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[Lost Canvas] Se a deusa da sorte sorrir - Capítulo 1, escrita por Nemui

Capítulo 1 – Capítulo 2 – Capítulo 3
Autora: Nemui
Fandom: Saint Seiya - The Lost Canvas
Gênero: drama, aventura
Classificação: 12 anos
Status: completa
Resumo: Uma série de assassinatos relacionados a jogadores de dados leva Sísifo a uma investigação próxima ao local onde supostamente encontraria alguma pista sobre o paradeiro da deusa Athena.

Sísifo sentou-se sobre uma pedra larga em uma encosta, próximo à Península Itálica. Acalmou o coração, fechou os olhos e buscou escutar a natureza em volta, tal como seu irmão lhe ensinara. Aquele processo permitia-lhe expandir o cosmos de forma discreta com mais facilidade e rastrear outras energias locais; do rato que mordia sua sacola ao urubu rodeando uma presa ao longe. Buscou, dentre essas vidas, um cosmos mais forte, em movimento. Havia um, bem distante, mas indubitavelmente poderoso. Devia ser ele.

Abriu os olhos, espantou o rato e pegou a sacola, pondo-se novamente no caminho. Tinha a missão de localizar o dono de uma cosmoenergia poderosa, agindo na mesma região em que a reencarnação de Athena havia renascido. Ainda não sabiam se era de uma força amiga ou inimiga, de modo que precisava avançar com cuidado, sem se revelar. Por isso, sempre utilizava a menor quantia de poder possível para não levantar suspeitas.

Ao mesmo tempo em que atendia àquela missão, fora incumbido de realizar mais um trabalho: investigar uma série de assassinatos naquela mesma área, que podia estar relacionada ao portador do desconhecido cosmos. Por esse motivo, achou que resolveria ambos os problemas se encontrasse seu alvo antes de tudo. Quanto mais cedo terminasse aquela missão, mais cedo retomaria sua tarefa mais importante: encontrar a deusa Athena.

O dono do cosmos estava em uma vila na qual já havia passado alguns dias, constituída principalmente de fazendeiros que se reuniam de tempos em tempos para uma feira. Havia alguns residentes, porém, que trabalhavam com artesanato ou construção. Sísifo sempre encontrava ali alguém disposto a alugar um quarto para dormir, o que podia explicar a localização do desconhecido.

Começou a caminhar calmamente na direção dela, pois não queria apressar seu trajeto com cosmos e ser descoberto. Um homem passou com carroça na mesma direção, e ele aproveitou para pedir uma carona, que foi aceita em troca de uma boa conversa.

“É bom que não se arrisque nas estradas à noite. Mesmo sendo um homem forte, o assassino não escolhe gordo ou magro, homem ou mulher. Toda semana alguém aparece morto.”

“Há algo de comum nessas mortes todas?”

“Todas elas aconteceram à noite, e os corpos foram encontrados de manhã, num lugar bem evidente, como rua comercial ou praça da vila, sabe? Não é um beco qualquer, é um lugar onde todos veem o que aconteceu. E o estado dos miseráveis? É de lamentar, senhor! Todos dilacerados!”

“As vítimas se conheciam?”

“Não sei dizer, apesar de muitos se conhecerem nestas bandas. Ah, mas uma coisa que deixou os jogadores com medo. Havia um dado no bolso de cada morto.”

“Todos eles eram jogadores?”

“Se não eram, estavam relacionados. Uma moça que morreu era filha do dono da casa de jogos da vila. Todos estão achando que foi um apostador bêbado lá, mas adivinha: as mortes continuaram. Agora estão falando que ele é uma criatura do demônio e que nenhuma prisão é capaz de detê-lo. Por outro lado, a guarda diz que ele passa a noite dormindo. Mas e o espírito, as pessoas perguntam? É aí que está!”

A velha crença de que os espíritos dos vivos podiam andar pela noite… ou que o demônio abandonava o corpo para cometer seus crimes. Para Sísifo, nada daquilo era crível, apesar de ser extremamente religioso quanto à Athena. Prezava a razão em suas missões e estava crente de que o tal prisioneiro era apenas um pobre infeliz, confundido com o verdadeiro criminoso. De qualquer forma, aquela conversa rendera tão bem que deu uma moeda ao fazendeiro, dizendo ser o preço pela carona.

“Vê se dá um bom prêmio ao cavalo que me carregou depois!”, despediu-se, ao chegar à vila, lembrando o animal de carga. Muitos não se importavam tanto com seus parceiros, apesar de estes serem na maioria dóceis e preocupados com seus donos. Segundo seu irmão, muitos eram maltratados, mas ainda carregavam o sentimento de afeição com relação aos humanos que os espancavam.

Saiu procurando o dono do cosmos, apesar de estar mais intrigado com a série de assassinatos. De acordo com o grande mestre, havia uma energia negativa rondando aquela área, o que poderia ser arriscado à Athena, onde quer que ela estivesse. Assim, resolver aquele caso era também um assunto importante ao Santuário, apesar de não parecer fugir da realidade dos humanos comuns.

Não sentia mais nenhum traço de cosmos. Procurou por um lugar tranquilo, meditou e tentou expandir seu poder da forma mais discreta possível, mas não percebeu nada. Isso podia significar que seu alvo não mais se encontrava ali ou que havia notado a sua presença e neutralizado seu cosmos para não ser descoberto. Suspirou. Não seria tão fácil encontrá-lo naquelas condições.

Decidiu parar para lanchar antes de continuar sua investigação. Não havia comido nada desde o dia anterior e há dias não tinha tido uma refeição completa e decente. De acordo com suas experiências anteriores, o melhor lugar era um bar, sempre cheio de bêbados, mas com excelente comida e um preço baixo. Só precisava tomar cuidado para não tentarem roubar sua bagagem como quase aconteceu na última ocasião. Talvez fosse uma boa oportunidade para reunir informações.

Ao abrir a porta do bar, precisou dar passagem para um bêbado, que saiu cambaleando e xingando algo ininteligível. Havia um cheiro forte de álcool no ar, mas nenhum baralho ou dado sobre as mesas. Os homens apenas conversavam, reclamavam do trabalho ou da vizinhança, enquanto entornavam as garrafas, uma após a outra. Sísifo buscou uma mesa vazia e pediu pela refeição, sem álcool, o que atraiu olhares desconfiados. Era raro alguém não beber ao menos um vinho naquele lugar. Contudo, evitava ao máximo beber quando precisava realizar uma missão, com receio de que a substância afetasse seus sentidos. No Santuário, porém, em horas vagas, passava horas conversando e bebendo com Hasgard, ainda que com moderação.

“Só estou de passagem pela vila”, comentou para o dono do bar, “mas soube das mortes. Que coisa, hein? Na última vez que vim aqui, várias mesas eram ocupadas pelos dados.”

“Estão todos com medo. Na verdade, o movimento por aqui até caiu, ou você não teria encontrado uma mesa vazia tão fácil. De qualquer forma, sugiro que não viaje à noite, senhor. Todas as mortes acontecem no escuro.”

“Bem, se o tal assassino pode atravessar paredes, tanto faz eu estar acampado ou num quarto.”

“De qualquer forma, deve tomar cuidado. Eu tenho quartos para alugar. Quer um para a noite?”

“Não é uma má ideia. Reserve até a tarde, talvez eu volte.”

“Ninguém virá, isto é bem vazio, e só tenho um hóspede no momento.”

“Certo. Tem alguma informação mais interessante sobre as mortes? Sei do cara que está preso, e que todos estão relacionados a jogos de dados. Mas tem mais algo que não sei?”

“Olhe, eu evito falar, porque, como pode ver, muitos costumavam jogar dados aqui… Não quero me comprometer.”

“Entendo.”

“Apenas coma quieto em seu lugar.”

“Ok. Desculpe o incômodo.”

Provavelmente outros também ficariam com medo de falar. Sísifo então se concentrou na refeição. O frango de lá era bem temperado, embora o pão não fosse muito fresco. Apesar disso, era o melhor lugar para comer naquela vila. Ao menos a sopa era quente e rica, o que devia sustentá-lo bem pelo resto do dia. Pensava em procurar mais informações na igreja, levando em conta que o sujeito preso era considerando o demônio pela população local.

Mas isso só seria depois daquele momento de descanso. Tirou um livro da sacola, uma cópia de uma biografia de um ex-cavaleiro, que se aposentara há mais de vinte anos. Seu nome era Blasios de Eridanus, um respeitado cavaleiro de prata, da mesma época que seu irmão. Histórias como aquelas eram inspiradoras e ajudavam-no a refletir sobre sua própria postura como cavaleiro de Athena diante de outros do Santuário. Acabara se tornando uma agradável leitura, com descrições detalhadas das missões e das técnicas de Blasios, como o Triton’s Blade, capaz de transformar qualquer gota de água numa afiada agulha.

Estava concentrado na leitura enquanto se alimentava, quando uma gorda garrafa de vinho foi posta na sua frente, junto com um copo. Um estranho sentou-se na cadeira oposta na mesa, sorrindo e com olhos desafiadores. Era um rapaz, talvez com idade próxima, de cabelos pretos curtos, rosto fino e um corpo musculoso.

“Posso te oferecer uma bebida?”

“Como vou saber se isso não está envenenado?”

Para provar, o desconhecido entornou a garrafa goela abaixo e, depois de alguns goles, despejou o vinho no copo para Sísifo.

“Viu? Nem um pouco envenenado. Está uma delícia. É uma ofensa entrar num bar e não beber álcool. Me deixe pagar essa.”

“E… por que você pagaria para um sujeito que nunca viu na vida?”

“Ele vive fazendo isso”, disse o dono do bar. “Passa o dia pagando pra qualquer um. Mas pagar pelo aluguel…”

“Eu só gosto de boa companhia! E então, cara? Não vai beber? Um brinde aos novos amigos. E, talvez, enquanto bebemos, podemos nos divertir um pouco, não?”

O rapaz soltou dois dados sobre a mesa, o que fez todos do bar voltarem os olhos para eles. Alguns se levantaram.

“Eu é que não fico perto da próxima vítima”, comentou um velho.

“Nem eu.”

“Ei, você está espantando os meus clientes”, reclamou o dono do bar.

“Ora, esses caras é que ficam com medo à toa. Nada vai acontecer. Então, como é que é, meu amigo? Aceita este desafio? A bebida é por minha conta!”

Sísifo cogitou dar a resposta padrão; de não beber por estar trabalhando. Contudo, por que um desconhecido viria justamente com dados, uma pista importante de sua missão? Acontecimentos assim nunca surgiam por acaso e, às vezes, podiam ser um golpe de sorte ou sua deusa ajudando de alguma forma.

“Não posso gastar meu dinheiro com apostas, ele é do grupo para o qual trabalho. Se não se importa de jogarmos por diversão…”

“Eu não me importo. Jogamos com milho! Eu não jogo há tempos! A propósito, o meu nome é Akakios.”

O cavaleiro guardou o livro, aceitou o copo e bebeu parte do vinho.

“Eu sou Sísifo. Comecemos o jogo, então.”

Conhecia as regras, por ter jogado às vezes com seus homens na taverna no Santuário, como parte importante de obter entrosamento com eles. Contudo, evitava ao máximo essa prática, pois sabia de histórias trágicas envolvendo o mundo das apostas, mesmo dentro do Santuário, como homens que apostavam posses de parentes próximos pelo vício do jogo.

Nas primeiras rodadas, Akakios mostrou-se extremamente azarado. Perdeu todas as cinco rodadas, enquanto Sísifo, nas suas vezes, perdeu duas. O número só foi piorando com o avançar da tarde, enquanto o cavaleiro tentava tornar aquele tempo mais produtivo, buscando informações.

“Você, que está nessa de jogar dados, deve saber sobre os assassinatos. Conhece as vítimas?”

“Sim, conheço boa parte delas. Pobre Giorgio, ele era meu amigo. Um azarão, mas adorava jogar. Eu estava lá quando vi seu corpo num estado, francamente, lamentável. Morte brutal aquela.”

“Não tem medo de ser a próxima vítima?”

“Não tenho medo. Eu tenho é raiva. Agora ninguém quer mais jogar dados comigo, nem por diversão. Vou continuar jogando, e, se o tal assassino aparecer na minha frente, ele vai ouvir de mim. É ele quem deve tomar cuidado. Oh, perdi de novo. Estou azarento mesmo! Sua vez.”

“Sabe de alguma motivação para matar essas pessoas? Alguma inimizade, briga ou algo do tipo?”

“Há brigas regulares neste mundo. Nem todos prometem o que podem pagar, daí alguns “acidentes” acontecem, se é que me entende. Mas esses episódios são óbvios e facilmente explicáveis. O que está acontecendo é diferente. Veja a pobre e doce Marzia! Quem não amava a garota? Trazia os melhores lanches, eu te garanto. Todo mundo a amava! Todos a protegiam! Por que diabos matariam a coitada?”

“Quem era ela?”

“A filha do senhor Gasparo, o dono da casa de jogos. Ele não a reabriu até agora, e diz que provavelmente mudará de negócio. Pobre homem, quem pode culpá-lo? Imagine, Sísifo, perder a filha da finada esposa, uma garota linda, doce, delicada, que todos da casa amavam. Eu te garanto, nenhum apostador lá tinha qualquer coisa contra ela, todos gostavam muito dela. E uma coisa dessas acontece… Falaram de ir atrás do assassino, um grupo tentou encontrá-lo. Poucos acham que foi o Romano.”

“Romano é o que está preso?”

“Sim, só porque ele estava perto de dois dos locais onde encontraram os corpos. Mas eu vou te dizer: não é ele não! Ele é só um perdedor bêbado, que ultimamente nem andava mais jogando por não ter dinheiro. Um cara de paz, nunca fez mal a ninguém. Bem, ao menos ele está se alimentando bem na prisão.”

“E quanto a você? O que pensa disso tudo?”

“Eu já disse o que penso. Quero encontrar o desgraçado e dizer umas boas para ele. Por causa dele, minha diversão foi pro brejo, ninguém quer mais jogar comigo… Você ganhou de novo. Está com sorte, hein? O grande problema, Sísifo, é que as mortes vão continuar acontecendo se ninguém fizer nada… Então eu continuo jogando, até que ele venha até mim. Quero ver tentar me matar. Eu sou magro, mas sou forte o bastante para derrubá-lo. Sou um mercenário, sabe? Vendo a minha espada para o que for necessário… Mas, em geral, faço mais escolta.”

“Em tempos de paz como este, não há muita demanda para o seu trabalho, não é? Como consegue dinheiro para sustentar o jogo?”

“Eu nunca me descontrolo. Além disso, algumas pessoas pedem escolta; não pela proteção, mas para carregar coisas, como os idosos. Consigo dinheiro suficiente assim…”

Havia uma ponta de incerteza na última frase? Sísifo decidiu desviar do assunto e voltar-se para o jogo:

“E você é sempre azarão assim? Perdeu de novo.”

“Não sou, não sou! Até que tenho sorte. Sabe o que é? Parece que a deusa da sorte só sorri para mim quando tem dinheiro envolvido. Quando é por diversão, parece que ela desconta toda a minha sorte!”

Akakios gargalhou e tomou mais um gole do vinho, que já consumira em boa parte. Pequenos sinais de embriaguez já eram visíveis em seus gestos. Sísifo prosseguiu com o jogo, achando aquela conversa bastante útil.

“Heh, então que tenha sorte quando resolver apostar dinheiro vivo. Voltando a esse tal assassino, que outras vítimas você conheceu?”

“Vincente! Ah, pobre homem! Esse era soldado como eu, mas não dos fortes. Barriga de sobra, entende? Mas ele fazia a guarda nos campos não muito distantes daqui, era um homem de paz! Muito sortudo. Mesmo a família não ligava, porque era difícil ele perder muito dinheiro. Mesmo assim, era muito carismático e a maioria gostava dele. Sempre pagava vinho pra gente! E você vê, ele é a prova de que não deve ser problema de dívida. Ele não era esse tipo de jogador, entende?”

“Sim… É mesmo um caso intrigante…”

Uma menina, com não mais de seis ou sete anos, veio descendo as escadas do bar e parou ao lado de Akakios.

“Você não vai subir, Akios?”

O rapaz virou-se para ela e fez um cafuné em sua cabeça.

“Daqui a pouco, Chi. Tenha um pouco de paciência, sim? Ah, Sísifo, esta é a minha irmãzinha, Chiara. Cumprimente o senhor Sísifo, Chi.”

“Boa tarde, senhor Sísifo.”

“Boa tarde, minha jovem. Então vocês estão hospedados aqui?”

“É”, respondeu Akakios. “Não faz muito tempo, fomos expulsos de nossa casa. Mas o senhor Savio dá um bom desconto em troca de uma ajuda nas horas mais cheias do bar… Mudando de assunto, Sísifo, o que me diz de uma ou duas rodadas com dinheiro vivo para darmos um pouco de emoção ao jogo? Nem precisa ser um valor alto, é só pelo gosto da aposta. Hoje estou bem azarento, então provavelmente sairá no lucro!”

Sísifo não pôde deixar de notar a magreza de Chiara, demasiada até para uma criança. Já havia entendido qual era a estratégia do jovem jogador e acabou aceitando, apesar de seu dinheiro pertencer ao Santuário. Às vezes, o coração falava mais alto:

“Tudo bem. Só mais uma rodada. Eu aposto o valor desse vinho e o jantar para a jovem Chiara, o que me diz?”

“Isso é bem específico.”

“Ah, senhor Sísifo, não deveria…”, comentou a menina.

“Não se preocupe, eu sei o que estou fazendo, minha jovem”, respondeu o cavaleiro, num tom gentil. “Nunca aposto nada que eu não esteja disposto a pagar. Vamos, Akakios, jogue os dados.”

Com seu número da sorte fixado em oito, Akakios rodou as peças, que frequentemente davam dois ou três, o que o levava a perder. Contudo, o resultado foi um seis e um dois, o que o levou a vencer logo na primeira jogada.

“A deusa da sorte realmente sorri para você quando está apostando dinheiro vivo”, comentou Sísifo, sorrindo. “Ei, senhor! Pode dar um prato completo para a senhorita Chiara? Pode pôr na minha conta. E mais um vinho igual a esse para o Akakios, por favor.”

“Rá, eu bem avisei que sou sortudo com apostas reais!”, comemorou Akakios. “Beba mais, Sísifo, vamos comemorar a minha vitória.”

“Eu já bebi o bastante, obrigado. Eu sei que perdi, mas, em troca do meu pagamento, poderia me dar mais detalhes sobre as outras vítimas do assassino? Estou muito interessado nesse caso.”

“É claro, é claro… O que não faço por novos amigos?”

A refeição à jovem logo veio, enquanto Sísifo ouvia sobre cada uma das vítimas que eram conhecidas pelo mercenário. Todas eram de perfis variados, de modo que dificilmente podia se tratar de qualquer vingança relacionada às apostas. Seria o caso de ódio com relação a todos os jogadores?

“Acho que bebi demais”, comentou Akakios, a certa altura. “Eu já volto.”

Sozinho com a criança, Sísifo notou que ela mal tocara na comida. Sorriu:

“Não gosta do sabor, minha jovem?”

Chiara rodeava com a colher em torno do prato, insegura:

“Não é isso… É que… Eu não estou com muita fome.”

“Eu sei que o Akakios roubou no jogo para ganhar”, revelou o cavaleiro. “Eu notei bem antes que ele estava perdendo de propósito para me fazer crer que valia a pena apostar dinheiro vivo. É por isso que apostei um prato de comida para você, que está tão magrinha. Portanto, pode comer sem se sentir culpada. Eu quis pagar essa refeição para você.”

Sua explicação foi recebida com um aliviado sorriso, e ela pôs-se a comer com vontade. Provavelmente os irmãos estavam passando por momentos difíceis para se sustentar.

“Você não gosta que ele roube nas apostas, não é?”

“Não… Mas ele diz que é preciso pra termos comida.”

“Isso é só até ele conseguir trabalhos melhores. Tenho certeza de que se preocupa muito com você.”

“Obrigada, senhor Sísifo. O senhor tem um bom coração.”

“Eu acho que você tem um bom irmão, pequena. Na última jogada, ele pareceu mais desesperado para ganhar, tanto que foi mais fácil perceber que ele estava roubando. Ele se preocupa muito com você.”

A criança sorriu, e Akakios logo retornou, mais alegre. Propôs continuarem o jogo, mas Sísifo recusou, dizendo que precisava trabalhar. Despediu-se dos irmãos e deu prosseguimento à sua investigação.

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O padre responsável pela igreja estava aguardando alguma decisão da central sobre como proceder com Romano, o jogador preso e acusado dos assassinatos impossíveis. Como não conseguia mais sentir o cosmos de seu alvo, Sísifo decidiu investir no caso dos homicídios e depois continuar sua busca.

“Quais são as chances de o Romano ser o verdadeiro culpado, na sua opinião?”, perguntou para o padre.

“Sinceramente? Acho que são poucas. Ele sempre foi muito religioso e submisso a Deus, apesar do vício com jogos de azar. Para ser franco, fiquei surpreso… Contudo, a chance não é nula, nunca é. Sempre existe a possibilidade de estarmos sendo enganados; assim como jogadores costumam usar dados viciados para ganhar as apostas.”

Aparentemente, o padre também duvidava de uma intervenção sobrenatural ali. Depois da igreja, Sísifo foi à prisão e solicitou autorização para conversar com Romano, que foi aceita, por conta de sua relação com o Santuário. Dirigiu-se à cela e encontrou o homem enrolado num cobertor marrom, no canto do cubículo. Pelo olhar, parecia estar constantemente com medo. Seu rosto tinha marcas roxas, o que indicava ter passado por maus tratos ali.

“Olá, senhor Romano. Sei que não me conhece. Meu nome é Sísifo. Estou investigando o caso dos assassinatos em série.”

“Por favor, vá embora…”, respondeu o pobre homem, com voz chorosa. “Quantas vezes preciso repetir? Eu não matei ninguém… Por favor, acredite…”

“E se eu disser que acredito?”, respondeu Sísifo, com gentileza. “Não se preocupe, eu não vou te machucar. Só quero conversar com você e entender o que sabe sobre esse caso… sem julgamento. Hoje, estive no bar e joguei um pouco com Akakios. Provavelmente o conhece, porque ele disse conhecê-lo…”

“Akakios? Aquele ladrão… Não sei como ele rouba, mas rouba.”

“É, também achei isso. Mas vê? Eu não quero te machucar. Eu só quero conversar e saber mais sobre isso tudo. Você estava por perto nos dois primeiros casos. Poderia me contar se notou alguma coisa estranha nessas ocasiões? Qualquer coisa serve…”

“Eu não sei… E digo a verdade. Tenho vergonha de confessar, mas estava muito bêbado nas duas vezes, então não consigo me lembrar direito de nada com muita clareza…”

“Entendo. Fale das vítimas. Quem eram e qual sua relação com elas?”

“O primeiro foi o velho Narciso. Ele sempre foi um excelente amigo, de jogos e de copos. Pagava meu vinho sempre! Até me ajudou a pagar uma dívida. Eu estava devendo para ele de um jogo, mas nossa relação sempre foi amigável. E ia pagar, estava trabalhando em dobro. O problema é que, quando trabalho muito, bebo mais… Por isso dizem que eu sou culpado, porque devia dinheiro para ele e porque não lembro o que aconteceu à noite. Como os investigadores dizem, tenho medo de ter feito e de não lembrar. Mas eu não acho que fiz, senhor, não acho! Por favor, acredite em mim… Eu juro por Deus.”

“Existe alguém do mundo dos jogos que tinha inimizade pelo Narciso? Alguém que quisesse muito matá-lo?”

“Não consigo me recordar de ninguém em especial. A esposa dele não gostava que jogasse, mas, quanto ao resto, eles se davam muito bem. E ela brigou comigo chorando, achando que eu sou o culpado. Então, não, não sei quem pode ter feito isso.”

“E no segundo caso? Você também não se lembra de nada?”

“Eu só sei que haveria um jogo entre os grandes naquela noite, naquela região. Perdedores ou pobres como eu e o Akakios não temos permissão de entrar nessas sessões. O segundo assassinado estava presente nela. O nome dele é Salvatore.”

“O Narciso também tinha acesso a essas sessões?”

“Em algumas, sim. Mas outros mortos já não eram parte desse grupo, então não acho que estejam relacionados a ele.”

“Muitas vezes, a primeira morte é importante, porque ela é o gatilho para descobrirmos quem é o verdadeiro culpado.”

“O senhor acredita mesmo que eu não sou o culpado…”, comentou Romano, que saiu do canto da cela e veio para perto da grade. “Por favor, descubra quem é o verdadeiro assassino. Eu imploro! Eu posso não ser um bom homem, mas juro que não sou capaz de matar ninguém…”

“Eu vou investigar isso a fundo, não se preocupe. Mantenha-se forte enquanto tento resolver tudo. Há algo a mais que você acha que pode me ajudar?”

“Se precisar de ajuda para saber mais sobre os jogos, procure Fortunato! Ele também acredita em mim e também costumava ser um apostador até há algum tempo! Ele sabe tudo que você pode precisar sobre jogos de dados. Diga que eu pedi para ajudá-lo. Ele trabalha como carpinteiro na vila.”

“Entendi. Muito obrigado por sua colaboração, Romano. Espero que consigamos alcançar a verdade dessa série de matanças.”

“Eu também, senhor Sísifo. Muito obrigado por sua confiança.”

Apesar de Sísifo não confiar nele. Tentar não mostrar desconfiança era a melhor forma de fazer um suspeito falar e soltar possíveis pistas. Despediu-se educadamente e pensou em ir atrás do tal Fortunato. Mas, como já era tarde, resolveu aceitar o quarto do bar e descansar. Estava interessado, também, em Akakios, e em como ele se esforçava para continuar jogando, apesar dos riscos e da presença da irmã. Queria estar por perto caso algo acontecesse aos irmãos.

——————————————————–

À noite, pediu à esposa do bar uma garrafa pequena de vinho e alguns pães doces e foi até o quarto que os irmãos ocupavam. Apenas Chiara estava presente, já com um pijama. Havia ali uma só cama e uns cobertores esticados no chão, ao lado. Surpresa, a garota não sabia se podia aceitar o mimo.

“Meu irmão está lá fora… Espera um pouco!”

E, indo até a janela, pôs-se a chamar:

“Akios! Akios, venha!”

O mercenário desceu rapidamente do telhado, com o rosto um tanto pálido. Ao ver Sísifo carregando os pães, pareceu mais tranquilo.

“Ah, é você. Que susto, Sísifo! Pensei que o assassino tivesse entrado no quarto!”

“Perdão, não era a minha intenção assustá-los. É que eu pedi à dona do bar que fizesse um doce para a noite, e ela assou esses pães. Acabaram de sair, e pensei em dividi-los com vocês, já que estamos hospedados no mesmo lugar.”

“Heh, mas não podemos descartar a possibilidade de você ser um assassino.”

“Escolha um pão, e eu comerei aqui e agora para provar que não está envenenado.”

“Não precisa, estou brincando. Chiara, por que não aproveita? Não é sempre que podemos comer doces, huh? E não se esqueça de agradecer ao senhor Sísifo.”

“Sim. Obrigada, senhor, Sísifo!”

“Não tem de quê. Experimente também, Akakios. Ou prefere apenas o vinho?”

“Eu aceito ambos, se me oferece. E então? Conseguiu o que queria na igreja?”

“Mais ou menos o que esperava. A verdade é que fui enviado para esta vila porque meus superiores me pediram para investigar esses assassinatos.”

“Superiores, huh? E quem são eles?”

“Isso é confidencial. Mas eu garanto que minhas intenções não são ruins. Às vezes, quando um caso é muito difícil de resolver, nós somos enviados para ajudar as autoridades locais.”

“Para alguém que não deve gastar muito dinheiro, o fato de vir com comida para nós quer dizer que está interessado no que eu sei sobre o caso. Mas eu já te falei tudo o que sei, meu amigo.”

“Não é isso. É que eu achei vocês dois muito magros. Eu posso acampar uma noite no relento durante a viagem e economizar o suficiente para trazer um pouco de comida para vocês. Afinal, se me considera um amigo, eu também gostaria de considerá-los da mesma forma. E amigos se ajudam, certo?”

“Você sabe ser bem convincente. Mas, então, o que esperava encontrar na igreja? Acha que o Romano está mesmo possuído pelo diabo?”

“Não é uma hipótese que me agrada, mas eu tive que ver o que o padre achava sobre isso. Também fui conversar com o pobre Romano. Estiveram maltratando o coitado.”

“Nem me fale. Os guardas daqui sabem ser bem agressivos com mercenários como eu. Acham-se superiores na espada só porque são oficiais… Na verdade, têm medo de nossas habilidades. Tenho minha parcela de sofrimento com eles.”

“Mas você também tem medo, não é? Medo de o assassino vir atrás de você e de sua irmã… E por isso está montando guarda no telhado. Não dorme não?”

“Durmo ao amanhecer, depois de o suposto assassinato acontecer. Com a minha irmã, ninguém mexe!”

“E quanto aos seus pais? Não há ninguém mais que possam te ajudar?”

“Nosso pai era um mercenário e tanto. Morreu num trabalho, infelizmente. Nossa mãe sempre teve uma saúde muito frágil e teve a sorte de ser pedida em casamento por um comerciante com bolsos cheios, que podia pagar tratamento por ela. A condição, contudo, era que não nos levassem. Então, Chiara e eu decidimos viver sozinhos, já que eu tenho condições de trabalhar como mercenário também.”

“Entendi… Desculpe perguntar sobre esse assunto, mas fico muito admirado com a coragem de vocês dois.”

“Heh, isso não é nada. Mas e você, Sísifo? Como virou essa bolsa de dinheiro ambulante?”

“Acho que você tem uma ideia errada da minha situação econômica. Gasto muito pouco dinheiro, na verdade, e não levo muito comigo. De qualquer forma, é o suficiente para que eu possa me sustentar e fazer o meu trabalho, o que já é bastante comparado com muitos. Mesmo assim, gostaria de resolver essa série de assassinatos logo, para que possamos evitar mais mortes.”

“Se você é um investigador, deve saber se defender um pouco, não? É bom de briga? Mais forte que um mercenário como eu?”

“O que você acha?”, devolveu Sísifo, com um confiante sorriso.

“Heh. Estou realmente curioso. Você não parece nada fraco. Mas estou feliz que esteja do nosso lado. Muito obrigado pela comida. Se precisar de mais ajuda nessa investigação, me chame. Pode precisar alugar uma espada.”

“Vou pensar nisso, obrigado. Beba um pouco também. Não posso ser o único a ficar bêbado aqui.”

“Não costumo beber quando trabalho. Deixe para caçar outro jogador. Mas eu quero mais um pão. Essa dona sabe fazer pratos excelentes.”

A conversa desviou-se para outros assuntos, relacionados ao trabalho de mercenário de Akakios. Sísifo já pensava em voltar para seu respectivo quarto, quando sentiu um violento cosmos manifestar-se, em um momento de não mais que três segundos.

“O que foi?”, perguntou Akakios, com cara de espanto. “Seu rosto mudou.”

“Ah, não é nada. Eu lembrei de algo que esqueci de fazer para os meus superiores”, mentiu. “Acho melhor eu fazer esse trabalho agora, antes que me esqueça de novo. Deixarei os pães com vocês.”

“Um trabalho… O que seria?”

“É confidencial. Bem, aproveitem os doces. Boa noite e até amanhã.”

“Boa noite, senhor Sísifo! Obrigada pelos pães!”

“Ora, de nada, minha jovem.”

Sísifo não retornou para seu quarto. Saiu escondido do bar e foi correndo para o local onde o forte cosmos se manifestara, carregando a urna. Quando vestia a armadura, seu cosmos se manifestava com mais força, tornando-o visível a todos os guerreiros com o mesmo tipo de poder que podiam existir naquela região. Portanto, só a vestiria em caso de necessidade.

Acabou quase que saindo da vila, num beco bem isolado. Sentiu rastros de cosmos, mas não encontrou nenhum corpo. Acendeu um fósforo perto do local onde havia mais vestígios e encontrou, ao passar o fogo para uma folha seca, marcas frescas de sangue. Procurou por pistas que pudessem sugerir a localização do criminoso, mas nada encontrou. Queimou um galho, aumentando cada vez mais sua fonte de luz e caminhou por toda a região em volta, sem encontrar nada. Por fim, foi procurar a guarda para informar sua descoberta. O oficial responsável pelo caso veio pessoalmente e verificou o local.

“Nenhum dos meus homens encontrou nada disso nos casos anteriores. Vocês, cavaleiros de Athena, são mesmo diferentes.”

“Eu senti uma energia muito forte aparecer aqui… Mas foi muito rápido, num pequeno instante. Desconfio que amanhã encontraremos outro corpo… provavelmente longe daqui. Pode ser que ele manifeste o poder novamente. Ficarei atento para essa possibilidade.”

“Pode ser que não. Assim que você veio, mandei que acordassem Romano. Tenho certeza de que isso vai evitar que ele arraste o corpo para muito longe!”

O cavaleiro preferiu não contrariar o capitão com o fato de a probabilidade de o pobre jogador bêbado ser culpado era baixa e limitou-se a comentar:

“Saberemos a verdade conforme as investigações avançarem, capitão. Caso eu note qualquer mudança, não deixarei de avisá-los.”

“Obrigado por sua colaboração. Deixarei meus homens de plantão também.”

Contudo, pelo resto da noite, Sísifo não sentiu mais nenhum cosmos ameaçador.



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