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[Saint Seiya] O Tipo Errado de Cabeça, escrita por Madam Spooky

Título: O Tipo Errado de Cabeça
Autora: Madam Spooky
Fandom: Saint Seiya
Gêneros: Comédia/Potencial para romance #sqn/Quase Paródia.
Classificação: 12 anos – só por precaução.  
Resumo: Cabeças começam a aparecer misteriosamente no Santuário e, como era de se esperar, Máscara da Morte é o principal suspeito. Shaina, no entanto, tem suas dúvidas. Estará o Cavaleiro de Câncer realmente mudado ou será tudo um delírio da Amazona de Ofiúco, graças à sua recém-desenvolvida atração por ele? — Shaina/Máscara da Morte (ou não). Insinuação de Aioria/Marin. Marin, Camus, Milo e Afrodite aparecendo aleatoriamente só para fazer fofoca. Citação da existência de Shion e Athena.
Avisos: OOC em níveis obscenos; Shaina surtando por um cara que não tem mais do que belos músculos para recomenda-lo quem nunca; descrição de cabeças mais ou menos decompostas.
Notas: Sugestão de drinking game: beba toda vez que aparecer a palavra “cabeça”.



E a vítima esse ano é novamente a Thamy-chan!!! Você é tão azar... errr. =D


Disclaimer: Saint Seiya não é meu, mas a gente se ama do mesmo jeito.

História escrita para o Coculto, um amigo oculto de fanfics promovido pela comunidade Saint Seiya Super Fics Journal.




Máscara da Morte aparece na arena de treinamento bem cedo, com um sorriso de gato que engoliu o canário e quase saltitando ao invés de andar. Parece radiante – não consigo pensar em um adjetivo mais apropriado.

A adversária escolhida sou eu, não que ele possa ser exigente. A outra opção é Marin, mas ela está encolhida no primeiro degrau da arquibancada, ressonando audivelmente com o rosto sem máscara coberto por um jornal velho. Quem acha que a Amazona de Águia é toda disciplina e seriedade nunca teve a chance de vê-la de ressaca.

E por falar em ressaca, eu não estou lá muito melhor. Minha cabeça lateja sob o sol que parece mais brilhante e quente a cada minuto, mas meu orgulho jamais permitiria que me esquivasse de uma manhã de treinamento por um motivo tão desprezível. Odeio mudanças, especialmente na minha rotina de exercícios; minha máscara permanece exatamente onde sempre esteve e meu histórico de comparecimento aos treinos sempre será impecável, não importa que o mundo tenha acabado na noite anterior.

Nesse dia em particular, não tenho escolha se não treinar com o Cavaleiro de Câncer. Começamos em um ritmo lento, ditado por mim. O psicopata favorito de Athena não é conhecido pelos seus golpes limpos e é preciso se ter cuidado com ele. Câncer tem essa obsessão em vencer e age como se qualquer simples exercício fosse uma luta pela dominação mundial. Vencer para Máscara da Morte significa fazer o que for preciso. De preferência causando um bocado de dor no processo. Eu já estou com dor suficiente para arriscar adicionar ossos quebrados ao incômodo.

Não demora muito e os golpes se tornam mais rápidos, a série de exercícios mais intensa. Câncer ainda parece feliz da vida e, seja lá o motivo para isso, aparentemente o está fazendo esquecer-se de jogar sujo. Com um sorriso no rosto, a camisa aberta até a metade, o cabelo desgrenhado e começando a suar, não é que Máscara da Morte parece bastante...

Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não.

Eu sempre tive esse problema de delirar quando tenho enxaqueca. E tem o fato de Marin e eu termos bebido aquele vinho horroroso que Aioria costuma conseguir quando vai ao continente em missão. Aposto que nem Athena faz a menor ideia do que colocam naquela coisa. A combinação de ingredientes baratos deve estar causando algum efeito estranho em mim porque só isso explica eu ter pensado em Máscara da Morte como qualquer coisa diferente de maníaco, bastardo, psicopata, cretino...

O pensamento me deixa tão estarrecida que congelo no meio dos movimentos e ele me atinge com um golpe certeiro. Por um instante fico ali, jogada no chão, com o lado esquerdo do rosto em chamas, mas mal percebendo porque estou muito mais preocupada com a minha sanidade e em quando vou começar a ver pokemons dançarinos transitando pelas doze casas. Mal percebo quando Máscara da Morte praticamente me agarra pelos ombros e me ergue, perguntando se eu estou bem.

Máscara da Morte perguntou se eu estava bem.

Pensando bem, deve ter sido ele quem andou bebendo vinho estragado. Ou quando Athena falou sobre terapia era na verdade eufemismo para lobotomia. A próxima coisa que vou ver vai ser Afrodite de rosto lavado, com um piercing no nariz e usando saruel com estampa do exército.

Começo a dizer alguma coisa, mas então acontece: meia dúzia de soldados, liderados por Camus, correm gritando na nossa direção. O Cavaleiro de Aquário faz um gesto para pararem, o que parece causar grande alívio nos subordinados. Aquário então se aproxima sozinho:

- Máscara da Morte, por ordem de Athena e do Grande Mestre, eu estou aqui para escolta-lo até a cela de detenção.

- Uh?

Câncer, que ainda tem as mãos sobre os meus ombros, deixa-as caírem de lado, mas fora isso permanece imperturbável. A ponta de decepção que sinto me faz querer enfiar uma adaga em um dos olhos para ver se assim recobro uma parcela de sanidade.

Ele não fez nenhuma menção de falar, então, desesperada por uma distração, eu pergunto:

- Mas o que foi que ele fez agora?

A pergunta soa acusadora e os dois Cavaleiros olham para mim de sobrancelhas erguidas. Reviro os olhos. Não é como se Máscara da Morte não estivesse no topo da lista de “prováveis culpados por crimes ocorridos em um raio de cinco continentes”, se tal lista realmente existisse.

O sempre correto e próprio Camus parece que vai me mandar cuidar dos meus próprios assuntos, mas Câncer o interrompe:

- Não precisa ficar tímido, Aquário. Afinal, – aponta para a pequena multidão de soldados com um aceno de cabeça – não é como se todas as velhas fofoqueiras do Santuário não estivessem sabendo.

Camus olha na mesma direção e carranqueia. Nem ele pode negar que os soldados são responsáveis pela principal rede de notícias boca a boca do Santuário. E quando digo notícias quero dizer fofocas, já que geralmente as informações compartilhadas não servem para nada além de informar o horário da festa secreta na Casa de Escorpião ou espalhar o nome do último infeliz a ver o rosto de uma amazona sem a permissão dela.

- Eu estou aqui por causa das cabeças – diz Camus. Todos o encaram, espantados, e até Marin se mexe onde continua deitada. Uma vez decidido a falar, Aquário não é de fazer rodeios. – Cabeças andam aparecendo por todos os lados no Santuário.

- Não é maravilhoso? – diz Máscara da Morte com um sorriso que quase alcança as orelhas. Muito inteligente da parte dele. Pelo menos agora eu sei a razão para tanto bom humor.

-...e adivinha quem é o principal suspeito?

É a vez de Câncer revirar os olhos.

- Será que todas as vezes que aparecerem cabeças nas imediações eu serei o primeiro a ser apontado? – ele pergunta em um tom de voz que pode ser interpretado como sarcástico ou ofendido. O tipo de entonação que necessita muita cara de pau para aperfeiçoar. – Não posso ser apenas um apreciador inocente? Cabeças têm muita relevância histórica. Nas tribos africanas...

- Chega disso! – interrompe Camus. – Você pode contar ao Mestre sobre as tribos africanas. Agora vem comigo por bem ou nós podemos começar uma batalha de mil dias e resolver o problema à força.

Cavaleiros de Ouro e suas batalhas de mil dias. A última vez que ouvi uma ameaça como essa foi Milo e Aldebaran tentando resolver o que assistir na televisão. Não que qualquer um deles tenha coragem de levar a ideia adiante. Athena ficaria louca depois de todo o trabalho que teve para trazê-los de volta dos mortos.

- Tudo bem, eu vou – diz Máscara da Morte. – Mas só porque está quase na hora do almoço.

Aposto que a prioridade do Mestre vai ser alimenta-lo.

Fico parada no meio da arena de treinamento, vendo os dois Cavaleiros de Ouro se afastar com os soldados andando a uma distância segura atrás deles. Provavelmente ouviram “batalha de mil dias” e estão se preparando para sair correndo na direção contrária ao primeiro sinal de perigo. Inacreditável. Shion ainda tem coragem de me repreender quando uso soldados para trabalhos domésticos. Como se eles servissem para alguma outra coisa.

Acompanho a visão das costas de Máscara da Morte ao longe por mais tempo do que seria saudável, tentando entender minhas reações a ele mais cedo. Se for justa devo assumir que não foi a primeira vez. Desde que os Cavaleiros foram ressuscitados ele parece tão isolado e digno de pena. E quem mais além de mim entende o que é estar na lista negra de Athena? Não acho que ela tenha me perdoado completamente por tentar matar seu querido Seiya e mais tarde declamar meu amor eterno por ele. Sério, eu devo ter histórico de doença mental na família. Por que é que continuo tendo esse tipo de surto?

- Aspirina... Preciso... – balbucia Marin, ainda deitada com os olhos cobertos.

Uma ideia excelente. Eu mesma posso fazer uso de uma cartela inteira.

- * - * - * -



Acordo mais tarde me sentindo muito melhor.

Marin está na minha casa, destruindo a cozinha ao som de uma daquelas bandas asiáticas com excesso de delineador que ela gosta tanto. Levanto do sofá onde praticamente desmaiei ao voltar do treino me sentindo estranha, como se tivesse esquecido alguma coisa importante.

- Ei, Shaina, omelete? – Marin sorri para mim na maior cara de pau, como se não tivesse assaltado a minha geladeira e queimado os meus ovos com o meu fogão a gás que só consigo abastecer uma vez por mês, se tiver sorte. As promessas de Athena de melhora nos serviços de entrega da ilha continuam apenas isso: promessas.

- Não, obrigada, não estou a fim de ser envenenada – respondo com um grunhido que Marin ignora completamente.

Não sei quando diabos ela decidiu que éramos melhores amigas, mas ultimamente está sempre aparecendo do nada para algo que ela chama de “noite de garotas”, uma dessas coisas idiotas que aprendeu com a Saor... nossa estimada deusa Athena. Eu a recebo porque ela nunca vem de mãos vazias; um desses costumes japoneses que a gente tem que saber apreciar.

Na noite anterior ela apareceu querendo ver um melodrama terrivelmente chato sobre um homem que perde a memória depois de encontrar o amor da sua vida. Não me importei muito por causa do vinho. Apesar de que os vinhos da Marin costumam ser presente do Aioria e ele tem um mau gosto desgraçado para bebida. Camus costuma ser melhor nisso. Talvez ele tenha começado a aceitar dinheiro depois de ser promovido a braço direito do Grande Mestre. A posição vem com um milhão de responsabilidades, inclusive investigar desvios de comportamento de Cavaleiros de sanidade duvidosa como o Máscara da Morte... Engraçado, isso me lembra de um sonho esquisito que eu tive com o Cavaleiro de Câncer todo sorridente, cabelo desgrenhado, camisa semiaberta... Aquele vinho não me fez muito bem. Mas eu tenho certeza de que havia mais alguma coisa... Uma conversa sobre...

- Cabeças! – grito.

Marin se vira na minha direção segurando as duas colheres que está usando para virar a omelete.

- Não é ridícula essa história toda? Eu pensei que morrer tivesse feito algum bem ao Máscara da Morte, mas aparentemente...

- Espera ai, eu não sonhei com as cabeças? – pergunto, começando a ficar agitada. Se eu não sonhei com as cabeças, também não sonhei com Câncer parecendo ter saído de uma dessas fotos de calendário de bombeiros? Mas o que diabos eu estou pensando? Não havia nada diferente com ele! Eu só nunca tinha visto o filho da mãe sorrindo tanto. Uma pena que a cena perca parte do appeal quando lembro que toda aquela felicidade era por causa das cabeças.

- Eu não tenho como saber o que você andou sonhando – diz Águia, aborrecida pela interrupção. – Mas há cabeças aparecendo por todo o Santuário. Shion está subindo pelas paredes. E Milo e Aioria estão achando tudo muito engraçado, como os cretinos que são. Pobre Mestre.

- Milo e Aioria passaram por aqui enquanto estive dormindo?

Minha casa virou uma taberna?

- Não, mas alguns soldados deram uma passada. Sabe, pela nossa segurança – diz Marin, sarcasticamente.

Soldados do Santuário fazendo ronda para proteger Amazonas de Prata é a mãe de todas as desculpas esfarrapadas. Aquele trabalho deve ser um tédio se eles passam o dia todo circulando por ai, espalhando boatos.

- Eu não tenho ouvido falar de nenhuma pessoa desaparecida no vilarejo. De onde as tais cabeças estão vindo?

- Você devia perguntar ao Máscara da Morte.

- Perguntar ao Máscara da Morte? Por que diabos eu faria isso?

- Não vai conseguir respostas perguntando para mim - – responde Marin, me olhando de um jeito esquisito. A essa altura ela já chegou à conclusão de que a omelete que preparou não é comestível e que é melhor para a integridade física dela limpar a cozinha antes de sair.

Fico ali parada, pensando sobre tudo. Normalmente não daria a mínima para cabeças, pernas ou qualquer parte de corpo que aparecesse pelo Santuário, a não ser que fosse especialmente incumbida de lidar com a situação. Dessa vez, porém, me sinto perturbada. Parece uma imbecilidade completa da parte de Câncer voltar a cortar cabeças e deixa-las espalhadas onde qualquer um possa encontra-las. Tenho certeza de que Camus nunca deixaria passar algo tão óbvio.

Para minha grande irritação, constato que me sinto meio mal pelo Máscara da Morte. Não é fácil esquecer os erros do passado e seguir em frente com a vida quando todo mundo continua a desconfiar a apontar o dedo na sua direção. Eu que o diga. Todas as vezes que o infeliz do Seiya desaparece, quem acham que é a primeira pessoa para quem todo mundo vem perguntar? Como se eu tivesse o hábito de ficar escondendo homens no armário.

- Vou sair – digo a Marin.

Ela abre a boca para dizer alguma coisa, mas a impeço com o meu melhor olhar de advertência. Ai dela se eu não conseguir ver meu rosto no balcão da cozinha quando voltar.

- * - * - * -



Não há nada de estranho em eu passar pela Casa de Câncer a caminho do salão do Mestre. Shion está sempre falando como todos os nossos problemas devem ser levados à atenção dele e é imperativo que discutamos sobre a falta de gás.

Subo as escadas sem pressa, tentando identificar qualquer coisa que se pareça com uma cabeça jogada pelo caminho. Pelo jeito como todo mundo fala do assunto, é de se esperar que elas surjam rolando de todas as partes a qualquer momento.

Não vejo nada de estranho na escadaria das doze casas e já estou me recriminando por sequer pensar no assunto quando quase esbarro em Máscara da Morte.

A visão é chocante.

Ele está agachado na frente da grande construção da casa zodiacal cuidando do que parece um pequeno jardim improvisado. As mangas da camisa estão puxadas para cima, exibindo os antebraços atléticos e consigo ver os contornos dos músculos das costas através do tecido levemente encharcado de suor.

Novamente, o maldito está sorrindo. Será que Athena assinou algum decreto que o obriga a ficar esticando os lábios desse jeito?

Meu pulso começa a bater descompassadamente, como se eu tivesse feito todo o caminho correndo. A enxaqueca não é mais um problema e, a não ser que aquele vinho contivesse alguma droga pesada, dificilmente ele é o culpado a essa altura.

Mas que coisa mais irritante. Desde quando eu penso em Máscara da Morte como... como... um ser humano? Ele é um maníaco colecionador de cabeças! Tudo bem que ele pode ter se regenerado. O mínimo que se pode fazer por alguém que esteve no inferno e voltou é oferecer o benefício da dúvida. Qualquer um poderia sair por ai arrancando cabeças. Até mesmo eu. Não é como se não tenha o impulso de fazer isso toda vez que um idiota me pergunta por que ainda uso máscara quando todas as outras amazonas deixaram o costume de lado. Se o meu rosto ficar descoberto o tempo inteiro, que desculpa vou ter para matar os imbecis que o veem?

- O que é que você está fazendo?

Quase rolo escadaria abaixo ao ouvir a voz do Cavaleiro de Câncer bem na minha frente. Quando foi que ele chegou tão perto?

Em algum momento ele deslizou as mangas da camisa de volta para o lugar e está de braços cruzados, franzindo o cenho na minha direção. Sabia que aquela aparência de pessoa agradável era pura ilusão. Não que ele tenha ficado menos... o que? Interessante? Máscara da Morte, interessante? Como um cara com o nome de “Máscara da Morte” pode ser descrito como interessante a não ser por alguém muito viciado no Discovery Investigation?

- Nada – respondo. – Estou passando, qual o problema?

Juro que minha máscara vai ficar exatamente onde está até o final dos tempos. Nenhuma amazona consegue ser boa em fazer cara de pôquer depois de passar metade da vida sem precisar se preocupar com esse tipo de coisa.

- Passando? – ele dá mais um passo na minha direção. Máscara da Morte tem esse olhar penetrante, mas não do tipo que você descreveria como “consegue olhar no fundo da minha alma”. Mais para “investigando o lugar mais efetivo onde cortar meu pescoço”. – Veio dar uma olhada na aberração colecionadora de cabeças?

Parece que alguém está começando a desenvolver um complexo.

- Ah, então foi você – digo cruzando os braços também e desviando os olhos rapidamente para qualquer direção que não seja a dele. Aquele olhar está começando a me fazer ter visões da minha cabeça rolando pelo Santuário e, apesar de não acreditar realmente que ele faria isso, a perspectiva continua não sendo agradável.

- Por que todo mundo tem que ficar me perguntando isso?

E, em mais um gesto para a coleção de coisas que ninguém nunca esperaria Máscara da Morte fazer, ele joga os braços para cima exasperadamente com uma perfeita expressão de desespero.

- É o seu jeito de dizer que não foi você?

Se olhares matassem...

- Shion teria me deixado ir se tivesse sido eu? Já disse que nunca colecionei aquele tipo de cabeça!

- Heim?

Olho pateticamente na direção dele. Há mais de um tipo de cabeça? Fico imaginando uma revista de decoração para psicopatas com a matéria de capa: ESCOLHA O TIPO DE CABEÇA QUE MELHOR SE ADEQUA A SEU ESTILO. Abro a boca mais de uma vez para perguntar, mas a verdade é que não tenho certeza se quero saber. Shion e Camus que se preocupem com essa parte da história. Eu só quero saber... O que exatamente eu quero saber?

É a minha vez de me sentir exasperada.

- Se tivesse sido você, e estou falando de uma forma hipotética aqui, tenho certeza de que daria um jeito para ninguém descobrir – insisto na falta de alguma coisa melhor para dizer. – Shion não teria razão para mantê-lo preso se não tivesse provas, independente de você ser culpado ou inocente.

Máscara da Morte bate palmas.

- Bravo – diz. – Mas eu cansei dessa conversa. Agora, se me dá licença, vou voltar para a minha experiência – acena na direção do jardim. – Afrodite diz que é uma grande terapia para... conter certos impulsos.

Pergunto-me se ele está se referindo a mim e levo a mão ao pescoço inconscientemente. Câncer me lança outro olhar feio, como se soubesse exatamente no que eu estou pensando.

Ele volta a puxar as mangas da camisa para cima me ignorando completamente e engulo em seco. Tento me convencer que o problema não é a visão interessante daqueles braços e sim a ameaçada velada, mas a ideia da Amazona de Ofiúco com medo de um Cavaleiro, mesmo que seja um Cavaleiro de Ouro, é ridícula demais para levar a sério. Me obrigo a desviar os olhos e saio dali quase correndo.

A estimativa de que o caminho entre as doze casas e a área das amazonas leva quatorze segundos para ser percorrido está completamente errada. É perfeitamente possível fazer o percurso na metade do tempo.

- * - * - * -



- Esse drama é sobre uma mocinha submissa que é traída pelo noivo e encontra o amor ao conhecer o irmão dele. Mas ai ele tem essa doença rara com chances ínfimas de cura e...

- Esqueça. O único drama no qual estou interessada é no que aquele seu namorado falador disse sobre as cabeças.

É a primeira vez que oficialmente convido Marin para vir a minha casa e ela parece tão feliz apresentando sua escolha de drama que eu quase fico infeliz em cortar o barato dela. Quase.

Faz duas semanas desde que passei pela Casa de Câncer – o que foi uma total coincidência. Eu nunca teria nem pensado em parar se Máscara da Morte não tivesse puxado conversa – e eu ainda não consegui desencanar da história das cabeças. Elas continuam aparecendo pelo Santuário e os rumores de que Câncer é o culpado quintuplicaram, no mínimo. Para onde eu me dirija o nome dele está sendo citado como se fosse perseguição. E é claro que é por isso que agora eu até mesmo estou sonhando com as cabeças idiotas. O sonho da noite anterior foi particularmente demente: eu entro na Casa de Câncer e lá está seu dono com seus malditos braços perfeitamente esculpidos a mostra e camisa aberta pela metade. As paredes exibem a antiga decoração, cobertas dos rostos das pessoas que ele assassinou. Mas ao invés de gritos de desespero, eles estavam sorrindo. Sorrindo e cantando para mim: Urgent, urgent, emergency. Urgent, urgent, emergency.

Chego à conclusão que estou seriamente doente. Uma doença do cosmos da qual eu nunca ouvi falar, mas tenho certeza que existe.

Tentei de tudo para me livrar da obsessão, mas nada funcionou. Acrescentar quatro horas às minhas seções de treino habituais só me rendeu mais músculos doloridos; beber antes de dormir piorou a enxaqueca causada pelo esforço para não pensar em nada; incapacitar os soldados que falassem no assunto ao alcance dos meus ouvidos me proporcionou apenas alívio temporário... Até mesmo passei a ver mais dramas com Marin. Mas se vir mais uma obra de ficção sobre um cara metido a bad boy que se apaixona por uma mocinha submissa vou começar eu mesma a cortar cabeças. A começar pela da Amazona de Águia.

Não tem jeito, eu tenho que descobrir a verdade. Preciso ter certeza que Máscara da Morte não voltou aos velhos hábitos. Assim que outros Cavaleiros se convencerem da regeneração dele, passarão a convida-lo para os jogos de pôquer da sexta feira à noite (ou seja lá para onde eles desaparecem nesse dia) e eu não vou ter mais motivos para sentir pena de Câncer. Porque é isso que eu estou sentindo: pena. Compaixão por um Cavaleiro de Ouro marginalizado é algo tão alienígena vindo de mim que estou começando a confundir as coisas.

Se eu quero saber sobre os rumores, Aioria é a pessoa a procurar. O problema é que eu levei tanto tempo para me decidir que ele acabou sendo mandado em uma missão de um mês em algum país remoto da África Oriental e agora eu vou ter que me contentar com informação de segunda mão.

Marin me olha com os olhos estreitados.

- Namorado? Ele não é... Você está tentando desviar minha atenção? Porque eu percebi que ultimamente está muito interessada nesse assunto das cabeças. Não me diga...

Por Athena, esqueci completamente que Marin é muito boa em adivinhar o que os outros estão pensando. Não éramos exatamente próximas durante os anos de treinamento, e teve aquele drama todo com a armadura de Pégaso, mas quando se trata de força estamos mais ou menos no mesmo nível. Além disso, em geral, nós amazonas somos excelentes em ler linguagem corporal. É uma habilidade que você desenvolve quando vive entre dúzias de mulheres sem ser capaz de ver a expressão de seus rostos. Marin, no entanto, sempre foi melhor nisso que a maioria das outras. Deve ter ficado melhor ainda sendo obrigada a adivinhar o que se passa na cabeça do Seiya.

- Não me diga que agora você está se interessando pelo Máscara da Morte – ela diz muito séria. Um silêncio pesado cai entre nós, mas então ela explode em uma gargalhada. – Não precisa ficar chocada, eu estava tirando uma e... Shaina?

- Hm?

- Você não está se interessando pelo Máscara da Morte, não é? – ela repete, dessa vez preocupada. Os olhos se abrindo até ficarem do tamanho de bolas de bilhar.

- É claro que eu não estou interessada pelo Máscara da Morte! – respondo com o máximo de indignação que consigo falsificar. – Você anda assistindo esses dramas idiotas tempo demais. Isso me tornaria a amazona com pior gosto para homens da história da humanidade!

Não que eu viva trocando de interesse amoroso. Estava na verdade pensando no Seiya que é, tipo, muito mais novo do que eu e, mentalmente falando, nem pertence à mesma geração. Vamos adicionar a isso o fato de que a reencarnação de Athena, deusa a quem devo proteger e me submeter, está muito mais que apenas interessada nele. Quando lembro que ele viu o meu rosto e eu perdi a oportunidade de mata-lo tenho vontade de bater a cabeça contra a parede até sentir o cérebro escorrer pelas orelhas.

Quanto ao Cavaleiro de Câncer, psicopatas diagnosticados não fazem o meu tipo. Por outro lado, ele é um Cavaleiro de Ouro em uma idade adequada, com um cérebro funcional e o único interesse que demonstrou por Athena foi cortar a cabeça dela – isso antes, claro; agora ele clama completa devoção e fidelidade. Alguns diriam que é um avanço em relação ao Seiya.

Reviro os olhos:

- Apenas responda a pergunta. Sei muito bem que você encontrou Aioria antes dele sair em missão e que ele gosta de farrear antes da partida. Não precisaria mais que dois goles de vinho para ele começar a soltar a língua e tenho certeza que o assunto das cabeças surgiu em algum ponto. Pode começar a falar!

Ela ainda está me olhando desconfiada, mas aquiesce com um suspiro. Não é como se eu vá deixa-la em paz em um futuro próximo se não responder.

- Camus é o responsável pela investigação. Ele proibiu Aioria de meter o nariz nesse assunto para não correr o risco de ter fotos de cabeças indo parar naquele blog que ele mantém. Os soldados têm ordens para levar qualquer cabeça encontrada direto para o Salão do Mestre e lidar com as testemunhas.

- Eles estão matando as testemunhas? – pergunto e imediatamente me arrependo. Claro que Shion nunca ia permitir que uma coisa dessas acontecesse. Esse tipo de conspiração só acontece nos filmes.

- Você acha que Athena permitiria isso?

Ah, é, nem Athena.

- Eu quis dizer que eles falam com as testemunhas e explicam a necessidade de se manterem em silêncio. Não que elas façam isso se persuadidas da maneira certa.

- Então existem fotos das cabeças circulando pela rede? – me aproximando, animada. A coisa está começando a ficar interessante.

- Claro que não! – Marin deixa escapar um grunhido de desdém pela sugestão. – Aioria não é tão idiota assim. Ele sabe que nunca escaparia impune se essas fotos vazassem. O Mestre pode ser velho, mas não é manipulável.

- Mas as fotos existem... – insisto.

- Talvez...

Isso é bom. Se eu conseguir ver as fotos, talvez possa identificar as vítimas e, consequentemente, o autor dos crimes.

- Acho que devemos ver aquele drama agora – eu digo. Marin ergue as sobrancelhas, confusa. – Mas eu vou ter que dar um pulo na vila para comprar cerveja. Sabe como é, para quando o cara começar a lutar com a tal doença incurável e eu ficar com dificuldade de lidar com as minhas emoções...

- Claro – responde Águia, obviamente não acreditando em uma palavra do que estou dizendo. – Mas é melhor você usar a entrada de serviço.

- O que?

- A Casa de Leão tem uma entrada de serviço e ela costuma ficar aberta. Você não acha que devia saber desse tipo de coisa antes de planejar um arrombamento?

- Oh... Você pode ir começando a assistir sem mim. – digo, me afastando de costas na direção da porta. – Eu volto logo com o vinho. Digo, a cerveja.

Marin ainda tenta me dizer alguma coisa, mas eu já estou longe demais para dar atenção.

- * - * - * -



Não é difícil encontrar a tal entrada de serviço e, exatamente como Marin tão prestativamente me informou, está aberta.

Nunca pensei que fosse tão fácil entrar na casa de um Cavaleiro de Ouro. O morador deve assumir que simplesmente sentirá a presença de um invasor e terá tempo de vir correndo desintegra-lo antes que aconteça algo de mais grave. Homens.

Só porque Athena diz ter certeza que todos os deuses gregos com tendências destrutivas estão hibernando não quer dizer que não haja outros, não gregos e desconhecidos, prontos a atacar a qualquer momento. Deixar a porta de serviço destrancada me parece uma grande idiotice. Faço uma nota mental para lembrar-me desse argumento no caso do Leão descobrir o que estou fazendo.

A casa está escura e o ar tem um cheiro forte de mofo. Aioria não limpa esse lugar? Logo na entrada piso no que parece um amontoado de garrafas plásticas e quase perco o equilíbrio. Por questões de segurança, começo a andar apoiada na parede como um rato, avançando o mais silenciosamente possível. A última coisa de que preciso é algum outro morador do Santuário vindo checar barulhos estranhos em uma casa que deveria estar vazia.

O computador de Aioria fica no escritório e, se bem me lembro, o mesmo está localizado no final desse corredor. Estive na Casa de Leão apenas dois meses atrás em uma festa e não perdi a chance de fazer um tour pela residência. Conclui que as doze casas são muito menos interessantes do que os relatos fazem parecer. Apenas meia dúzia de quartos bagunçados que parecem exatamente iguais a qualquer apartamento de solteiro do mundo.

Encontro o escritório facilmente, mas dentro está tão escuro quanto o corredor. Droga, devia ter trazido uma lanterna. Pelo menos a porta está destrancada. Penso em acender a luz, mas temo que o intrometido do Shaka perceba alguma coisa errada. Pior: Máscara da Morte. Este sim teria o maior prazer em vir investigar só para ter a chance de eliminar alguém.

Tateio pela bagunça que parece ainda maior nesse cômodo até esbarrar na mesa de escritório. Depois disso não demoro a encontrar o computador. Ligo-o apressadamente, aliviada quando o brilho da tela ilumina parte do ambiente. Há papeis de todos os tipos espalhados pela mesa, a maioria amassado sob embalagens de comida vazia. Inacreditável que ele vá passar tanto tempo em missão e sequer se deu ao trabalho de tirar o lixo.

O barulho do computador anunciando o carregamento do sistema operacional ecoa pelo escritório quase alto demais. Perfeito. Darei uma olhada rápida nas fotografias e estarei de volta em casa em minutos. Talvez até leve as tais cervejas. Marin não vai fazer perguntas se estivesse ocupada bebendo. É então que noto algo errado. Não há um papel de parede na tela, mas uma caixa branca pedindo uma senha.

Senha? De jeito nenhum! Por que não pensei nisso antes? E Marin, por que não me disse nada? Será que foi isso que ela ficou gritando da porta enquanto eu corria na direção contrária o mais rápido que podia? Maldito Aioria! Como ele espera que alguém bem intencionada como eu veja seus arquivos pessoais se ele protege o computador com uma estúpida senha? E depois de me dar ao trabalho de invadir sua casa no meio da noite.

De jeito nenhum vou voltar para casa de mãos abanando. Começo a testar as opções mais óbvias:

Aioros. Senha incorreta.

Marin. Senha incorreta.

Leão. Senha incorreta.

Athena. Senha incorreta.

Talvez um número? Mas eu não faço ideia da data de aniversário dele. Eu esqueceria a minha se as outras amazonas não aparecessem todos os anos para me dar os parabéns.

- Tente sexylion23.

Agora não preciso mais me preocupar em chamar a atenção do Cavaleiro de Virgem. Meu grito provavelmente foi ouvido pelos espectros.

Viro-me em uma postura defensiva e começo a elevar o cosmos. O primeiro golpe talvez me atinja, mas terei uma boa chance de me defender se atacar de volta com rapidez...

- O que diabos você está fazendo? Apenas digite a estúpida senha!

O meu adversário dá um passado para frente e a luz do computador ilumina seu rosto. Lá está Máscara da Morte, exatamente o homem que alguém quer encontrar em um quarto escuro. Ele pisca repetidamente como se a luz o incomodasse, mas não parece nem um pouco interessado em lutar comigo.

- O que diabos eu estou fazendo? – pergunto, irritada. – O que diabos você está fazendo! Quem disse que podia entrar na casa de outra pessoa no meio da noite e quase me matar do coração?

Câncer ergue uma sobrancelha debochada. Ah, claro, eu não estou exatamente em posição de pedir explicações, mas pelo menos não tentei matar ninguém aparecendo de repente na escuridão. Ai está mais um motivo porque esse cara é tão sinistro e que pensar nele como qualquer outra coisa não faz o menor sentido. E o que foi que ele disse antes que eu reagisse? Sexy...

- sexylion23. Só o Aioria para usar uma senha tão idiota. E para escrevê-la atrás daquele calendário na parede – ele aponta para a esquerda antes de voltar a acenar na direção do computador. – Eu sabia que ele tinha que ter anotado em algum lugar. Leão não se lembraria da cabeça se não estivesse ligada ao pesc... esqueça.

Máscara da Morte acena com a mão como se desconsiderando o comentário. Se não o conhecesse, diria que parece constrangido. Aproveito o momento para me recompor e voltar ao que estava fazendo. Sento-me de frente para a tela e digito a senha, sentindo uma pontada de triunfo quando o papel de parede aparece, uma fotografia antiga de Aioria e Aioros quando crianças. Imediatamente começo a abrir todas as pastas até encontrar uma nomeada como “Confidencial”.

- Só espero que seja a pasta certa... – vou ter pesadelos por uma semana se for ai que ele guarda fotos íntimas tiradas na frente do espelho ou qualquer coisa parecida.

- Procure pela subpasta com a data da semana passada – diz Máscara da Morte, apoiando-se na mesa e aproximando o rosto do computador para ver melhor.

Meu corpo se enrijece no mesmo instante. Nessa posição posso sentir a respiração dele no meu pescoço e estou muito consciente da parede de músculos que é o seu corpo atrás do meu. Se ele quiser pode arrancar meu pescoço com um simples gesto de mão e duvido que vou ser capaz de reagir.

- E agora, qual o problema? – ele me interrompe. – Você não vai procurar?

- Procurar o que? – pergunto meio tonta ao perceber no que estava pensando. Eu também adoraria saber qual é o meu problema.

- Não banque a esperta perto de mim – diz Câncer em seu usual tom ameaçador. – Sei muito bem o que você veio fazer aqui.

Reviro os olhos dramaticamente.

- E o que vai fazer se eu não disser nada? – “Arrancar minha cabeça?”, completo mentalmente, mas por alguma razão sou incapaz de falar isso em voz alta. Não parece certo. O que é estranho, porque nunca tive nenhum pudor em jogar na cara do Máscara da Morte – ou de quem quer que fosse – seus passados condenáveis.

- Contar ao Grande Mestre como eu estava pacificamente assistindo TV na minha casa quando ouvi um barulho vindo do vizinho de cima e resolvi investigar? Só estarei sendo prestativo quando entregar você por invasão de propriedade.

Shion provavelmente nem ia ficar surpreso. Ele ia adorar uma desculpa para me fazer assistir palestras sobre disciplina e relações humanas ou outra coisa sonífera como essa.

- Você disse semana passada?

Não preciso olhar para o lado para saber que Máscara da Morte está exibindo um sorrisinho presunçoso.

Encontro a pasta na primeira tentativa. Acontece que o tal arquivo “Confidencial” é nada mais que material para possíveis matérias do blog. “Para a posteridade”, é o que diria Aioria se estivesse aqui. Afinal, um dia haverá uma nova encarnação de Athena e novos Cavaleiros que vão querer se informar sobre as batalhas desse século e aspectos da vida do Santuário em geral. A Internet foi projetada para sobreviver a uma guerra nuclear e isso soa mais confiável que os caderninhos de anotações do Mestre Shion. Quem sou eu para discutir com um argumento desses?

Clico duas vezes. A pasta está cheia de fotos de cabeças.

Devem ser umas cinquenta fotos, nomeadas como kephale01, kephale02 e assim sucessivamente. Mas são cabeças muito estranhas.

- O que diabos eu estou vendo aqui? – pergunto a um Máscara da Morte que encara as fotos com uma mistura de fascinação e descontentamento.

- Essas são as cabeças encontradas pelo Santuário? – ele pergunta. – O que é que o idiota do Camus está pensando, que eu comecei a fazer artesanato?

Observo cuidadosamente uma das fotografias. É uma cabeça, sem sombra de dúvidas, mas parece pequena e enrugada como se fosse feita de borracha. Não há olhos visíveis, as pálpebras e os lábios parecem costurados e a pele é escura como couro de sapatos.

- São horríveis – franzo o cenho, confusa. Foi isso que ele quis dizer com “tipos de cabeça”?

- Não tenho nada a ver com isso.

Olho para Câncer, surpresa com a falta de desafio na voz dele. Parece apenas aborrecido.

Decido que acredito nele.

- * - * - * -



Volto para casa a tempo de ver a mocinha do drama declarar amor eterno a um cara alto, com expressão entediada.

- Esse é o irmão cretino – explica Marin. E parece contente em apenas assistir ao restante do episódio. Nem mesmo comenta sobre eu ter demorado tanto e aparecido de mãos vazias.

Desejo ter me lembrado da cerveja. Se eu bebesse o suficiente talvez esquecesse aquelas imagens revoltantes de cabeças esquisitas no computador de Aioria. Se tivesse sorte acordaria achando que sonhei com a presença de Máscara da Morte na Casa de Leão.

Ok, eu admito que ele tenha algo de atraente. É fácil não perceber isso quando você o vê como a própria encarnação do mal. Talvez ele seja como um dos personagens principais de um dos dramas da Marin e esquecerá tudo sobre cabeças se encontrar o verdadeiro amor...

Aposto que até o Mestre ia se matar de rir se ouvisse essa.

Por outro lado, eu também não sou nenhuma santa. Não fui eu quem subiu na mesa durante a festa de comemoração da vitória contra Hades e blasfemou contra a deusa, acusando-a de manter uma relação ilícita com um cavaleiro? Pelo menos foi que Aioria publicou no blog dele, porque sinceramente não consigo me lembrar de nada disso. Não que o Mestre tenha aceitado esse argumento na hora de me mandar numa missão na Argélia até que as coisas esfriassem com Athena.

É fácil admitir qualquer coisa que eu queria sobre Máscara da Morte em pensamento. O problema é: o que é que eu vou fazer a respeito?

Mais importante: devo fazer alguma coisa sobre a história das cabeças? Não é como se eu pudesse ir até Athena ou o Mestre e declarar que o estado de conservação das mesmas não combina com o MO do Cavaleiro de Câncer. E que, a propósito, eu sei disso por causa das fotos que Aioria tirou sem permissão e que eu vi depois de entrar as escondidas na casa dele e invadir seu computador protegido por senha. Como eu sei que Máscara da Morte não mudou de MO? Bem, um cara com a respiração tão quente não pode ser um completo bastardo frio por dentro, não é mesmo?

Adormeço no sofá mais uma vez e nem percebo quando Marin vai embora. Ela deixa um bilhete dizendo que pegou um pacote de salgados emprestado e que eu pensasse duas dúzias de vezes – melhor três – antes de ir mais fundo naquela história das cabeças. Acho que é hora de colocar cadeados nos armários da minha cozinha.

Dirijo-me para as arenas de treinamento assim que o sol nasce na manhã seguinte, pensando em esticar a prática até o final do dia se encontrar alguém disposto a colaborar.

Dessa vez encontro Milo e Afrodite conversando nas arquibancadas. Será que alguém além de mim usa esse lugar para treinar?

- O que os dois molengas estão fazendo ai em cima? – pergunto, sem realmente esperar uma resposta.

A presença do Cavaleiro de Peixes, porém, é um evento tão raro que me faz olhar para eles uma segunda vez. Sempre me pergunto como Afrodite conseguiu uma armadura de ouro. Ele está sempre se recusando a acompanhar alguém nos treinos dizendo que odeia suar.

Milo, porém, também não parece muito interessado em se mover. Está ouvindo atentamente o que Peixes está dizendo. Consigo captar as palavras “máscara”, “crime”, “mestre” e, antes mesmo que possa pensar no assunto, já estou quase correndo na direção deles.

-...sugeri cuidar de um jardim. Você sabe como as plantas têm um poder curativo para a alma – diz Afrodite. – Mas ele disse que não tinha o menor jeito com trabalhos manuais.

- Sim, sim – diz Milo, impacientemente. Os olhos dele brilham de curiosidade. Será possível que ninguém no Santuário sabe o significado da palavra descrição? – Concordo com tudo. Agora me diga o que foi que o Grande Mestre disse ontem quando você o viu.

Afrodite morde o lábio inferior como sempre faz quando se irrita com algo. Imagino que prefira falar de jardins e reclamar por horas sobre como suas rosas são incompreendidas, mas Milo está interessado em alguma outra coisa. Tão absortos estão na conversa, nem olham na minha direção.

- Não sei por que você está tão interessado nisso.

- Afrodite...

- Tudo bem, tudo bem – Afrodite faz um gesto para que Milo se cale.

O que está prestes a dizer pode não fazer parte de seu assunto favorito, mas mais do que qualquer coisa, Peixes adora ser o centro das atenções. Tenho certeza que ele sabe exatamente que estou aqui ouvindo a conversa e isso deve deixa-lo ainda mais satisfeito.

- O Mestre estava animado por finalmente ter recebido o relatório de Camus sobre o assunto das cabeças – diz ele. – E eles vão eliminar o culpado... – olha na direção do sol. – Devia ser hoje pela manhã, mas ouvi que Seiya quem vai cuidar disso e você sabe como ele nunca acorda cedo. Dizem as más línguas...

Não fico para ouvir o resto. Na palavra “eliminar” já estou voando na direção da Casa de Câncer. Mais tarde tenho certeza de que vou me arrepender disso, mas, raios, como o Mestre pode ser tão precipitado? Eliminar o culpado? E o Seiya, entre todos os Cavaleiros? Deve ser tudo uma conspiração porque precisam de um bode expiatório. Quem melhor que o Máscara da Morte quando o crime envolve cabeças? E ninguém além de mim, Aioria, o próprio Câncer e os envolvidos na investigação deram uma boa olhada nos cadáveres.

Aquele ancião em corpo de surfista do Shion... Sempre soube que ele tinha que ter algum defeito. Ou talvez tenha sido ideia de Athena. Ouvi umas coisas bem interessantes sobre como ela agia quando era apenas Saori Kido. E há todas aquelas histórias sobre as coisas loucas que os deuses faziam nos tempos antigos. Coisas como engolir os próprios filhos ou exigir o sacrifício de virgens para acabar com tempestades que eles mesmos causaram por estarem entediados.

- Você tem que sair daqui imediatamente – digo no instante em que encontro Máscara da Morte.

Ele está cobrindo a tentativa de jardim com pedrinhas como se não tivesse uma preocupação nesse mundo. Será que vou ter que explicar que não é assim que se age quando se é suspeito de múltiplos assassinatos?

- Não, obrigado – diz ele. – Minha agenda do dia não inclui sair de casa. Já que o jardim não funcionou, vou tentar a sugestão de Marin e assistir dramas asiáticos. Espero que sejam mais interessantes que as novelas do Aldebaran...

- Você tem que ir – digo, puxando-o pelo braço. – Seiya está vindo para elimina-lo!

Assim que pronuncio as palavras, percebo como soam ridículas. Máscara da Morte, que estava reagindo puxando o braço na direção contrária, para e começa a gargalhar maniacamente.

Solto o braço dele e fico observando-o. Qualquer atração que pudesse estar sentindo não tem condições de sobreviver a essa cena, tem? Rindo desse jeito ele parece um vilão de desenho animado. Zorak ou o Macaco Louco... Se eles fossem altos e bonitos...

- Seiya não elimina nem uma barata – ele diz quando o ataque de riso enfraquece. – A não ser que ela esteja voando na direção de Athena.

- Ele pode estar temendo que você fique louco e tente cortar a cabeça da deusa – eu digo na defensiva.

- A cabeça dela não é interessante. A sua, por outro lado, tem até uma parte para desembrulhar... – ele faz um gesto na direção da minha máscara, mas não me movo. Idiota. Será que não está vendo que estou tentando ajudar?

- Afrodite ouviu o Mestre dizer que tinha recebido o relatório de Camus... – faço uma última tentativa. Quanto mais falo nisso mais a história parece não fazer sentido.

Eu vou ficar louca, vou mesmo. Será que gosto tanto do Máscara da Morte que meu cérebro entrou em curto e eu vim correndo até aqui salva-lo do terrível Cavaleiro de Pégaso? Ele tem razão, Seiya não tem vocação para carrasco.

Isso não faz nenhum sentido! É como um dos dramas da Marin, onde as pessoas se interessam umas pelas outras por osmose, sem que tenham absolutamente nada em comum. O que eu posso ter em comum com o Máscara da Morte além de sermos ambos Cavaleiros? E não termos nenhum pudor em invadir casas vazias no meio da noite? Eu sei que ele também não é o maior fã das palestras motivacionais do Shion, mas isso dificilmente explica meu comportamento.

-...então elas se espalharam pelo Santuário.

- O que?

Aparentemente Câncer esteve falando por cinco minutos inteiros, mas eu não ouvi uma palavra. Ele percebe minha confusão, porque deixa escapar um grunhido e agarra o meu pulso, me fazendo acompanha-lo na direção da casa.

Paramos na sala de estar onde dois sofás estão dispostos de frente para uma grande televisão. Ao contrário de Aioria, Máscara da Morte parece conhecer o significado da palavra arrumação e não há uma almofada sequer fora do lugar. Sinto o impulso de me abaixar e checar o chão em busca de poeira, mas me controlo. Ao invés disso olho para o lado, na direção da parede, onde três pequenos quadros servem como única decoração.

A princípio não consigo entender o que eles representam. Máscara da Morte sorri orgulhoso.

- Camus descobriu que as cabeças caíram no Santuário por engano quando estavam sendo transportadas para um museu em Atenas – diz ele. – O Mestre se sentiu tão mal por desconfiar das minhas boas intenções – ele fala isso de um jeito que claramente diz quão ridícula a ideia lhe parece – que me deixou trazer para casa essa pequena lembrancinha. Não é a coisa real, mas é o mais próximo que Athena permitiria.

A essa altura eu nem preciso ver claramente para saber o que está dentro das molduras: três fotografias daquelas horríveis cabeças mumificadas.

- Fala sério...

- São tzantzas, como eu tentei explicar para o Camus no primeiro dia. Bem comuns entre tribos africanas e da América do Sul. Não é um sonho?

- Acho que estão mais para pesadelo...

- O processo é fascinante – continua Máscara da Morte, me ignorando completamente. – A cabeça é cortada por trás e a carne e a gordura retiradas. A pele e os cabelos são fervidos, o que faz com que elas encolham desse jeito. Depois elas são secas e raspadas e...

Ele continua falando por um longo tempo. Para quem acha que risada maníaca é eficiente em cortar qualquer clima devia experimentar ouvir uma receita de mumificação de cabeça. Mais um item na lista de problemas a serem levados à atenção do mestre: aumentar o número de seções de terapia semanais do Máscara da Morte. Isso e perguntar qual o sentido de recompensar alguém por não ter cortado nenhuma cabeça com fotografias de cabeças cortadas.

- Quando eu morrer eu espero que façam isso com a minha cabeça – termina ele.

Fenomenal. Essa visão acaba de me condenar a dez anos de abstinência, no mínimo. Talvez eu deva sugerir ao Camus distribuir esses quadros como parte de sua campanha contra relações amorosas entre Cavaleiros.

- Viu? Você não tem com que se preocupar – diz Câncer, ainda encarando os quadros com um brilho radiante no olhar.

Respiro fundo, me sentindo aliviada. Ele tem razão, não tenho absolutamente nada com que me preocupar.

- * - * - * -



Da próxima vez que vejo Máscara da Morte estou novamente na arena de treinamento, descansando após horas de exercícios. Marin está me olhando com ar divertido.

- Câncer resolveu treinar sem camisa hoje – diz ela.

- Percebi – respondo, entornando uma garrafa de água.

- Veja como os cabelos dele estão colados na nuca por causa do suor.

- Notado.

- E o rosto dele não fica iluminado quando ele sorri?

- Fato.

A arena está cheia hoje. Desde que Shion ameaçou fechar a taberna do vilarejo se os Cavaleiros não voltassem a levar o treinamento a sério, todos eles começaram a ficar subitamente assíduos.

Olho para o Cavaleiro de Câncer, absorvendo todos os detalhes que Marin apontou: músculos, ok; cabelo, ok; sorriso, ok. Então o imagino com a cabeça mumificada e qualquer reação que pudesse ter tido morre antes mesmo de se insinuar. Viverei o resto da minha vida feliz se todas as cabeças que vir daqui para frente estiverem bem presas em cima de um pescoço.

Máscara da Morte olha de volta para mim e acena. Retorno o cumprimento e então noto que todos os Cavaleiros estão lançando olhares na minha direção.

- A propósito – diz Marin – por que é que você resolveu desistir da máscara de repente?

- Autopreservação.

Quando todos os cavaleiros viram o seu rosto, você não tem nenhum remédio a não ser ignorar a tradição. Não dá para amar ou matar todos eles.

- Então, Shaina, está a fim de treinar a sério? – alguém grita entre os cavaleiros.

Sorrio e corro de volta na direção da arena.


FIM



A música do sonho das cabeças cantantes é Urgent do Foreigner.

Link da wikipedia caso alguém queira ver algumas tzantzas: http://es.wikipedia.org/wiki/Tzantza (em espanhol).

Obrigada por ler! =D

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