempre era o prejudicado.
“Estou brincando, Lukian”, corrigiu Axton. Ainda bem, porque eu estava quase acreditando. “Nós vamos para lá, depois de terminarmos o trabalho.”
“Eu já disse. Eu preciso voltar para a vila depois para curar os enfermos. Não poderei viajar com você.”
“E quem disse que eu continuarei minha viagem? Com o ônibus quebrado, nem tenho condições. Além disso, eu acabei te arrastando para cá, quando você estava ocupado com um importante trabalho, além de estar completamente esgotado. Para compensá-lo, emprestarei o meu poder a você para ajudar as pessoas da vila.”
“Está falando sério? Você deve imaginar que o meu trabalho nunca tem fim. Pretendo ficar pelo menos uns dois meses lá!”
“Tudo bem, eu posso esperar”, respondeu ele, com a maior calma do mundo. Aquele cara devia ser um completo perdido na vida para resolver ser meu banco de cosmos.
“Eu não recomendo isso, de verdade.”
“Está dizendo que eu não posso ajudá-lo no trabalho?”
“Não.”
“Então não fique tentando expulsar algo que só o favorecerá.”
Fiquei pensando naquela decisão enquanto curava as outras pessoas. Era estranho pensar que meu trabalho era interessante para alguém que não tinha interesses econômicos. Era interessante para as pessoas a existência de alguém que pudesse curá-las de qualquer doença, mas os únicos que tinham se aproximado de mim e pedido para aprender minha técnica eram homens gananciosos, cujo objetivo era ganhar dinheiro e fama em outros lugares. Ser um curandeiro que não cobrava era um trabalho ingrato, pelo cansaço e pela pobreza. Eu vivia de doações e não tinha nada próprio além da armadura e a roupa do corpo. Por que uma vida assim atrairia a atenção de alguém?
“Faça o que quiser. Não sou nada seu para dizer o que deve ou não deve fazer.”
“Aliás, Lukian… Por que você cura as pessoas assim, de graça? Não é uma vida miserável gastar todo o seu cosmos, dando ajuda gratuita aos doentes? Você não parece gostar do que faz.”
Gostar não era bem a palavra. Não havia o sentimento de recompensa o tempo todo, era mais… dever.
“Eu sou o único homem do mundo inteiro capaz de curar qualquer doença. Não seria um desaforo o único cara capaz disso não ajudar pessoas? Eu tenho esse poder, não porque pedi, mas porque é uma herança. Mas eu preciso ser responsável quanto aos meus poderes. Ajudar pessoas é o que faço porque é o que devo fazer. Não cobrar é o que faço porque eu não agüentaria cobrar de alguém sem dinheiro. Com um poder tão único, não fazer nada não me daria o sentimento de estar de bem comigo mesmo. Quando eu curo, mesmo cansado, sinto-me bem. Não faço tanto pelos outros, por incrível que pareça. Faço isso muito por minha própria causa. Muitos poderiam me achar um egoísta estúpido ao ouvir estas palavras.”
“Quem não é egoísta?”, respondeu Axton. “Afinal, como você disse, ninguém desejaria os seus poderes se não fosse por proveito próprio. Ao menos o seu egoísmo não mata nem matou ninguém. Tenho inveja disso.”
“Bem, eu só não me sinto bem quando prejudico alguém, é por isso que meu egoísmo é inofensivo.”
“Mas o meu não é…”
“O meu egoísmo não foi assim sempre. Ele já foi muito destrutivo. Não estou dizendo que me arrependo disso, apenas… que não vejo isso como uma boa coisa hoje em dia. As pessoas mudam porque seus princípios também mudam, para melhor ou para pior. Acho que eu melhorei, ou pelo menos espero. Mudar foi algo importante para mim, tanto que agora eu passo o meu dia curando pessoas e vivendo de doações. É uma vida um tanto sem graça, mas melhor do que a anterior. De que forma a sua vida de agora machuca os outros?”
“Agora, não. Mas antes, sim.”
E ele continuava a reclamar? Mas que frouxo!
“Então pare de lamentar, seu imbecil! Erga a cabeça, olhe para frente. Quem não olha para frente, tropeça e cai feio.”
“Mas e se o passado pesa demais no peito? Estou tentando me livrar do peso agora.”
“Mas que peso? Isso é coisa da sua cabeça, só da sua cabeça. Se o passado ainda é um peso, significa que ele é ainda presente, não?”
Axton riu.
“Eu gostaria de poder pensar como você.”
Terminei de curar. Era a última pessoa, finalmente. Respirei aliviado e caí no chão sentado.
“Finalmente! Agora posso descansar.”
“Não só pode como deve. Estou com a impressão de que pode desmaiar a qualquer minuto…”
Talvez pudesse. Meu corpo estava mais fraco do o de um idoso. Arrastei-me para baixo de um cobertor, perto da fogueira. Finalmente podia dormir de consciência limpa.
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Quando despertei, vi pessoas andando de um lado ao outro, conversando, distribuindo comida. Finalmente a ajuda chegara com tudo que podíamos precisar. Apesar de terem trazido um médico, não havia necessidade para fazê-lo. Um sujeito da vila que eu tinha curado da doença viera com o grupo.
“Senhor Lukian! Desculpe pela demora. Nós estávamos tão ocupados com os doentes e achamos que o mensageiro tinha dado conta do recado, mas ele tinha se acidentado num barranco. O senhor está bem?”
“Estou. Pude descansar um pouco… Mas precisamos tirar os corpos das ferragens… E podemos mandar o médico de volta para a vila.”
“Está bem. Só que o médico precisa de um pouco de tempo, porque ele está atendendo.
Como ‘atendendo’?! Eu tinha curado todos, sem exceção! Levantei-me, mesmo que o corpo pedisse para continuar deitado. Olhei em volta e procurei pelo médico, que devia estar lá fora. Passei pelas pessoas e a pequena confusão de vozes. Parei atrás do ônibus, um pouco afastado do resto do grupo.
Era um buraco no tronco, causado por alguma ferragem do acidente. Ao lado, no chão, uma roupa surrada, completamente tingida de vermelho. Axton estava recostado à árvore, com a nuca fazendo força contra o casco e os olhos fechados, suportando a dor. Enquanto respirava forte, o médico cuidadosamente limpava-lhe o ferimento, cheio de pus, e retirava um pedaço de metal preso à carne. O sujeito construíra um abrigo, ferido daquele jeito? Por que não me pedira ajuda?
“Axton… Por que não avisou que estava ferido? O que… O que é isso?”
“Eu não podia”, respondeu ele, cheio de dor. Sorriu forçado, sem um pingo de culpa. “Você precisa curar as pessoas da vila ainda. Reserve seu poder para elas. Eu não vou morrer com isso.”
Não era um ferimento leve, em hipótese alguma. O que mais me surpreendia era o fato de Axton não ter demonstrado, em nenhum momento, qualquer sinal de que se ferira no acidente.
Eu me senti subitamente furioso. Avancei, empurrei o médico do meu caminho e joguei toda a raiva no punho sobre o rosto daquele imbecil. Ele era o único que podia salvar aquela gente no acidente, mas não se preservara! Aquilo me irritava, profundamente.
O médico me puxou, pois achara que eu queria arranjar uma briga. Eu queria era resumir todo o descuido dele num único soco!
“Pare com isso! Ele está ferido!”
Travei os pés, continuei ali. Bem quis dar mais um golpe, pois meus punhos continuaram cerrados. Mas em vez disso, queimei o cosmos, ignorante do cansaço, e fechei aquele buraco horrendo sem deixar uma única cicatriz. Mas não curei o soco, não mesmo. Aquilo era para doer.
Axton sentou-se no chão e passou a mão na boca para limpar o lábio cortado. Depois de olhar para o próprio sangue, sorriu.
“Um soco em troca do furo na barriga. Até que foi um bom negócio.”
“Pare de brincar, isso foi sério. Seu ferimento não era pouca coisa para escondê-lo de mim. O que faria se seu estado se agravasse?”
“Eu daria um jeito. Mas não é isso que importa. Você é tão contraditório, Lukian…”
“Por que diz isso?”
“Você não se importa de machucar a si próprio para curar as pessoas. Mas quando outra pessoa faz o mesmo, você a espanca de raiva. Por que faz isso? Pensei que se sentisse bem fazendo isso, mas, quando vê outra pessoa fazendo o mesmo, não se sente bem.”
Aquilo era contradição? Não. Não era mesmo.
“Você está errado. Eu não estou sendo contraditório. É verdade que eu me sinto bem fazendo isso. Mas minha ação só vale alguma coisa porque eu faço isso para que outras pessoas não precisem fazer o mesmo. Se alguém mais está fazendo isso… É porque o meu esforço não é suficiente. É isso que me dá raiva.”
Ele começou a rir, o que me deixou mais furioso. Antes que resolvesse dar um segundo soco, dei as costas e caminhei na direção oposta. Ainda pude ouvi-lo comentar, entre as risadas:
“Que egoísta… Quer todo o sacrifício para si.”
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Logicamente, todos estavam abalados com o acidente, mas não precisavam de ajuda médica. O próximo passo era pegar aquele médico e arrastá-lo para a vila de enfermos. Depois de ter me escondido um ferimento, não tinha mais vontade de pedir ajuda de Axton. Entretanto, a prioridade eram os doentes. Eu não me perdoaria se alguém morresse apenas porque, por orgulho, não pedira a ajuda dele. Por mais que o detestasse, precisava de sua ajuda.
Voltei aonde ele estava, com a maior cara-de-pau. Tinha batido nele e agora lhe pedia o auxílio. Axton ajudava a mulher que tinha perdido meia perna a mudar de lugar. Aquilo era algo simples, que qualquer um podia fazer. Eu queria era o cosmos, o único cosmos capaz de salvar aquela gente. Eu já estava cansado demais para fazer tudo sozinho.
“Axton…”
Ele me olhou como se eu não lhe tivesse feito nada de errado, apesar de estar com um hematoma na cara.
“Você já está partindo para a vila? Espere só mais cinco minutinhos, eu vou ajudá-lo.”
“Está bem. Eu conto com você. Obrigado por… não ter mudado de idéia quanto à ajuda.”
“Não se preocupe. Posso não ser um cavaleiro de Athena, mas meu orgulho não me permite ficar longe dos problemas. Quem precisa de ajuda sou eu, não você.”
Pegamos o trenó e deixamos o local do acidente. Axton não perdeu tempo, preferiu correr junto ao trenó para não pesar a carga dos cães e assim ir mais depressa. Pensando bem, o motivo de ele ter procurado ajuda por meio do cosmos era justamente o ferimento dele. Por que eu não tinha pensado naquilo antes?
Levamos algumas horas para chegar à vila, com a esperança de que não houvesse pessoas em estado grave. Despachei o médico para a cabana que tinham me emprestado e rodei pelas ruas junto com Axton, enquanto alguns moradores gritavam:
“Lukian voltou! O curandeiro voltou! Há alguém em estado grave?”
Logo se reuniram pessoas, todas preocupadas com seus parentes. Eu tinha decidido seguir uma mulher, quando um homem apareceu às lágrimas:
“A minha mãe! Ela está mal, senhor Lukian! Pelo amor de Deus, ajude-nos! Eu acho que ela está morrendo…”
Então a prioridade era aquela mulher. Fui até a casa dela e parei ao lado da cama. O fedor de vômito era quase insuportável. A nora da senhora não sabia se limpava a sujeira ou se tentava impedir a constante tosse. Vesti a armadura, fui até o lado da cama.
“Axton!”
“Sim.”
O cosmos de meu parceiro fluiu abundantemente. Eu tinha poder de sobra para realizar a cura. Mas o estado do corpo da senhora era tão delicado… Eu não sabia se conseguiria. Fechei os olhos, mapeei com o cosmos todos os órgãos que falhavam. A doença estava espalhada, as células estavam morrendo numa velocidade impressionante, o coração estava… Estava…
Queimei meu próprio cosmos e lancei todo o poder extra sobre o corpo. Fui consertando, mexendo, melhorando… O coração batia fraco, muito fraco… Joguei o melhor da minha técnica, lutei contra o veneno no próprio sangue, tentei transformá-lo em outra coisa… Ela estava doente demais…
Parou.
Bati em seu peito, sem pensar direito, por mais de cinco minutos. Só o machuquei mais. Não dava mais.
Caí de joelhos no chão. Há quanto tempo estava lá? Meu corpo estava todo dolorido. E eu não tinha conseguido curá-la a tempo. Axton estava apoiado na parede, prestes a desmaiar. Ele tinha usado quase todo o cosmos naquela cura, e tudo fora em vão.
“Não deu certo?”, perguntou, um tanto sem fôlego.
“Não.”
“Você pode curá-la, não pode?”, perguntou o filho, temendo a confirmação.
“Sinto muito. Não consegui.”
Gritos. Choros abafados. O homem me agarrou pela camisa e me pediu para tentar de novo. Mas não dava mais. Eu nem tinha forças para curar outra pessoa. Sentei no chão e fiquei assistindo ao trágico espetáculo que não pude evitar. Era raro perder um paciente, mas às vezes acontecia. Talvez fosse o destino… ou minha incompetência.
“Vamos deixá-los”, disse Axton, em voz baixa. Era o que qualquer um faria: dar espaço para a família sofrer em paz. Era o que alguém de fora faria.
“Não. Eu vou ficar aqui mais um pouco.”
“Lukian…”
Ele me disse de uma forma reprovadora. Afinal, eu tinha outras pessoas para curar. Mas eu não podia sair ainda. De certa forma, eu era responsável por aquela morte. E Axton também. Para não incomodar o casal que sofria, gastei o exausto cosmos para conversar com ele.
‘Axton… Observe bem esta cena. Deixa um gosto amargo na boca, não deixa? Ver alguém que você podia ter salvado morrer… É a pior coisa nesta profissão minha. Eu me sinto bem quando curo pessoas. Mas quando falho, fico e observo bem. Eu não posso fugir disso, eu não posso deixar de sentir isso. Eu quero que a tristeza deles me traumatize fundo… para que isso nunca mais aconteça.’
Aparentemente, ele se acalmou. Axton também se sentou no chão, observou o desespero do filho da idosa e respondeu em silêncio:
‘Quando eu matava alguém, sentia a mesma coisa. Eu me odiava. Você não se odeia, Lukian?’
‘É claro. Mas o que posso fazer além de continuar? São os ossos do ofício.’
Passaram-se alguns segundos, até que Axton se levantasse e respondesse:
‘Sabe… Para enterrar seus erros, faça coisas boas. Pode não ser muito, mas é a única forma que eu conheço de redimir-me. Vamos, vamos curar os demais. A cura absorve o cosmos como um vampiro, mas não tenho o direito de parar. Vamos continuar, Lukian.’
Ele tinha razão. Não havia perdão verdadeiro para uma falha, mas nós podíamos tentar cobrir nossos erros com acertos. Pior seria se não fizéssemos nada.
‘Vamos. Temos vários doentes para tratar.’
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Eu jamais imaginei que os papéis se inverteriam. Curei os restos dos doentes e só precisei de uma única noite de sono. Em contraponto, Axton dormia há quase dois dias, completamente esgotado. Eu devia a ele. Todo o trabalho foi finalizado em algumas horas, nas quais curamos doentes sem descanso. Seria muito bom se eu pudesse curar cansaço.
“Ah…”
Voltei-me para a cama no canto do quarto. Axton tinha se sentado e agora esfregava os olhos com força.
“Estou com dor de cabeça. Você pode curá-la para mim?”
“Isso é porque você dormiu demais. Mas me surpreende o fato de pedir ajuda. O que mudou em você?”
“Você pode curar ou não?”
“Não. Você precisa é de um café para acordar de vez, isso sim.”
“Preciso ir para o leste. Mas… Estou tão cansado. Você estava cansado assim quando veio nos socorrer no acidente? Agora entendo perfeitamente como se sentiu quando eu o interrompi. É sempre assim?”
“Já estou mais ou menos acostumado.”
Ele sorriu, depois de esfregar o rosto mais uma vez. Era algo novo, considerando que Axton não sorrira uma única vez enquanto curávamos os doentes. Acho que ele tinha sentido um pouco o peso do meu fardo.
“Só um cavaleiro de Athena agüentaria isso sem reclamar. Imagino que você só receba missões de cura, não é?”
Missões? Há quantos anos não recebia uma missão?
“Não… O Santuário só me manda matar pessoas.”
“O quê?”
Axton tornou a ficar sério e sentou-se na cama. Eu cometera um erro: não devia ter dito algo que não mais era verdade.
“Ele te manda matar pessoas, quando há outros para fazer esse tipo de serviço? Não pode ser… Digo, há algo de errado com a deusa para fazer isso com você?”
Ali estava encurralado. Devia dizer a verdade? Axton não parecia ser indiscreto o bastante para sair contando a meio mundo.
“Não… a verdade é que… a verdade é algo que não deve se espalhar.”
“O que foi? Você é amante de Athena?”
Que blasfêmia! Axton riu, mas acabara de proferir uma blasfêmia!
“Você não pode falar isso nem brincando, Axton!”
“Eu sei, eu sei…”, respondeu ele, ainda rindo. “Sua verdade então não é pior do que eu supus. Você acabou de me provar que venera a deusa. Então, qual é o problema? Por que eles não dão a você missões adequadas ao seu poder?”
Suspirei. O que aconteceria se eu contasse? Ele poderia denunciar a minha posição ao Santuário ou fazer coisa pior, não podia? Afinal, ele era muito mais poderoso do que eu. Olhei mais uma vez para aquele estranho sujeito que ria descontraidamente, querendo saber de uma verdade que, para ele, era aparentemente inofensiva.
“Você pode não ser um cavaleiro, mas tem relação com o Santuário. Promete que não me prejudicará pelo o que vou dizer agora?”
“Não costumo fazer muitas promessas”, disse ele, meio distraído. “Mas se você insiste tanto, é bom que seja uma boa resposta.”
Ele de fato não achava que era nada de mais. Suspirei e pensei bem. Não voltaria atrás. Afinal, ele me ajudara a curar as pessoas da vila.
“A verdade é que eu sou um desertado do Santuário. Fui jurado de morte por ele.”
Finalmente a seriedade voltou a Axton, que me olhou surpreso.
“Você?”
“Sim. Qualquer cavaleiro que me encontre tem a obrigação de matar-me.”
Houve um intervalo de alguns segundos até a resposta de Axton. Por essa ele não esperava mesmo.
“Matá-lo seria a última coisa que um cavaleiro deveria fazer!”
Fiquei abismado. Ele não era um cavaleiro, mas falava como se estivesse na posição de um. O que valia a sua palavra, quando ele não era nada do Santuário?
“Lukian, isso é inconcebível, completamente inconcebível. Athena jamais permitiria isso! Sua punição por ser desertado deveria ser uma missão de cura, uma missão bem trabalhosa. Mas matá-lo, quando você é o único entre os cavaleiros de Athena com uma técnica de cura tão desenvolvida? Nem mesmo eu, que tenho mais cosmos, sou capaz de ajudar tantas pessoas como você. Matá-lo seria o maior erro da deusa! Eu mesmo vou conversar com ela sobre isso, você não morrerá desse jeito…”
“Pare com isso!”
Era nisso que dava contar aos outros. Sempre havia essa vontade louca de anunciar ao mundo que eu era uma espécie de santo…
“Mas…”
“Axton, eu disse chega. Pode ser que eu tenha uma série de desvantagens por ser um desertor. Mas eu ainda prefiro viver assim.”
“Por quê isso?”
“Porque eu não quero nunca mais derramar o sangue de ninguém! Nunca mais!”
Será que agora ele entendia? Axton ficou me olhando como se eu dissesse algo errado. Mas eu não me importei.
“Eu já matei muita gente antes de virar um curandeiro. A minha técnica de cura era antes uma arma de guerra, uma terrível arma que já acabou com dezenas de adversários. E não pense que isso foi por minha decisão. Eu só estava seguindo as ordens do Santuário. Houve uma época assim, em que meu cosmos servia apenas para matar pessoas… Eu não me arrependo de ter servido à deusa e ao Santuário, mas chegou um momento em que não quis mais fazer isso. Foi quando eu desertei. Não atendi mais aos chamados do Santuário. Depois disso, assassinos foram mandados atrás de mim. Felizmente, eu escapei com vida, fugindo feito um covarde.”
“Isso foi antes ou depois de a senhorita Kido assumir o devido posto da deusa Athena?”
“Antes, é claro. Eu não duvido da bondade da deusa. Eu sei que o Santuário não é mais um lugar de sangue como antes. Mas não podemos negar que os cavaleiros de Athena, em primeiro lugar, são guerreiros. A minha resolução foi ser um curandeiro, não um guerreiro. Eu ainda sei lutar, mas não quero mais. Eu quero servir os homens com minha técnica de cura, que é rara entre os guerreiros.”
“Então por que não renuncia a sua armadura para um discípulo e vive como servo? Assim, a deusa só lhe dará missões de cura.”
“É porque eu preciso do poder da minha armadura para curar pessoas. Você vê? Enquanto eu precisar dela, serei um cavaleiro. Mas não quero lutar. Quero apenas curar. Você deve saber que, mesmo que a deusa me dê apenas missões de cura… Sei que, em algum momento, terei de derramar o sangue de alguém em alguma missão.”
Axton enfim engoliu a verdade. Desviou o olhar, de forma que não pude ver sua expressão.
“Agora entendi…”
Devia ser difícil para ele crer que ser um desertado era a melhor opção, mas eu tinha motivos para viver assim.
“Por favor, não denuncie a minha posição para o Santuário. Eles já me enviaram assassinos demais.”
“Não se preocupe. Ninguém irá prejudicá-lo se depender de mim, Lukian. A única coisa que me intriga é você se sentir bem nessa situação. Não dá a impressão de que sua vida como cavaleiro é um episódio mal acabado?”
“Ela é um episódio mal acabado. De fato, dá um incômodo, mas ainda acho minha vida de agora melhor do que a de um cavaleiro regular. A deusa tem azar por seu cavaleiro de Grou ser um covarde que não pode morrer. Acho que um dia terei de voltar para lá e acertar minhas contas com ele. Minha punição não será nada leve, tenho certeza disso.”
“Não acho isso” respondeu Axton, sorrindo de novo. “Pode ser que você só esteja fazendo uma tempestade num copo de água. A deusa Athena é tão gentil com todos… Além disso, você está perdendo a chance de conhecer uma beleza e tanto.”
Eu ri com ele comecei a preparar um café. Era tudo o que podia fazer para ajudar na tal dor de cabeça.
“Bem que eu ouvi sobre isso. Afinal, Athena concorreu com Afrodite pelo posto de deusa mais formosa. Seria estranho se não fosse bela.”
“Eu não me importaria de receber um castigo dela.”
Rimos. Posto daquele jeito, apresentar-me ao Santuário não era tão má idéia assim. Mas ainda não era o suficiente para convencer-me.
“Talvez eu volte… um dia.”
“Se voltar, avise-se. Sairemos para beber.”
“Não quer fazer isso hoje? Afinal, finalmente terminamos o trabalho aqui.”
“Não… Agora que está tudo bem, vou rumo ao leste. Preciso ir visitar outro cavaleiro lá, um tal de Hyoga. Mas não se preocupe, não vou denunciar a sua posição.”
Então eu tinha sido salvo pelo Hyoga? Isso nos deixava quites.
“Não se incomode com ele. Diga um olá a ele por mim. Já faz um tempo que não nos vemos.”
“Vocês são amigos?”
“Eu já curei pessoas da aldeia dele. Digamos que ele finge que eu não existo. Como cavaleiro, ele tem a obrigação de me matar, mas tem adiado esse trabalho… por mais de um ano.”
“Mais de um ano… Vocês siberianos gostam de situações instáveis, não? Se há algo que devo lembrar dos cavaleiros siberianos é que eles gostam de estabilizar situações instáveis. Não se pode dizer que vocês são covardes, mas… Vocês fogem do coração do problema. Quanto a mim, passo os dias correndo atrás dos meus problemas mal resolvidos.”
“E assim os dias vão passando, e você vai perdendo tempo, não? Não tenho nada contra o fato de você confrontar o passado, mas tenha certeza de que alguém está sendo beneficiado com isso, nem que seja você mesmo. Sou contra essa coisa de desenterrar feridas antigas só para sangrá-las de novo.”
“Não sei se estou beneficiando alguém com isso. É o tipo de coisa que só saberei ao final de tudo.”
Era curiosa a jornada daquele sujeito. De qualquer forma, sua passagem permitiu-me curar muito mais em pouco tempo. Já podia considerar aquela viagem útil para alguém, não?
“Volte para me contar sobre isso depois. Quando pretende partir?”
“Hoje mesmo, se achar algum dinheiro por aí. Você acha que algum dos pacientes me faria alguma doação?”
Quanto às finanças, Axton era exatamente igual a mim, até pior. Resolvi que uma ajuda extra não me seria nenhum mal. Peguei a carteira do bolso, tirei um bolo de notas, suficiente para sustentá-lo por um mês numa pensão média. Era o que eu recebera por ter curado a filha de um empresário estrangeiro, há alguns meses. Eu não precisava de tudo aquilo mesmo.
“Pegue.”
“Você é alguma espécie de banco? Eu nunca poderei pagar tudo isso de volta.”
“É a sua parte do serviço. Você me ajudou a curar as pessoas da vila. Estou pagando pelo serviço.”
“Você não cura pessoas de graça?”
“Na maior parte das vezes, sim. Quando alguém pergunta quanto custa uma sessão de cura, respondo: O quando você quiser. Suponho que algumas pessoas fiquem tão gratas ao ponto de me dar todo o dinheiro. Pode ficar com esse aí. Só fica pesando no bolso.”
Axton sorriu, guardou o dinheiro no bolso.
“Sempre que precisar de ajuda, me chame. Serei seu banco de cosmos.”
Depois de beber uma xícara bem cheia de café, o andarilho meteu as canelas na neve e foi a pé mesmo, sempre ao leste. Ele levaria meses até a casa de Hyoga naquele ritmo, mas veria tudo de perto, todo o caminho até lá. Acabei gostando de seu estilo. Quem me dera um sujeito daqueles fosse o mestre do Santuário… Assim teria a certeza de que meu retorno não seria amaldiçoado.
Terminei de preparar meu café da manhã. Antes de começar mais um sessão de cura para mim mesmo. Não me importaria de levar aquela vida até a morte, não mesmo.
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Cena extra ^-^
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Lukian: Oh, senhor prefeito… Seja bem-vindo.
Prefeito: Deixemos as formalidades para depois. Você me deve dois meses de aluguel.
Lukian: Mas eu pensei que você tinha me emprestado a cabana de graça…
Prefeito: Não, nós sempre cobramos pelo aluguel dela. E então? Você tem o dinheiro?
Lukian: Er… Eu já volto.
Axton: He he he… que sorte.
Lukian: Axton! Devolva o meu dinheiro! Eu preciso dele urgente!
Axton: Seu dinheiro? Er… claro, claro… Aqui está!
Lukian: O que é isto?
Axton: Uma boneca russa.
Lukian: E…?
Axton: O seu dinheiro tá aí.
*Lukian abre as bonecas*
Lukian: Está vazio!
Axton: Não… Eu quis dizer que usei o seu dinheiro para comprar a boneca russa!
Lukian: Você gastou o meu dinheiro… para comprar um souvenir…?
Axton: Não é legal? Eu sempre quis ter uma dessas!
Lukian: EU TE MATO!!!
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