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[Saint Seiya] Recuperação, escrita por Nemui

Capítulos: Único
Autor: Nemui
Gênero: drama
Classificação: livre
Resumo: Eryx, um jovem cavaleiro, acaba destruindo a plantação de um ex-cavaleiro e se propõe a reconstruí-la. Mal ele sabe que esse encontro foi um gracejo do destino!

Recuperação

 História exclusiva publicada em comemoração ao décimo aniversário do Olho Azul.

            O desertor fugira em direção à mata ao sul da vila. Por ter sido treinado para ser cavaleio, era um combatente bastante eficiente, possuidor de cosmos. Eryx parou na paisagem deserta e fechou os olhos para concentrar-se melhor em seu cosmos. Não demoraria a encontrar a localização do traidor com um mapeamento cósmico. O cavaleiro de prata manteve-se atento por alguns minutos, em silêncio, ate sentir uma sutil oscilação na direção de um arvoredo.
            Correu até a plantação de uma pequena propriedade, pulou a cerca e parou novamente. O sujeito devia ter subido numa das copas, mas Eryx não sabia qual. Concentrou o cosmos novamente e conseguiu localizá-lo numa macieira.
            “Aí está você, seu covarde! desta vez, não vai escapar...”
            Não era um golpe com todas as forças, mas era suficiente para feri-lo gravemente. O desertor saltou de seu esconderijo e correu em direção à horta da pequena propriedade. Estava de costas para Eryx, correndo em linha reta e usando todo o cosmos para escapar.
            Numa situação daquelas, persegui-lo só lhe consumiria mais energia. Seu mestre lhe dizia: ‘se ele lhe der as costas, mostre por que você não deve ser ignorado, não deixe a chance de atacá-lo passar’. Seu oponente era quase um cavaleiro, não podia subestimá-lo. Queimou o cosmo, retraiu o punho para depois liberar todo o poder num turbilhão azulado. Era o golpe perfeito para pegá-lo.
            O desertor foi lançado, junto com as folhas cultivadas, e arrastado por quase vinte metros no chão. O ferimento aberto nas costas sangrou imediatamente. Eryx caminhou tranquilamente até ele, como um caçador a recolher o animal abatido, e mexeu-lhe a cabeça com o pé, para verificar se estava mesmo morto. O pescoço tinha se partido na queda, por isso não precisou ver se havia pulsação. Sua missão estava completa.
            Para o Santuário, mais importante era a missão e as vidas de inocentes. Lugares podiam ser facilmente reconstruídos. Por isso, todos os cavaleiros eram instruídos a perseguir seus oponentes, independente do estrago físico. No calor da batalha, a preocupação com o lugar só atrapalharia a performance do guerreiro. Eryx olhou para o campo destruído, um tanto arrependido do prejuízo, mas ciente de que agira certo. Sua obrigação agora era retornar e reportar-se ao mestre do Santuário. Virou-se e retornou, deixando a destruição para trás.


            Depois da missão, o Santuário encarregava os soldados do resto. Cavaleiros eram os guerreiros de elite, e a eles eram incumbidas apenas as tarefas mais difíceis. Dessa forma, depois do estrago, sempre retornavam a um mundo alheio, feito apenas de ideais e de treinamento. Eram soldados especiais dedicados apenas ao estudo de suas técnicas.
            Eryx saiu do salão do mestre com um bônus em dinheiro pelos serviços prestados e uma carta, com uma permissão para sair do Santuário por dez dias. Como era um assunto pessoal, não precisaria se reportar no retorno. Eram umas férias, como diria um simples empregado.
            Ele conhecia o modo de funcionamento do Santuário como ninguém. Sabia que era certo não se importar com o lugar durante a luta, pois um oponente que eventualmente escapasse poderia criar estragos maiores, como matar inocentes ou destruir outros locais. Um cavaleiro deveria ser punido se priorizasse o campo de batalha aos inimigos. Eryx sabia disso perfeitamente. No entanto, isso não diminuía sua culpa.
            Dirigiu-se à residência onde lutara depois de sair do Santuário, sem a armadura, apenas com algumas mudas de roupa. Para ele, uma missão não terminava simplesmente na morte do inimigo.
            Para compensar os estragos, o Santuário pagava uma indenização aos envolvidos. Quando havia o empregador do trabalho, era ele o responsável financeiro da missão. Mas para Eryx, não era o suficiente.
            Aproximou-se da pequena propriedade e viu um homem juntando a madeira quebrada da cerca. Sua particularidade era a perna direita terminar antes do joelho. A barra da calça era um nó no lado direito, como se anunciasse sua deficiência. A perna esquerda, portanto, suportava todo o peso do corpo, e uma bengala servia de apoio no equilíbrio. O homem devia ter entre trinta e trinta e cinco anos, mas a pele morena trazia marcas da dureza do cotidiano. Havia algo além do trabalho em sua aparência, que indicava mais do que uma vida dedicada à agricultura. Eryx parou do lado de fora da propriedade, um pouco receoso do primeiro contato.
            “Bom dia, senhor.”
            “Não sou senhor”, respondeu o homem, mal-humorado. “Eu tenho um nome, e gosto que o usem. George.”
            “Desculpe, George. Meu nome é Eryx. Sou um cavaleiro de Athena do Santuário.”
            “É? E onde está sua armadura?”
            “Em casa. Eu não vim aqui em uma missão.”
            “Então está de passagem?”
            “Também não. Ontem eu estive aqui atrás de um inimigo, e por isso sua propriedade virou um campo de batalha. Eu sei que é injusto receber apenas uma indenização pelo estrago e por isso vim pessoalmente pedir desculpas. Era um homem perigoso, e eu não podia permitir que ele ameaçasse a vida de qualquer inocente.”
            George puxou mais uma tora da cerca quebrada e jogou-a num monte de lixo. Enxugou a testa com a toalha pendurada no pescoço e voltou-se a Eryx.
            “Desculpas? Veio até aqui apenas para pedir desculpas, cavaleiro? Diga, de que constelação é?”
            “De Delphinus, da categoria prata.”
            “Entendo... Eu vou adivinhar uma coisa, caro Eryx de Delphinus. Esta foi a sua primeira missão, não foi?”
            “Na verdade, foi a vigésima nona. Faz pouco mais de um ano que fui sagrado cavaleiro. Mas por que está preocupado com simples detalhes? Como sabe tanto sobre os cavaleiros? As pessoas de fora costumam não saber.”
            “As pessoas de fora... Mas esta é uma região sob proteção do Santuário, não sabia? Aqui moram muitas pessoas que prestaram serviços ao Santuário, mas que depois se desvincularam dele com devida permissão. Eu sou uma delas.”
            “Então... É por isso que sua perna...”
            “É. Eu a perdi na minha última missão. Por causa disso, renunciei ao direito à armadura de Delphinus, a mesma que você deixou em casa.”
            Surpreso, Eryx perguntou-se se fora destino uma de suas missões levá-lo exatamente àquela casa, entre tantas no mundo. Era a casa de um ex-cavaleiro, e da mesma constelação! Para verificar se era verdade, o rapaz queimou o cosmos e sentiu, com assombro, que George possuía cosmos também. Além disso, seu poder era de certa forma semelhante ao de Eryx.
            “Você não está mentindo... É mesmo o ex-cavaleiro de Delphinus...”
            George sorriu e voltou a arrancar a cerca quebrada.
            “E então, cavaleiro de Delphinus? O que veio fazer aqui? Apenas pedir desculpas pelo estrago? Fez isso nas vinte e nove missões que já cumpriu?”
            “Para dizer a verdade... sim. Nas que ocorreram em terreno deserto, não, mas foram apenas duas ocasiões.”
            “Você com certeza passa tempo demais se desculpando, garoto. Mas você está prestando bons serviços, livrando o mundo de trastes. Por que se desculparia por alguns metros quadrados de alfaces?”
            “O importante não é o tamanho de espaço, mas o modo como as pessoas o usam.”
            “Heh. Viajou até aqui só para dizer isso... Venha, deve estar exausto.”
            Apesar de não poder caminhar, George conseguia locomover-se com facilidade com a bengala. O braço direito era visualmente mais grosso em músculos devido à força necessária para apoiar o corpo no salto. Mesmo sem correr, o ex-cavaleiro tinha plenas condições para manter aquele estilo de vida.
            “Contemple o seu futuro, cavaleiro de Delphinus!”, disse ele, abrindo a porta. “Quando você ficar aleijado numa batalha, tudo que terá será isto aqui, na melhor das hipóteses!”
            Era uma casa simples, tanto quanto as cabanas do Santuário. A esposa de George estava à mesa picando legumes, enquanto que um bebê, confinado num berço, grunhia e apalpava uma miniatura de cavalo esculpido na madeira. Era um lugar simples, extremamente simples, e, ao mesmo tempo, aconchegante. Não havia sequer eletricidade, nem qualquer aparelho moderno. Apenas um velho rádio que parecia não mais funcionar. A aposentadoria do Santuário para um cavaleiro que renunciava o título era de fato reduzida, tanto que o sujeito precisava trabalhar para sobreviver. Era o que George estava fazendo.
            Mas o que mais chamava a atenção de Eryx não era a pobreza do ex-cavaleiro. Sorriu.
            “Você tem uma família... Que inveja!”
            George riu e empurrou-o na direção de sua esposa.
            “Esta é Selena. E a pequenina é Theone. Por que está tão surpreso? Muitos cavaleiros são casados e tem filhos.”
            “Bem, eu não. E por mais que eu queira... não devo ser como você.”
            “Há verdade no que diz. Vamos, pegue uma cadeira.”
            George agarrou a cadeira de madeira maciça com a mão esquerda, passou-a por cima da mesa e colocou-a do lado de Eryx. Era natural ter braços fortes para compensar a falta da perna. O cavaleiro sentou-se, e Selena serviu-lhe um pouco de suco de uva, pois vinho era algo demasiado luxuoso àquela família.
            “Espero que goste”, disse ela, “não temos muito a oferecer.”
            Eryx sorriu, mas havia a constante preocupação na mente. Depois de beber um pouco, voltou-se ao anfitrião.
            “Eu sinto incomodar deste jeito. Não vim para ser recebido com tanta amizade e gentileza.”
            “Você quer que eu o expulse de casa a vassouradas?”
            “Não”, riu ele, “eu vim para trabalhar. Quero consertar o estrago que eu mesmo fiz à sua propriedade.”
            “Mas por que se importaria? Você é um cavaleiro de Athena, nem deve pensar nestas coisas. Quero dizer, quando eu era um cavaleiro, não pensava assim. Os soldados já nos pagaram a indenização, é mais do que o suficiente para cobrir meu prejuízo. Afinal, só preciso pagar as sementes. O resto é lenha do bosque.”
            “Mas há o trabalho, o empenho, o suor derramado para cultivar cada um de seus pés. Eu sei disso. Eu sei que ver sua plantação ser destruída por dois desconhecidos que nem se importam é doloroso. É por isso que quero consertar tudo. Por favor. Tirei dez dias de folga apenas para fazer este trabalho.”
            George encheu o copo de água, rindo mais para si mesmo do que para Eryx.
            “Você... realmente gosta de cuidar das pessoas, não é? O que um cavaleiro diz superficialmente... É apenas a manutenção de uma face social, sem grande significado. Eles são honrados, corajosos, dão a vida para proteger as pessoas. Mas dificilmente saem às ruas para cuidar das pessoas que protegem. A eles só interessa que estejam vivas. A eles só cabe isso. A nós... Encontrar um cavaleiro que retorna ao campo de batalha para reconstruir o que destruiu... É mais raro que uma flor no deserto.”
            “Nunca vi por esse lado... Eu só acho que... se você tira o copo do armário para beber água, precisa depois lavá-lo, secá-lo e colocá-lo de volta. Se você paga para alguém arrumar a bagunça que fez, é como se contratasse um empregado. Os cavaleiros destroem os lugares e depois o Santuário paga para que os outros os reconstruam, como se fossem seus empregados. Só acho isso errado.”
            “De fato... isso faz parte do modo de funcionamento do Santuário. Mas você não deveria se manifestar publicamente? Se não gosta, reclame ao mestre.”
            “Eu posso me manifestar, mas não desobedecer. Eu respeito as leis, porque jurei à deusa que o faria. Minha opinião pessoal é um assunto pessoal. Por isso, no meu tempo livre, faço o que acho certo fazer.”
            “Heh. O novo cavaleiro de Delphinus... Estou vendo que escolheram um cara decente.”
            “Então...? Posso consertar tudo?”
            “O que posso dizer? Você é um cavaleiro. Eu sou só um civil, um simples agricultor. Ter minha horta consertada por um cavaleiro é mais do que uma honra. Fique conosco. Vou preparar um quarto. Não é grande, nem luxuoso, mas é o melhor que temos a oferecer. Pode usar minhas ferramentas, e o que for necessário. Desde já, eu lhe agradeço por tanta consideração, Delphinus.”
            “Só Eryx. É algo que faço por mim, então não me tratem como um cavaleiro.”
            George levantou-se e tirou um pão da cesta, que Selena sempre assava de manhã.
            “Então pare de esquentar a cadeira e pegue aquele machado. Espero que o treinamento de cavaleiro tenha lhe dado mãos grossas, ou elas logo ficarão machucadas. Vamos logo, porque o dia acaba antes que o trabalho.”


            Apesar de ter dito que consertaria tudo sozinho, George fez questão de ajudá-lo. ‘Este é o meu chão, afinal’, dizia o ex-cavaleiro, ‘um lugar só meu, que me dá forças enquanto derramo o suor sobre ele’. De certo, a ajuda do experiente agricultor era muito bem-vinda na árdua tarefa de recolher madeira no bosque que havia por perto. A cerca era feita de uma espécie determinada de árvore, que, de acordo com o ex-cavaleiro, resistia melhor à chuva e ao tempo.
            Com um facão, Eryx afiava diligentemente cada tora que serviria de haste da cerca. Eram oito hastes arrancadas por seu golpe, ele fizera duas. Por ser verão e por ter trabalhado sob sol a tarde inteira, já tinha quitado a camisa, agora presa no cinto da calça, e estava sujo de lascas de madeira e de terra. A pele grossa das mãos ajudava-o, mas não era o bastante para evitar alguns pequenos cortes, com os quais não se incomodava. Estava acostumado a machucar-se no treino.
            George atirou-lhe uma garrafa de água, que ele prontamente agarrou e bebeu. Estava exausto da viagem e do trabalho, mas até agora não reclamara. George enxugou o rosto e sentou-se na parte da cerca que não fora atingida.
            “Cansado?”
            “Ah... Mas eu posso continuar.”
            “E você está enxergando sua mão, a madeira e o facão claramente? Não vai perder um dedo nisso não?”
            “Dá pra ver, mais ou menos.”
            Ele riu e tirou o facão das mãos do rapaz.
            “Meu pai dizia que todos os animais vivem em algum período do dia. Assim como os cães ladram de dia, as raposas caçam de noite. Todos os animais fazem isso... menos o homem. Ora, se é dia, acorde, se é noite, vá dormir! Se está com fome, coma, se está cansado, descanse! Nada mais natural, certo? Vamos voltar pra dentro, estou faminto! Largue isso aí!”
            Eryx colocou a tora de lado e levou consigo apenas o facão. Selena estava esperando com o jantar já pronto, com a filha nos braços. George tomou-a nos braços, e ergueu-a no alto, como quem exibe um troféu.
            “Ah, minha princesa estava esperando o papai? É claro que sim, né? Venha, vamos comer!”
            Havia uma bacia com água fria para lavarem-se antes da refeição. Aquilo era o máximo de higiene que Eryx conseguiria, até que o banho ficasse pronto. Havia água esquentando no fogão, muito lentamente, para o banho depois, mas por enquanto precisava se contentar com o rosto e as mãos limpos. Sentou-se à mesa, e Selena serviu-lhe um prato cheio. Não podia negar que naquela casa comiam bem.
            George já estava distraído demais com a filha para dar-lhe atenção. Esmagara um pouco de comida num prato pequeno e dava em forma de papa ao bebê, que comia aos poucos, enquanto se esperneava nos braços do pai. Selena sentou-se à mesa, em frente a Eryx. Aproveitava aquele tempo para comer, enquanto o marido se ocupava com a filha.
            Das vezes em que consertava os estabelecimentos prejudicados nas missões, permanecera em algum hotel ou pensão, sempre comendo sozinho. No Santuário, seus dois servos preparavam a comida, serviam-lhe os pratos e permaneciam afastados, limpando a cozinha ou realizando outras tarefas. Aquela era a primeira vez em muito tempo que jantava com outras pessoas. Parou, estranhou. Não estava mais acostumado àquele ambiente. Selena também parou depois de algumas garfadas e sorriu-lhe.
            “Você parece o George, na primeira vez que lhe preparei uma refeição...”
            “O quê?”
            “Nós ainda não éramos casados. Foi a noite em que apresentei George para o meu pai. Naquele dia, ele estava tão nervoso!”
            “Eu não estava”, protestou o marido, “só era uma situação diferente.”
             “Ele nega”, riu Selena, “mas conheço o homem com quem me casei. Meu pai estava muito satisfeito por nosso relacionamento, porque George era um cavaleiro de prata, tinha status. Ele o recebeu muito bem, mas George hesitou quando pus o prato de comida na sua frente. Nós achávamos que ele estivesse com vergonha de comer conosco, mas não era isso. Ele olhou surpreso para mim e disse: é a primeira vez que divido a mesa de jantar com outras pessoas! Porque ele era órfão, tinha sido criado como um soldado, era servido pelos servos, que iam embora sem comer. Foi a primeira vez que ele descobriu como era viver numa família. Eu nunca me esqueci da expressão de seu rosto naquele dia. Era a mesma expressão que você tem agora.”
            Depois do choque de ter sido descoberto, Eryx sorriu.
            “Estou impressionado.”
            “Descobri? Sempre fui muito boa nisso.”
            “É... Eu me lembro vagamente... de quando era muito pequeno. Mas são só flashes de memória, muito borrados e desbotados. Eu tinha esquecido... como era agradável.”
            “Será um prazer lembrá-lo de tudo. Vamos, sirva-se à vontade!”


            O conserto da cerca foi até o horário do almoço do dia seguinte. Como Selena pouco podia ajudar por causa de Theone, foi George quem mais trabalhou na enxada. Equilibrava-se sobre o único pé e saltava à medida que remexia a terra. Eryx fazia o mesmo do lado, satisfeito por poder terminar o trabalho antes do que esperava. Bastava terminar de arar a terra e plantar as sementes para aliviar o peso na consciência. Por mais que George dissesse que não era errado destruir o local para matar um desertor do Santuário, sentir o peso de reconstruir tudo fazia bem ao espírito.
            “Eu estava contando com dez dias para consertar tudo, mas parece que vamos terminar tudo hoje mesmo. Não conseguiria fazer tão rápido se não fosse por você, George.”
            “Ora, está com pressa para voltar? O que tem no Santuário para querer voltar tanto? Uma serva de belas curvas? Um evento esportivo? Não é época.”
            “Não, não... É só que sempre gasto todos os dias de folga trabalhando nesses consertos... Acabo sempre muito, muito cansado com tudo. Não é fácil treinar e trabalhar sem interrupções, sabe?”
            “Ah, a vida de um cavaleiro não é nada fácil mesmo. Ainda mais quando ele se ocupa de detalhes como você. Mas o que pretende fazer quando voltar? Comer, dormir e engordar?”
            “Às vezes é preciso, não é?”
            “E passear na vila em busca de mulheres, não? Quem sabe a sua hora não chega num descanso desses?”
            “Não... É que... eu não quero que ninguém chore por mim quando morrer na luta. Eu detesto fazer alguém sofrer por isso. Já vi soldados demais morrerem... Se eu arranjasse alguém especial, como ela se sentiria se eu morresse? Pois é muito melhor que ela sinta algo especial por uma pessoa que poderá partilhar com ela anos de felicidade... muitos anos.”
            “Quer dizer que você pretende morrer cedo... E não quer que ninguém chore a sua morte. Ora, meu amigo, é tarde demais.”
            “Como?”
            “Você vem, ganha o meu respeito, conhece a minha família, permanece como nosso hóspede, conserta o estrago que nem precisava consertar. Depois de virar um amigo, ainda quer que ninguém sofra por sua morte? Ora, Eryx, se você morrer numa batalha, ficarei muito desapontado. Um cavaleiro como você não tem que morrer! Bons cavaleiros assim não devem de jeito nenhum morrer! Porque quando um cavaleiro de bom coração morre, não são apenas os amigos que sofrem, mas o Santuário e o mundo inteiro também!”
            “O Santuário... Duvido. Aquele é o mundo das lutas.”
            “Diga, quantos cavaleiros bons morreram na época em que você viveu lá?”
            “Alguns... Mas não os conheci. Lá é normal morrer.”
            “Quer dizer que lá você sempre viveu sozinho? Nem tem amigos cavaleiros?”
            “É claro que tenho alguns.”
            “E algum deles já morreu?”
            “Não! Felizmente não!”
            “Então você não sabe... o quanto eles sofreriam com a sua morte... porque você também não sofreu com a morte deles.”
            “Bem, é claro que eu ficaria triste com a morte deles... Mas não é como se fôssemos uma família, George.”
            “Você é um tolo. Muito novo para compreender mesmo. Eu vou dizer uma coisa, Eryx. A morte é sentida de formas diferentes, dependendo de pessoa para pessoa. Quando é alguém próximo, é mais dolorida; quando é distante, é apenas um incômodo; quando é alguém que o odeia, é prazerosa. O fato é que algum sentimento, por mais sutil que seja, aparece. É inevitável. Se você conviveu com ela, por menos tenha sido, se você morrer, ela sentirá. Mesmo aqueles que você nem conhecia. As mortes deles o fizeram ter medo de sua própria morte.”
            “É por isso que não quero ter alguém próximo. Ele sofrerá com mais intensidade.”
            “Isso é verdade, mas... Quanto maior for a dor deles, mais você será lembrado. Não como um cavaleiro, mas como pessoa. Sua existência, assim, terá significado algo. Todos vamos morrer, Eryx, cavaleiros e não-cavaleiros. Todos iremos. Então, para que viver? Para que continuar? Se você não vai ser lembrado por nada, se sua morte não foi significativa em ninguém, então por que você viveu até aqui? Por que respirou nosso ar, por que virou um cavaleiro?”
            “Eu quero ajudar as pessoas como cavaleiro. Mas não quero que elas sofram.”
            “Mas você nos ajudou. E agora, quando você morrer, nós sofreremos. Eryx, isso é inevitável, isso é certeza. Faz parte da vida! É por isso que... quanto mais marcas, significados, lembranças deixa em outras pessoas... Mais sua vida transcenderá a própria morte. Só você ama e sofre pelas pessoas. Por que não pode deixar que elas façam o mesmo por você?”
            Eryx desviou o olhar, não sabia como responder. Nunca alguém protestara contra o seu isolamento, pois muitos cavaleiros pensavam da mesma forma. E lá estava um cavaleiro que discordava abertamente.
            “Sabe de uma coisa?”, disse George, “Não vou permitir que continue a viver dessa forma, sem ter um alguém para sentir a sua morte. Em vez de voltar ao Santuário, fique aqui por mais alguns dias. Não precisa trabalhar, nem nada. Apenas fique, coma, durma e engorde. E brinque um pouco com Theone, também.”
            “Mas eu... Não devo fazer isso, George. Você sabe, um cavaleiro morre cedo e, se ele tiver pessoas queridas, elas sofrerão por...”
            “Eu sei disso”, interrompeu o ex-cavaleiro, bruscamente, “eu sei disso melhor que ninguém, garoto! Mas é muito triste um cavaleiro morrer sem ter alguém para chorar por sua morte. Vamos, tire suas férias aqui. Afinal, não há nada mais natural que saber quem era o homem que vestia sua armadura antes de você, não é? Além disso, afastar-se um pouco do cotidiano de treinos e lutas fará bem a você. O que me diz?”
            Apesar de não concordar com o fato de fazer alguém sofrer, algo em Eryx mudara após as palavras de George. Já estava inclinado a aceitar o convite, e o amigo lançou o golpe final para convencê-lo.
            “E se você ficar, ensinarei a você minha principal técnica de luta, Eryx. Ela com certeza salvará sua vida no futuro, em algum momento, em alguma luta. Como eu detestaria que você morresse cedo, digo que fique e aprenda essa técnica de mim. Afinal, somos da mesma constelação e temos uma reputação a zelar.”
            “Você quer mesmo que eu fique, não é? Por que me daria a própria técnica de luta apenas por ser seu hóspede por alguns dias?”
            “Porque você é um amigo. Não é motivo suficiente?”
            Uma experiência por uma nova técnica. Era irrecusável.
            “Está bem”, respondeu o jovem cavaleiro. “Vou ser um fazendeiro por uma semana. Afinal, sempre tive vontade de experimentar uma realidade diferente da minha. Mas não vou ficar parado. Quero trabalhar um pouco também. Tenho mãos calejadas como você, agüento o serviço.”
            “Agüenta mesmo?”, sorriu George, “Tive dificuldades nas minhas primeiras semanas. Eu não apenas planto, também trabalho como lenhador e transportador nesta área. De tudo, faço um pouco. É um serviço pesado.”
            “Sou jovem. Passe-o para mim.”


            A semana de férias, por ter se oferecido a trabalho, pouco lhe valeu como descanso. Contudo, Eryx pela primeira vez sentiu segurança ao viajar pelas estradas com apenas uma carroça tracionada pela égua já um tanto idosa. George nem se importava com a vagarosidade do pobre animal, mas já pensava em aposentá-lo. Para não sobrecarregá-la mais, Eryx ia a pé, do lado, levando nas costas mais de cem quilos de lenha cortada. Estavam chegando à vila onde entregariam toda a mercadoria, por isso o cavaleiro suspirava aliviado. Precisava do descanso.
            “Geralmente faço esta entrega em duas viagens. Mas você me ajudou bastante, teremos um tempo livre para um jantar mais gordo”, comentou George. “Não é fácil ser um trabalhador perneta, não é mesmo. Mesmo com o cosmos, preciso de outra perna para carregar toda essa lenha... E esta garota já está pra aposentar, coitada.”
            “Diga, George.”
            “Fale.”
            “Desculpe perguntar, mas como foi que perdeu uma das pernas? Algum ferimento grave enquanto lutava?”
            “Como eu disse antes, foi na última missão que realizei. Mas... Como eu perdi... é algo que não gosto de lembrar...”
            “Desculpe...”
            “Veja, é ali, naquele mercado. Nossa última entrega.”
            Como Selena estava ocupada com outro serviço, George e Eryx estava cuidando de Theone naquele dia. A pequena foi passada aos seus braços quando o ex-cavaleiro precisou da bengala para descer e ir conversar com o comerciante. Nas primeiras vezes em que carregara o bebê, desajeitado, Eryx não conseguia nada além de choros e reclamações. Como não queria que chorasse, acabou cedendo a frieza de um cavaleiro a um comportamento mais descontraído. Colocou-a sobre a velha égua, que não se importou com a pequena. Theone riu, mexendo no pêlo com as mãozinhas.
            Os funcionários do estabelecimento passaram por eles para tirar toda a mercadoria, e o comerciante aproximou-se dele, ao lado de George.
            “Ele é algum parente seu?”
            “Ele é Eryx, um... parente.”
            ‘Parente?’, perguntou-se Eryx. Pensou em dizer que estava só ajudando naquela semana, mas George não lhe deu tempo para interromper.
            “Você se lembra de quando eu contei sobre um casal de médicos da vila de Neméia, ao oeste do Santário, que morreu na minha frente, quando eu ainda era um andarilho?”
            “Ah, você costuma contar sempre essa história, George.”
            “Pois é, mas eu não contei a história inteira. Este casal tinha um filho, que ficou órfão, um garotinho. Eu o peguei e o levei para o Santuário. Naquela época, era bem jovem... Então, Rouvin, o garoto era este, Eryx. Desde aquela época, ele é como se fosse um irmão mais novo para mim.”
            “Ora, você já tinha idade para ser o pai dele, George.”
            “É, tem razão. Pois é, ele e Theone parecem irmãos, não é?”
            O comerciante riu e acariciou o focinho da égua.
            “Com certeza são bons meninos. E então? Quais são os planos pra semana?”
            “Vamos ver, vamos ver... Ainda não tenho outros planos além dos de sempre. Procurar um animal mais jovem para substituir minha Agalia aqui. Ela já trabalhou demais na vida. Uma hora eu acho. E descansar um pouco, talvez.”
            “É bom... não force muito essa perna aí. Não tem outra pra substituir, amigo.”
            “Não se preocupe. Sua mercadoria chegará tão bem quanto hoje, Rouvin. Vejo-o mais tarde. Vamos, Eryx. Vamos, minha pequena Theone! O que achou de andar de cavalo? Gostou?”
            George não perdeu tempo para montar na carroça, mas Eryx não quis subir. Confuso com a história contada, hesitou. De fato, ele viera da vila de Neméia, como dissera o ex-cavaleiro.
            “O que foi, Eryx? Não vai subir? Ela tá velha, mas ainda te agüenta!”
            “George”, disse, engolindo de nervoso. “Essa história de Neméia... é verdade ou você inventou?”
            “O que importa? Vamos, suba!”
            “Importa para mim. Eu não me lembro das coisas que aconteceram antes do Santuário... São só flashes de memória... Então... se você foi mesmo o homem que me levou ao Santuário... Eu gostaria que me contasse sobre o meu passado... por favor.”
            Alguns segundos de silêncio se passaram, até que o outro respondesse.
            “Eu inventei, Eryx. Desculpe, não sabia que ficaria tão nervoso por causa desta história. Eu só queria que você não se sentisse um estranho em minha família, só isso. O que aconteceu há dez anos, não importa. O que interessa é quem é você agora, e o que fará daqui pra frente, Eryx. Vamos. Vamos voltar pra casa.”
            ‘É coincidência demais’, disse para si mesmo. Contudo, o que George dizia também era verdade. Ele era um cavaleiro de Athena, cujo dever era lutar pela deusa até a morte. O que ocorrera com ele no passado não importava mais. Subiu na carroça e relaxou no banco, exausto. Depois de beber alguns goles de água, cochilou até em casa, com Theone nos braços.


            Como partiria no dia seguinte de volta ao Santuário, Selena preparara para o jantar uma refeição farta. Tinha matado um dos bois da família apenas para aquele dia, de tão especial. Em parte, Eryx sentia como se não merecesse tudo aquilo, mas só podia receber aquele carinho sem repeli-lo. De fato, naquela semana tornara-se praticamente um membro da família. Tomou Theone nos braços e dividiu com ela o prato de comida, o que só trouxe mais satisfação à expressão de seu anfitrião. A melhor forma de mostrar gratidão era fazer o que eles tanto desejavam. Ser mais um na casa.
            “Vamos, Theone, precisa comer as coisas coloridas também. Não quer ficar forte que nem eu?”
            O bebê tinha clara aversão à cenoura, mas Selena conseguia sempre empurrar um pouco goela abaixo. Naquela noite, finalmente Eryx repetia a proeza. George saboreava calmamente uma taça de vinho tinto, que trouxera de presente de Rouvin. Quando a filha não quis mais comer e teve a boca gentilmente limpa pelo cavaleiro, levantou-se.
            “Eryx. Você não se esqueceu de algo?”
            “O quê?”
            “Minha promessa. Eu disse que lhe ensinaria minha técnica de luta mais especial. Vamos até lá fora um pouco, vou ensiná-la a você.”
            Eryx sorriu de volta e continuou sentado.
            “Não precisa fazer isso por mim, George. Eu realmente gostei do tempo que passei com sua família. Eu me senti como uma pessoa comum, como tantas no mundo. Não como um cavaleiro.”
            “É por isso mesmo que quero que aprenda. Para que possa voltar vivo para cá um dia. Vamos, não é nada difícil. E eu prometo, ela será útil no campo de batalha.”
            Convencido, Eryx passou Theone para Selena e seguiu George até o pomar. Havia um campo mais aberto, especialmente para treino. George queimou o cosmos assim que parou no centro.
            “Eu quero dar esta técnica de presente para você. Ela é simples, basta apenas concentração para realizá-la. Qualquer cavaleiro é capaz de aprendê-la. E ela... já salvou vidas. Não apenas a minha.”
            George ergueu a mão direita, azul de cosmos, e levou-a até perto do ombro esquerdo.
            “É um lance rápido de cosmos, mas não algo brusco, Você deve juntar átomos e criar rapidamente as ligações entre eles, antes que o inimigo ataque.”
            O braço girou rapidamente, com a palma virada na direção de Eryx. Por onde ela passava, restava um rastro de cosmos, muito denso, que aparentemente não tinha nada de especial.
            “Chama-se Hand Defence. É uma barreira de cosmos feita com a mão, feita de partículas de cosmos. Exige boa concentração, mas, depois que você acostuma, consegue barrar muitos golpes sem ter que se desviar. Lance um ataque de cosmos em mim.”
            Eryx obedeceu, mas não quis atacar muito forte. Lançou um pequeno ataque, do nível de um cavaleiro de bronze. George balançou a mão rapidamente, criando mais uma vez aquela barreira. O golpe foi imediatamente barrado e repelido, como a luz contra um espelho. A bola de cosmos foi repelida na direção do chão, onde formou uma pequena cratera.
            “Dependendo do seu nível de cosmos, poderá salvar a própria vida com esta técnica. E talvez... de alguém mais. É a minha técnica mais especial. Porque um dia ela salvou a vida da mulher que mais amo. Quem sabe um dia você também salve a vida de alguém que chorará em seu túmulo depois da última batalha... Este é o meu presente de despedida. Eu quero que o use no campo de batalha, Eryx.”
            O cavaleiro olhou para a palma na mão, concentrando o próprio cosmos, e percebeu que de fato era uma técnica extremamente simples para dominar, mas tão útil quanto um ataque. Sorriu.
            “Obrigado, George. Talvez você tenha salvado a minha vida com esse presente.”


            Ainda com os últimos dias em mente, Eryx retornou ao Santuário transformado. O encontro com a família do ex-cavaleiro fora tão marcante que se esquecera de vestir a armadura ao retornar para casa. Quando Marin o encontrou próximo a um campo de treino, voltou-se de forma reprovadora. Se pudesse ver o rosto por trás da máscara, teria encontrado um semblante aborrecido.
            “Eryx, você não está usando a armadura. Pelo menos até amanhã, precisa indicar aos soldados que retornou vestindo sua armadura. Você sabe disso.”
            “Ah! Desculpe, Marin, eu não notei... Estava pensando em outras coisas.”
            “Outras coisas? Ora, você foi tirar uma folga. Não devia estar preocupado com nada.”
            O rapaz olhou para o papel que trouxera da casa de George. No momento da partida, o agricultor entregara-lhe a carta que usara para solicitar a autorização do Santuário para morar fora de seus limites. No momento, Eryx não compreendera, mas agora começava a entender. Marin leu rapidamente a carta e comentou, tão intrigada quanto o rapaz.
            “Ora, isso não é uma carta com o selo do mestre? Solicitação para viver fora dos limites do Santuário... do antigo cavaleiro de Delphinus. Com essa carta, se você quiser morar fora do Santuário, terá mais facilidade em convencer o mestre... Onde conseguiu isso? Não está pensando em se mudar daqui, está?”
            Como Marin dissera, era muito mais fácil convencer o mestre a sair do Santuário com aquela carta. Se fora possível o último cavaleiro sair, era possível ele também sair. Então George tinha esperanças de que ele deixasse o Santuário... para retornar à casa do ex-cavaleiro. ‘Aqui é também o seu lar’, dissera o amigo no momento da partida, ‘quando quiser voltar, seja numa ocasião alegre ou triste, nós sempre o receberemos como um membro da família’.
            Um membro da família... Antes, precisava verificar algo. A história contada por George fora real demais para ser apenas uma invenção. Decidiu buscar, pela primeira vez em anos, informações sobre o seu passado. Talvez sua ligação com o ex-cavaleiro fosse mais antiga do que uma semana.
            “Eu queria pesquisar um pouco sobre o meu antecessor. Ouvi dizer que é possível, mas não sei como. Você sabe, Marin?”
            “Se é informação sobre outros cavaleiros que você busca, provavelmente deve falar com Shun, o cavaleiro de Andrômeda.”
            “Por quê? Ele é algum fofoqueiro do Santuário?”
            “Não, bem diferente disso. Ele agora está trabalhando com os registros de cavaleiros e de ex-cavaleiros. Se há alguém que pode informá-lo sobre o ex-cavaleiro de Delphinus, este alguém é Shun. Ele deve estar na seção de cadastro do Santuário agora. Daqui a pouco ele sai para treinar, então sugiro que vá logo.”
            “Shun... Está bem, obrigado pela dica, Marin.”
            “Só uma pergunta... Por que esse interesse súbito pelo passado dos outros? O que você descobriu nesses últimos dias, Eryx?”
            “Ainda não sei dizer direito. Mais tarde nós conversamos.”
            Eryx não queria dizer nada, já que nada era certeza em sua mente. Havia mais em George que um simples agricultor, e um simples ex-cavaleiro. Por que ele insistia tanto em recebê-lo? E como sabia sua vila de origem. Precisava descobrir.


            Shun virou um cavaleiro famoso no Santuário, depois de participar da famosa batalha das Doze Casas. Era uma espécie de braço direito da deusa Athena, apesar de ser somente um cavaleiro de bronze, da categoria mais baixa. Eryx estava um pouco receoso para conversar com alguém tão próximo da grande deusa, mas deparou-se com um rapaz extremamente educado e solícito na seção de registros. Ele estava trabalhando com relatórios de cavaleiros que voltavam de missões, todos acumulados numa pilha. Com certeza não era um serviço tranqüilo.
            “O antigo cavaleiro de Delphinus? É curiosidade natural?”
            “Sim e não. Ando procurando algumas respostas para mim mesmo. Será que eu posso ler o histórico dele?”
            “Geralmente isso não é permitido. Você precisaria pedir numa carta justificativa ao mestre, e isso pode levar semanas, já que ele anda ocupado demais com a reconstrução das Doze Casas. Não é... um assunto relevante para ele.”
            “Posso então entregar-lhe a carta? Não há problema, eu posso esperar.”
            “Deseja tanto assim ler esse registro? Será que eu posso saber por que deseja isso? Não precisa responder se não quiser, mas acontece que fiquei curioso. É a primeira vez que alguém me pede para ver a ficha de outro cavaleiro.”
            “Eu não quero fazer nenhum mal a ele, Andrômeda. Conheci o George, quase que por acaso. Ele é um homem honesto, com uma bela família. Acontece que ele está escondendo algo do meu passado, de quando era garoto. Ele parece me conhecer há muito mais tempo... Só queria ver se descubro algo sobre mim mesmo vendo os arquivos... já que ele não quer me contar pessoalmente.”
            “Bem, acho difícil descobrir algo, já que as nossas fichas pouco falam da personalidade do cavaleiro. Elas têm registros de missões e relatórios escritos pelos próprios cavaleiros. Você sabe como é.”
            “Mesmo assim... Eu gostaria de ver.”
            Shun estava indeciso quanto ao que fazer, mas Marin, que resolvera vir junto, interveio:
            “Shun, Eryx não fará mau uso das informações, isso eu garanto a você.”
            O cavaleiro sorriu a amazona e levantou-se da cadeira.
            “Se é a Marin quem diz, como posso não acreditar? Está bem, vou deixar que leia a ficha dele, apenas agora. Serei punido se descobrirem que dei acesso sem permissão, então não contem a ninguém, certo?”
            “Somos cúmplices nesta”, respondeu Eryx, pegando a ficha de George. Como Shun dissera, a maior parte dos relatórios em nada lhe acrescentava. Estavam encadernadas todas as cartas com as missões e os relatórios escritos por George em seus anos de servidão. Pacientemente, ele folheou a ficha, vendo as missões, uma a uma. Parou numa que se passou na vila de Neméia. Como dissera George, um casal de médicos, que precisava ser protegido a todo custo por ele, acabou sendo morto. A falha na missão resultou em uma semana de punição para George.
            “Realmente... Existiu uma missão em Neméia... Mas não diz nada sobre o filho do casal...”
            “O que está procurando neste caso?”, perguntou Shun, curioso. Para impedir que outros os vissem, levara-os até o seu escritório. Por arriscar-se, merecia saber o que se passava, não?
            “Eu... Queria saber se sou o filho desse casal... A única informação que pode indicar a verdade é a data. É a mesma época em que fui trazido ao Santuário. Mas eu era tão pequeno que já não me lembro mais do homem que me trouxe...”
            O rosto de Shun iluminou-se rapidamente.
            “Ora, se era isso que gostaria de saber, por que não me perguntou antes? Nem precisaria me arriscar por isso! A sua ficha não é proibida a você mesmo, e nela deve existir o registro da pessoa que o trouxe ao Santuário.”
            “É mesmo? Mas... Eu nunca vi isso na minha ficha.”
            “Há duas. A que você vê possui os relatórios de missões como cavaleiro. A outra é comum a todos os habitantes do Santuário. Aquele que nasceu fora dos limites do Santuário precisa ser aceito por um habitante daqui antes de entrar. Espere, eu já pego a ficha para você.”
            Depois de Shun sair da sala, Eryx relaxou na cadeira e cruzou os braços, um tanto revoltado.
            “Todos esses anos, com a resposta num arquivo empoeirado. Eu não acredito.”
            “Talvez porque você não quisesse saber de seu passado tanto assim”, retornou Marin, “ou talvez não fosse o momento certo para saber de seu passado.”
            “Acho que... É fácil perder-se do mundo dentro do Santuário.”
            Shun voltou alguns minutos depois com uma pasta coberta da poeira. Ele ainda sacudiu o papel frágil pela ação dos anos e assoprou para tirar o pó. A nuvem cinzenta o fez tossir um pouco e cobrir o nariz com a outra mão.
            “Como pode ver, ninguém sequer toca nesses arquivos... Só mexemos neles quando alguém morre. Dê uma olhada e veja se encontra algo.”
            Eryx esfregou o nariz irritado e leu com dificuldade a péssima caligrafia do sujeito que fizera seu registro. O nome da pessoa do Santuário que o acolheu era um cavaleiro... Tentou ver o nome George naquelas letras borradas, mas não Havia a menor possibilidade de aquilo ser verdade. Começava com ‘A’...
            “Aioros”, murmurou Marin. “Você foi aceito no Santuário pelo cavaleiro de ouro de Sagitário. Foi um ano antes de ele morrer. Não imaginava que fosse há tanto tempo.”
            “Eu passei alguns anos servindo ao Santuário como soldado, antes de ganhar a minha armadura... Aioros... Não foi o George...”
            “Que pena”, comentou Shun. “Se Aioros estivesse vivo, você poderia conversar com ele para saber mais sobre o seu passado.”
            “Mas há o Aioria”, disse Marin. “Ele é nosso amigo, vou pedir que ele converse com você. Eryx. Talvez ele saiba algo sobre esse George.”
            Olhando para aquele nome borrado, algo apertava o interior de Eryx. Era o frio da barriga, do medo e da ansiedade misturados. Sentia que estava perto da verdade.


            Com uma permissão especial, Eryx ganhara o direito de ir até a casa de Leão para conversar com Aioria, o irmão mais novo de Aioros. Era a primeira vez que conversava com o cavaleiro de ouro de Leão, mas a resposta que recebera dele parecia uma carta direcionada a um familiar. Achara estranho, mas tudo indicava que seria bem recebido em sua casa. Subiu as escadarias por mais de duas horas. A ansiedade transformava cada degrau em eternidade.
            Parou diante da casa de Leão, suado, mas vestido formalmente com sua armadura. Seu cosmos já anunciava sua chegada. Em resposta, um cosmos imensamente mais poderoso surgiu de dentro da casa, em passos tranqüilos. Aioria era jovem, somente alguns anos mais velho que ele próprio. Sorriu-lhe e cumprimentou-o com a mesma cordialidade da carta.
            “É a primeira vez que nos falamos de fato, não é mesmo, cavaleiro de Delphinus? Eryx é o seu nome.”
            “Sim, senhor. Desculpe atrapalhar suas atividades.”
            “E por acaso estou usando minha armadura? É meu horário de folga, Eryx. É um prazer recebê-lo em casa. Entre.”
            Eryx passou pelo salão principal da casa de Leão e entrou nos cômodos privados de Aioria, que pareciam parte de uma enorme mansão. Um servo tinha deixado uma mesa com vinho e petiscos sobre uma mesa, especialmente para a visita.
            “Marin me disse um pouco sobre você querer saber mais sobre o seu passado. Não sei se posso fazer muito para ajudar, mas farei o que for necessário.”
            “Eu... Eu sei que é muita ousadia vir pedir ajuda a um cavaleiro de ouro... Mas precisava...”
            “Não se preocupe com isso. Eu poderia me sentir irritado com outras pessoas, mas não com você. A propósito, tenho algo para você. Não sei se gosta, mas gostaria que aceitasse. Pegue.”
            Era um vinho importado embrulhado para presente. O jovem ficou fitando incrédulo, perguntando-se por que estava recebendo um presente daquele cavaleiro de ouro, de quem vinha pedir um favor? Por que era tão bem recebido, como se fosse um membro da família.
            “É uma grande honra receber este presente, senhor...”
            “Pare com senhor. Eu sou Aioria. Pode me chamar pelo nome.”
            “Sim... Eu... Muito obrigado, Aioria...”
            Aioria encheu um copo para si e encostou-se à parede.
            “A expressão no seu rosto me diz que está confuso.”
            “De fato... Fico muito agradecido pelo vinho, mas... por quê?”
            “Há muitos anos, meu irmão trouxe você para o Santuário e disse que o protegeria até que se tornasse um soldado. Ele pretendia tomar conta de você enquanto morasse por aqui. Eu só estou assumindo as responsabilidades dele.”
            “O cavaleiro de Sagitário... Aioros?”
            “Sim. Ele o trouxe com apenas dois anos de idade ao Santuário. Você ainda pequeno demais... Eu também era só um garotinho, mas me lembro bem de quando Aioros o trouxe para cá. Você viveu comigo até os cinco, quando o entreguei ao treino dos soldados. Depois disso, não se pode criar vínculos afetivos com a criança e por isso apenas acompanhei de longe. Já o ajudei por trás dos panos, como quando precisou iniciar o seu treino de cavaleiro. Fui eu que o indiquei ao cavaleiro de Crater e eu que o direcionei ao torneio que decidiria o futuro cavaleiro de Delphinus. Parte do que você é também se deve a mim.”
            “Você... Então foi o cavaleiro Aioros que me colocou no Santuário.”
            “Isso mesmo. E depois que ele morreu, você passou a ser meu protegido. Eu pensava que você jamais descobriria isso. Não quer se sentar? Ou a conversa é curta? Eu imagino que tenha muitas perguntas a fazer.”
            Eryx sentou-se, mais confuso do que antes. Teria George mentido para ele de fato?
            “E por que a armadura de Delphinus?”
            “Eu consultei o oráculo antes para saber.”
            ‘Então tudo era mentira’, pensou o rapaz, um tanto decepcionado.
            “Eu não imaginava... Que um cavaleiro de ouro me recolheria das ruas e me traria para o Santuário...”
            “Um cavaleiro de ouro?”
            “Sim... Aioros de Sagitário...”
            “Espere”, disse Aioria. “Foi o meu irmão que o trouxe ao Santuário e o acolheu, isso é verdade, mas não foi ele que o recolheu da rua, Eryx.”
            Erguendo a cabeça, o rapaz fitou o cavaleiro mais velho.
            “Como?”
            “O fato de o oráculo ter dito que sua constelação devia ser Delphinus não foi coincidência. O antigo cavaleiro de Delphinus... Um homem que se chamava... George, se não me engano... É, ele foi o homem que o tirou das ruas. Não sei direito o que houve na missão, mas ele voltou quase morto. Meu irmão estava fazendo ronda numa vila próxima ao Santuário, quando o encontrou.”
            A surpresa foi tanta que Eryx levantou-se e aproximou-se de Aioria, com os olhos arregalados. O cavaleiro de ouro sorriu.
            “Então essa era a resposta que você queria... O cavaleiro de Delphinus estava quase morto, coberto de sangue. Ele tinha falhado na missão e precisava ser punido. Mas como estava muito ferido, não podia voltar ao Santuário. Naquele estado, acabaria morto pelo peso da punição. Meu irmão deu-lhe tempo para recuperar-se e prometeu que cuidaria de um garotinho que esse George trazia consigo. Esse garotinho era você, Eryx.”
            “E você sabe por que eu estava com o George?”
            “Não faço a menor idéia. Você precisaria perguntar a ele pessoalmente. Ele se aposentou depois de perder uma das pernas no campo de batalha, não deve ser difícil encontrá-lo.”
            “E onde foi que isso aconteceu? Onde era a missão de George?”
            “Era em Neméia. Algo envolvendo um casal de médicos, se bem me lembro...”
            Enfim, a peça mais importante fora encontrada. Eryx afastou-se um pouco de Aioria e fez um gesto de agradecimento, de alguém de posição hierárquica inferior para um superior.
            “Muito obrigado pelas informações que me deu, Aioria, cavaleiro de Leão. E muito obrigado por ter me ajudado por todos estes anos.”
            “Volte mais vezes”, respondeu o cavaleiro de ouro. “Todos aqueles que meu irmão protegeu, eu também protegerei.”


            Foram apenas alguns dias na casa de George, fora apenas mais uma missão. Mas sua vida mudara naquele episódio. Eryx parou à porta da velha casa e respirou fundo. Enfim, tomou coragem e bateu três vezes.
            O rosto de George surgiu com um largo sorriso.
            “Eryx! Ora, entre! Selena acabou de preparar o almoço. Você é o nosso convidado.”
            “Obrigado... Não se importa comigo aqui?”
            “Eu já disse. Você é um membro de nossa família. Aqui você sempre será bem vindo.”
            Como dissera George, Eryx foi recebido sem perguntas. Almoçou e à tarde assumiu o balde do poço para regar a plantação. E George, com todo o cuidado preparara um quarto para que ele pudesse passar mais de uma noite em sua casa com o conforto de um filho. Não perguntou por quanto tempo permaneceria ali, nem por que retornara. Foi Eryx que insistiu no assunto, à noite.
            “Gosta do quarto assim? Não chega nem a três estrelas, mas espero que goste. Fique a vontade e use o espaço como bem desejar.”
            Quando o ex-cavaleiro ia fechar a porta, Eryx segurou-a, com a pergunta escapando da boca.
            “Por quê...? Por que mentiu para mim? Você disse que mentiu para mim sobre Neméia... Sua história era verdade!”
            George sorriu e voltou a entrar no quarto.
            “Acha que eu a contaria se não quisesse que soubesse? Eryx, só o destino o traria a este lugar... Eu queria que você entendesse algo muito mais importante que o seu próprio passado. Que aceitasse algo muito mais valioso que uma boa estadia.”
            O rapaz olhou para baixo e juntou coragem para responder:
            “E eu sei o que é. No fundo, você é muito parecido comigo, ex-cavaleiro de Dephinus. Muito parecido.”
            “Por que, Eryx?”
            “Porque eu sempre devolvo o que destruí para as pessoas inocentes. Ou pelo menos tento minimizar os estragos. Você também. Você não conseguiu salvar os meus pais naquela missão, não é? O casal de médicos... Eu perdi a chance de ter uma família... E é por isso que você me ofereceu a sua, com tanta bondade. Foi por isso que me deu aquela carta antiga... Para que eu me mudasse para cá, caso um dia quisesse. Você queria me devolver o que me foi destruído, como faço com os lugares... Mas a diferença é que você faz isso com as relações humanas.”
            George sorriu de novo e encostou-se à parede, cruzando os braços. Eram braços grossos e duros de alguém que estava acostumado ao trabalho árduo, de alguém rígido. Mas o espírito era de alguém que já chorara bastante.
            “Garoto esperto. Quando coloca as coisas desse jeito... Até me deixa sem graça.”
            “Meus pais nunca retornarão. E eu sei que é impossível devolver meus anos de infância... as coisas que nunca tive... Reconstruir um lugar é muito fácil. Mas reconstruir uma relação familiar... de alguém que não se lembra do rosto dos pais... É mais difícil que virar um cavaleiro de ouro.”
            “Eu sei que é impossível. Mas dívida é dívida, certo? Eu devo isso a você. Assim como eu aceitei ter minha casa consertada por você, gostaria que aceitasse ter isso de volta... uma relação familiar.”
            Eryx sorriu e tirou do bolso um envelope. Depois de colocá-lo nas mãos de George, tirou os sapatos e enfiou-se na cama.
            “É um presente de agradecimento para você. Amanhã vou ajudar na plantação, depois de treinar o Hand Defence. Boa noite.”
            George saiu do quarto e abriu o envelope logo em seguida. Era a carta de solicitação para viver fora dos limites do Santuário. Mas não era sua. Era de Eryx. O rapaz jamais receberia outra permissão para outro descanso, tão cedo. Uma missão naquela região também era muito rara. Desde o início, o ex-cavaleiro compreendera a decisão do rapaz. Guardou a carta com todo o cuidado, como se fosse um tesouro de ouro. Sorriu e retornou ao seu quarto, com Selena. A esposa reagiu positivamente à novidade.
            “Tudo bem”, disse ela. “Eu sei que é importante para você.”
Finalmente George terminara de cumprir aquela missão. Falhara em salvar os pais do menino, mas devolvera ao garoto algo tão valioso quanto a relação perdida. Sabia que aquele era um filho que precisava adotar.

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