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[Saint Seiya] Remissão, escrita por Anita

Título: Remissão
Autor(a): Anita
Fandom: Saint Seiya
Classificação: 10 anos
Gênero(s): gen. Drama, amizade, comédia.
Resumo: Shura de Capricórnio, Aioros de Sagitário. Com o final da batalha contra Hades, todos os cavaleiros de ouro foram ressuscitados, incluindo Aioros. Como Shura poderá se redimir pelo que fizera ao amigo anos antes?

Notas Iniciais:
Saint Seiya não pertence a mim e não lucro nada com esta história. História escrita para o Coculto, um amigo oculto de fanfics promovido pela comunidade Saint Seiya Super Fics Journal. Tomei a liberdade de considerar que as amazonas não usam mais máscaras nesta história.

Olho Azul Apresenta:
Remissão

  Fazia já alguns meses que Athena havia ressuscitado todos os cavaleiros de ouro e, apesar de isso ser tempo o bastante para eles até esquecerem que haviam morrido, restava uma resistência no peito de Shura. Não que lhe fosse impossível identificar a causa. Pelo contrário, ele a observava agora mesmo do topo da Casa de Áries, enquanto descia as escadarias.

  Aioros. O cavaleiro de Sagitário devia ser o mais deslocado dentre todos os que haviam retornado.

  Claro, cada um devia ter sua queixa. Saga ainda parecia perseguido pelo estigma de tudo que sua outra personalidade causara. O próprio Shura ainda não superara as consequências de suas ações anos antes, quando punira seu melhor amigo sob uma acusação que se revelara falsa. Máscara da Morte não parecia à vontade com a limpeza dada em sua Casa, nem com a constante observância por que vinha passando. Dohko continuava a ser interrogado por todo o Santuário e muitas vezes era acusado por soldados de ser um invasor. E Aioros ainda não achara seu lugar no meio de tantas pessoas novas.

  De fato, quantos permaneciam em seu posto por quatorze anos inteiros? Havia apenas Saga, ele próprio e Dohko entre os cavaleiros de ouro, sendo que o último mais parecia uma miragem para o próprio Shura, quem lutara a seu lado contra Hades, e Saga pusera todo o Santuário contra o cavaleiro de Sagitário. Ainda que Aioros não guardasse qualquer mágoa, Gêmeos estava bastante ocupado em seu posto como Mestre do Santuário, ganho por indicação de Dohko e da própria deusa Athena quando o primeiro o recusou.

  Shura começou a respirar pesado enquanto ouvia Aioria dar ordens aos soldados. Sabia que Aioros podia fazê-lo muito melhor que o mais novo, mas aquele se satisfazia apenas em observar, mesmo quando o outro falava algo errado. Nem com seu irmão Aioros parecia à vontade. Era gritante também a distância entre ambos e, como seu antigo melhor amigo, Shura sabia o quanto a situação incomodava o mais velho.

  Logo, os soldados se dispersaram e os dois cavaleiros de ouro se voltaram para subir até suas Casas. O olhar cansado de Aioros encontrou o de Shura nesse momento e, com esforço nítido, o cavaleiro de Sagitário lhe sorriu.

- Shura.
- Vejo que ainda está observando mais que fazendo - disse-lhe em resposta.
- É, é sempre bom aprender um pouco mais.
- Com licença, é melhor eu subir. – Aioria passou direto por Shura e deixou o irmão como se não houvesse qualquer relação entre ambos.

  E aquela não fora uma impressão exclusiva de Shura, pois Aioros ainda seguiu calado o mais novo com o olhar até que entrasse na Casa de Áries.

- É melhor eu também ir. Já passei bastantes horas fora de minha Casa, observando Mu treinar seu discípulo.
- Ah, certo. – Não, não estava certo, mas Shura não conseguia pensar em nada para dizer.

*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*

  Foi naquela mesma noite que o cavaleiro teve uma ideia. Uma péssima ideia, ele já sabia desde então, mas era a única disponível. Shura precisava achar um lugar para Aioros dentro do Santuário.

  Shura queria crer que bastaria uma pessoa com quem o amigo pudesse se sentir à vontade e seu humor melhoraria. E a resposta de qual pessoa seria a ideal veio junto com a ideia. Claro, ele considerara pessoas legais como Aldebaran, ou boas de papo como Miro e até mais centradas e de bom coração como Mu – quem Aioros aliás já conhecia. Entretanto, a ideal mesmo não podia ser outra: Aioria de Leão.

  Mais que irmãos, os dois eram mestre e discípulo; tinham toda uma história em comum. Também não era segredo o quanto o mais novo admirava Aioros. Eles apenas ainda não haviam se entendido o bastante no meio de tantas coisas que vinha acontecendo naqueles meses de reconstrução do Santuário. Era muito que fazer e resolver: templos destruídos, armaduras vazias, pessoas suspeitas de traição.

  Seria perfeito se pudessem tirar um dia e se divertir, tal qual faziam outrora nas raras permissões de saída que conseguiam do Mestre. Shura apenas precisaria conversar rapidamente com Saga e pronto: todos iriam à praia mais próxima, aonde Aioros sempre levara o irmão quando este ainda era um infante. E, para garantir que iriam mesmo, Shura poderia acompanhá-los e forçar algum tópico em comum ou alguma brincadeira na areia como nos velhos tempos.

  O cavaleiro de Capricórnio não era muito afeito a autocongratulações, mas sentia uma grande satisfação consigo mesmo só em pensar no quanto Aioros ficaria feliz quando voltassem os três daquele passeio. Talvez Shura até se tornasse um estorvo no meio de tanto amor fraternal que, enfim, seria exteriorizado.

*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*

  O que parecera ser a parte mais difícil de seus planos revelara-se a mais fácil: com um enorme sorriso, Saga concedera a permissão para os três cavaleiros saírem. Contudo, Shura acabara mentalmente exausto e fisicamente frustrado após todo o dia na companhia dos irmãos.

  Ao contrário de todas as suas expectativas, eles não correram pela areia, nem apostaram corrida no mar. Shura até tentara desafiá-los no nado, justo ele que nunca simpatizara com coisas como apostas! Mas Aioria dissera que preferia continuar a ler o livro que levara – Aioria nem sequer era do tipo que lia! No final, Aioros ficara tão chateado com a recusa que Shura desistira de nadar poucas braçadas depois do início.

  Fracasso era uma descrição muito pobre para o resultado de seu plano. Desastre, catástrofe, nada chegava perto de descrever aquele dia com precisão.

  Claro, Shura já havia imaginado que os dois não começariam a se falar tranquilamente só porque estavam a sós em uma praia. Talvez uma ou outra lembrança despertasse um rápido assunto, mas Shura não era tão ingênuo a ponto de achar que só aquilo já viraria o jogo. Ele os acompanhara justamente sabendo disso tudo.

  Apenas não havia adicionado aos seus cálculos que ele próprio não estava muito bem com Aioros e que sua relação com Aioria beirava a inexistência.

  Não obstante a má experiência, algo de bom viera dali: estava claro que seu amigo queria seguir em frente. Um dia, conseguiria refazer os laços com o irmão. Por ora, ele podia atacar outra frente daquela batalha.

*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*

- No que estava pensando, Shura? – Aioros levou a mão aos cabelos e exibiu uma expressão diferente do tom zangado que lhe dirigia. Estava decepcionado. Fazia mais de dez anos que os amigos não se viam e, mesmo assim, era-lhe nítido o real sentimento do outro.

  Shura tentou mentir:

- Eu me enganei, sinto muito. Tudo tem sido meio doido.

  Após observá-lo em silêncio, Aioros assentiu, contra as expectativas de Shura. Este esperava que ele continuasse bravo, que o socasse até.

- Sabe como Saga não gosta que eu fique por perto - disse-lhe o cavaleiro de Sagitário. – Não tente novamente forçar a barra, tá?

  É, marcar uma reunião com Saga e mandar Aioros ir em seu lugar sob o pretexto de haver sido chamado pelo Mestre havia sido um plano ainda pior do que o primeiro. Shura mordeu o lábio inferior e concordou com o velho amigo.

  Quando achou que a conversa já tinha terminado, o outro prosseguiu:

- Agradeço o que tem feito com meu irmão, com o Saga... Mas já está bom, Shura. Eu estou feliz só em poder ver como nossa deusa pôde crescer e se tornar uma pessoa tão boa, ainda que longe de seus defensores. O resto, eu posso esperar. Não é como se me ignorassem completamente como fazem com aquele cavaleiro de Câncer. – Ele riu, mas seus olhos expressavam algo mais.

  E foi esse algo mais, misturado à tristeza do amigo, que fez Shura desistir de elaborar mais planos. Sentia-se terrível sempre que via como Aioros flutuava pela vida do Santuário, mas era uma punição apropriada pelo que lhe fizera. Desde que Aioros continuasse esperançoso de que tudo se acertaria...

*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*

  Um encontro fortuito o faria voltar ao planejamento. Havia acontecido mais uma confusão de escalas – mesmo tantos meses depois, os cavaleiros de ouro continuavam confusos com a nova organização imposta por Saga – e Shura acabou escalado junto com Aioria para inspecionar os soldados, apesar de um cavaleiro de ouro já ser o suficiente.

  Quando os dois terminaram, Capricórnio convidou o outro para jantar. O cavaleiro de Leão parecia estar com ótimo humor enquanto ajudava Shura no preparo da comida. Foi impossível conter a pergunta:

- Então, você já se acertou com seu irmão?

  Aioria devolveu-lhe um olhar confuso, mas logo pareceu entender:

- Não, isso não. É que muitas coisas boas têm acontecido; quem sabe até nos resolvemos? – E sorriu um pouco bisonho. – Bem que eu gostaria, mas é difícil termos do que falar, sabe? E ele parece meio... Não sei como explicar. Diferente? Não me lembrava dele tão sério, estava sempre atrás de mim e passando a mão na minha cabeça.
- Você já passou dessa idade, né?
- É... Eu sei. E sei também que meu irmão está triste, só não consigo falar isso pra ele. Que estou preocupado. Então, é difícil ficarmos juntos, porque me cansa um pouco buscar o que dizer e não conseguir.
- É mesmo. Aioros nunca foi tão sério como agora. Claro, quando estava em missão, era um cavaleiro formidável, mas assim que acabava voltava a brincar e a falar alto... – Shura parou de falar ao notar que se afundava em lembranças.
- Estava pensando. Eu nunca conseguiria sugerir isso a ele, mas vocês são melhores amigos.
- Quê? – Retornou assustado de suas lembranças para notar um olhar em chamas direcionado a ele.
- Uma namorada! O que acha de uma namorada para o Aioros? Ele aliviaria um pouco a tensão e seria mais fácil também nós dois termos do que conversar. Perfeito, né? – Aioria largou a faca com que acabara de cortar os legumes – grossos demais e outros pequenos demais – e correu até sua bolsa para tirar um papel, onde anotou algo em sua caligrafia desleixada.
- Onde é isto? – perguntou Shura ao pegar a nota com as mãos sujas de cebola e vinagre.
- Leve-o lá. É um pedido meu!

  Shura não gostava de crianças e Aioria era uma das principais causas disso: sempre que lhe lançava aquele olhar enorme quando mais jovem, era impossível não atender a seus pedidos. Agora, descobria que nada mudara ao menos nesse sentido.

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- Uma taverna! – Aioros gargalhou enquanto saíam do lugar. – Não imaginava que você sequer conheceria um lugar desses, Shura.

  De fato, desde seus primeiros dias no Santuário, o cavaleiro não visitava esses lugares, que só serviam para fazer bons homens se esquecerem de seu grande comprometimento para com Athena. Mas a ideia de Aioria não era ruim. Havia sempre algumas mulheres em tavernas, e elas não se importavam com homens um pouco mais brutos, nem ficavam acanhadas demais já que todos estavam ali para beber e se divertir.

- Aquelas duas, a mais nova parecia interessada em você - comentou o amigo, fazendo Shura se ruborizar. – Por que não aceitou mostrar o Santuário pra ela? Não precisavam entrar em lugar nenhum para satisfazer essa menina, só contar sobre alguma missão e coisas assim.
- Sabe que não me interesso nessas relações. Eu entreguei toda minha alma e corpo a Athena.

  Ainda assim, Aioros deu uma gargalhada e disse:

- Ao menos, foi divertido ela tentando se convidar. Agradeço pela noite, Shura. – E deu-lhe um tapa caloroso nas costas.

  O agradecimento sincero fez seu coração bater depressa por um instante até ele se lembrar de qual era o plano original: fazer Aioros conhecer alguma garota. O resultado foi a tal irmã mais nova se jogando para cima de Shura, enquanto o principal do evento pagava uma rodada para os soldados que os dois encontraram no lugar. E, claro, uma possível ressaca após beber essa rodada por medo de uma recusa estragar mais ainda a amizade de ambos.

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  Shura sentiu o suor nas mãos quando pegou a caneta de ponta grossa que Athena havia comprado para o Santuário e olhou para o quadro. Este estava todo preenchido com a escala do que cada cavaleiro de ouro e de prata deveria fazer na próxima semana. Havia ficado por quase duas horas de olho naquela sala para que ninguém visse nada antes dele próprio e agora era sua chance de ser o cupido. Na pior das hipóteses, uma amizade poderia nascer ali. Não podia dar nada errado, contanto que não fosse descoberto.

- Marin... – disse o nome que procurava, a fim de sobrepor sua voz às batidas de seu coração. Era tão errado o que estava fazendo, mas não podia fazer mal. Saga não descobriria a menos que alguém reclamasse, ou quando já fosse tarde demais e um dos dois relatasse suas atividades. – Aqui! – Shura apontou para o nome da amazona.

  Ao notar o que ela iria fazer na semana seguinte, o cavaleiro sorriu apesar de seu atual estado de nervos. Uma missão! Ela iria sair em missão! E o melhor de tudo: não era com um cavaleiro de ouro e sim com Zé Ninguém que nunca reclamaria diretamente com o Mestre. O cavaleiro trocou os nomes e redirecionou o pobre cavaleiro sobrando para a missão de seu amigo – acompanhar Miro de Escorpião nas instruções a soldados, o que Aioros vinha fazendo havia meses. Era uma ótima hora para respirar outros ares em missão simples.

  Por que não pensara nisso antes? Uma amazona tinha que ser a combinação ideal para Aioros. Alguém que entendesse seu compromisso com Athena, seu amor pelo que fazia, e não uma menina de vila. Claro, havia muitas espalhadas pelo Santuário, mas Marin parecia a mais sensata de todas. Que Shaina de Ofiúco não lhe ouvisse, mas esta lhe dava arrepios com sua personalidade mais forte que a defesa do cavaleiro de Touro. E, claro, poderia tentar com as demais noutras vezes. Mas preferia ir logo com a mais provável, antes que Aioros percebesse seus planos.

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  A missão estava prevista para durar apenas dois dias, mas levara uma semana até os dois retornarem. Shura tentou não ser afoito e ir correndo até a Casa do amigo assim que soube de seu retorno. Por isso, ainda teve que esperar mais um dia inteiro para ver Aioros. Quando finalmente viu o cavaleiro de Sagitário chegar à sua Casa, engoliu em seco. Considerando o atual histórico de seus planos, toda a armação havia sido descoberta na melhor das hipóteses.

  Aioros se aproximou sério como sempre parecia desde que fora ressuscitado e pôs a mão em seu ombro. Só então, o amigo abriu um sorriso.

- Não sei como você mudou as escalas, mas tenho certeza de que foi você.

  Shura pôs um dos pés para trás e tentou afastar o corpo antes de sorrir de volta para o outro. Este, por sua vez, prosseguiu sem desviar os olhos:

- E não sei por que está tentando me apresentar a garotas. Não é como se nossa missão como servos de Athena não nos preenchesse o bastante a vida para eu precisar disso.
- É um período de paz. Pensei que você... – Mas as palavras não queriam mais sair e uma gota de suor causava-lhe coceira num lado da testa.

  Foi quando sentiu um tapa forte em suas costas. Pego de surpresa, Shura quase perdeu o equilíbrio. Então, olhou incrédulo para Aioros, quem exibia um sorriso muito mais franco que momentos antes.

- Foi uma bela missão! Não se preocupe, Shura. Correu tudo bem e, realmente, não havia melhor companhia. Acabamos descobrindo uma organização graças ao poder de observação que a Marin tem e desfizemos tudo. Nossa, foi incrível. – Ele começou a passar a palma de uma das mãos no punho da outra e olhou distante, ainda rindo. – Eu me senti um cavaleiro de novo após tanto tempo.
- E-eu fico f-feliz, Aioros.
- Agora, conte-me mais sobre a Marin. Por que acha que ela seria melhor pra mim que aquela irmã mais velha da taverna, a que parecia mais interessada nos copos de cerveja do que na gente?

  Shura tentou ignorar as lembranças do fiasco daquela noite e passou a reportar tudo o que sabia sobre Marin – boa parte descoberta nos últimos dias. Para seu contentamento, Aioros sentou em um dos degraus na frente da Casa e ouviu cada palavra, enquanto concordava com algumas observações e acrescentava acontecimentos da viagem recente.

  Ele ainda não estava interessado na amazona sentimentalmente. Apenas via nela alguém com quem podia se entender e até ouvir sobre o irmão. Na verdade, Shura terminou a longa conversa sob a impressão de que, durante todo o tempo, o único assunto que Aioros tivera com a amazona fora Aioria. Mas já era um progresso, uma distração. E, para a surpresa de Shura, um assunto entre os dois amigos afastados. 

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  Com certeza, Aioros não possuía até então nenhuma intenção com Marin além de interesse em sua amizade. Os dois combinavam; por isso mesmo Shura a havia escolhido antes de qualquer outra amazona. Entretanto, não fora naquela viagem que o cavaleiro de Sagitário começara a vê-la como uma mulher que o atraísse.

  Em pensar que, após tantos planos, o que deu certo fora uma coincidência. Aioros decidira fazer um piquenique em um lugar dentro dos limites do Santuário, mas tão afastado que ninguém ia lá. Era o seu refúgio antes e Aioria nunca havia ido por ser novo demais, de modo que apenas Shura o conhecia. Em consideração à sua nova amizade, Marin também fora convidada, mas o nome de honra mesmo era nitidamente o irmão caçula. Estava clara a intenção: mostrar-lhe seu lugar especial.

  Era para ser uma ótima ideia para estreitar os laços fraternos e, finalmente, uma que partia do próprio interessado. Ainda que poucas, as conversas com Marin pareciam estar produzindo efeito. Ela devia tê-lo incentivado após tanto falar sobre Aioria, com quem a amazona se dava tão bem.

  Todavia, tendo o fracasso da saída para a praia ainda vivo em sua mente, Shura recusou o passeio. Decidiu confiar que Marin já seria uma ponte segura o bastante entre os dois, e presumir que ele próprio não serviria para nada a não ser distrair Aioros daquilo que realmente o levaria até lá.

  Ele só não imaginava que Aioria mudaria de ideia na última hora, e que Aioros acabaria sozinho em um lugar afastado com uma mulher. Certo, eles haviam tido todas as oportunidades durante a missão, então, essa única informação não era o bastante para Shura franzir a testa. O que causou o sorriso de satisfação do cavaleiro de Capricórnio foi a empolgação com que o recém-chegado Aioros narrou seu “encontro”.

- E agora? – perguntou Shura, tentando não fazer rodeios.
- Agora o quê?
- Vocês dois. Tudo parece estar indo bem demais para apenas ser amizade.

  Em vez de estranhar, Aioros se encolheu. Este sinal foi o bastante para Shura saber que o cavaleiro também já havia percebido o que acontecia.

- Eu... não sei. – E baixou a cabeça, como se isso fosse capaz de esconder o leve rubor nas suas bochechas. Ao menos, ele não era branco como Shura, a quem um gole de álcool já fazia parecer que ficara um dia inteiro debaixo do sol.
- Bem, o primeiro passo é assumir o que se sente. O segundo é fazê-lo na frente dela, né?
- Dizer à Marin? Não.

  Mesmo falando tão secamente, Shura não tinha mais experiência do que Aioros com garotas. Na verdade, o amigo sempre fora o desinibido, ainda que seu interesse até aquele dia houvesse sido tão nulo quanto o do cavaleiro de Capricórnio. Naquele momento, eram dois ignorantes falando do que não sabiam.

- Faz algum tempo, você sabe... - continuava Aioros, enquanto bagunçava os cabelos como se a fricção pudesse diminuir o nervosismo. – Que não lido com essas coisas. Mas vou tentar. Não se preocupe, não vou deixar só nisso. Apenas me dê um pouco mais de tempo.

  Em vez de dar algum conselho, Shura apenas assentiu sem esconder sua própria satisfação.

  Naquele momento, até lhe passara pela cabeça que Aioria havia se retirado do caminho do irmão e causado tudo o que ocorrera naquele dia. Isto significaria que tudo se ajeitava enfim na vida de Aioros. Ele conseguiria uma namorada, teria o irmão de volta... Shura poderia, enfim, se sentir redimido pelo mal que causara anos antes, quando não confiara em seu melhor amigo.

*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*

  Estava anoitecendo quando Shura decidiu descer as doze casas e, finalmente, aceitar o convite de Miro para ir à taverna próxima. Lembranças... Aquela noite com Aioros havia sido divertida. Mesmo sendo algo que nunca fizeram antes, havia parecido tal como nos velhos tempos. Antes de...

  Não importava mais. Tudo estava se resolvendo. Sua relação com Marin estava ótima e o amigo já cogitava falar com ela mais abertamente sobre suas intenções. Para melhorar, naquela noite a amazona havia sugerido aos irmãos um jantar em que ela cozinharia alguns pratos de sua terra natal. Àquela hora, Aioros devia estar se arrumando com o cuidado especial que sempre dispensava quando ia encontrá-la e sonhando com uma noite agradável ao lado de Aioria.

  Shura tinha que se sentir feliz; tudo acabara bem. Contudo, havia um vestígio de culpa por aquela satisfação. Teria tentado mesmo se redimir ou apenas se aliviar? Não que fizesse diferença para o outro. Contanto que as coisas continuassem bem para o seu amigo, não faria diferença alguma. E ele merecia se divertir de vez em quando também; por isso, não havia por que recusar o convite de Miro naquela noite. Ele beberia, conversaria e se divertiria. Com a página virada com relação a Aioros, estava na hora de ele próprio seguir com sua vida.

  Foi pensando nisso que Shura viu uma daquelas cenas em que tudo o que se quer é voltar no tempo e fazer qualquer coisa para evitá-las.

- Ele vai chegar logo, Aioria. Por que não toma esse banho de uma vez? – dizia Marin, com a cintura firmemente segurada pelo cavaleiro de Leão.
- É só vocês me esperarem acabar. Quem vai cozinhar é você mesmo...
- Achei que a ideia era os dois conversarem mais. E todas as vezes eu é quem fico falando com seu ir...- Claro que ela não continuou. Sua boca estava ocupada demais sendo roçada pela de Aioria.

  Shura sempre fora um homem racional e isto o vinha ajudando desde sempre. Ainda assim, até ele podia agir por impulso.

- O que estão fazendo?! – esbravejou com autoridade, o que o fez se lembrar de seu já falecido mestre.

  O tom devia ter funcionando, pois ambos os guerreiros se afastaram como se houvessem levado um choque.

- Ah, você? – Aioria foi o primeiro a recuperar a fala, ajustando a postura e encarando-o diretamente. – Algum problema? – Ele franzia a testa, sinceramente confuso.
- V-vocês estavam... – Ainda gaguejando, Shura observou o mais jovem levar uma das mãos de volta à cintura da amazona. Ao contrário de suas expectativas, esta não reagiu. - Como? Por quê? Por que estão enganando o Aioros?
- Enganando? – Tal como o acompanhante, a mulher o olhava com estranheza.
- Ele não sabe ainda, só isso.

  Mas não era a Shura que o cavaleiro de Leão se referia.

- Como assim não sabe?! – Agora Marin encarava-o brava e se afastava do aperto na cintura.
- Eu meio que não espalhei. Você não tinha pedido?
- Claro. – Ela revirou os olhos e seguiu: - E você cumpriu direitinho contando pro Miro. Ainda me pergunto se essa foi a forma de você passar por cima do que pedi ou se você pode ser tão inocente assim.

  Shura sentiu-se rir um pouco, pois até ele sabia que dizer algo a Miro e anunciá-lo aos gritos pelo Santuário eram a mesma coisa. Exceto que ele teria ouvido gritos, mas nunca prestaria atenção ao cavaleiro de Escorpião. A vontade de rir passou com a tontura que a seguiu.

- Então, vocês dois estão juntos? – Assim que ele fez a pergunta, notou que a resposta não podia ser mais óbvia. O que não era tão óbvio devia ser sua reação a um assunto que, a princípio, não lhe dizia respeito.
- Quer dizer que o seu irmão não sabe, né? – Ouviu Marin perguntar ao namorado. – Este tempo todo que nos falamos, ele nem sabia?
- Achei que você tinha contado ao menos isso.
- Aioria! Como pode bancar o príncipe encantado pra todas as amazonas e não ter a decência de falar direito com seu irmão?
- Não é bem assim!

  Shura resolveu não ouvir a continuação da briga de casal e voltou a subir as escadas sem se despedir. Não que os dois fossem ouvi-lo. Ele deveria era ter posto mais lenha na fogueira e torcido por uma separação.

*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*

  Muitos anos antes, Shura havia matado Aioros e nem se dignara a enterrar seu corpo ou cuidar do bebê que ele carregava. Apenas o abandonara moribundo em meio às ruínas.

  Agora, ele sabia que agira bem, pois o amigo conseguira encontrar uma boa pessoa que criara a pequena Athena e a preparara para sua missão. Entretanto, ainda se arrependia e esperava voltar à noite em que o vira em fuga. Como cavaleiro leal de Athena, Shura não tinha como recusar uma ordem direta do Mestre do Santuário e seu amigo nunca negara as acusações. Seu eu daquela época não podia ter agido de forma diferente diante do assassino de Athena. Mesmo querendo voltar no tempo e mudar suas ações, o cavaleiro de Capricórnio sabia disso.

  Fora como amigo que falhara. Ele pusera seu dever acima de sua amizade e não havia como se desculpar pela falha. Por mais que houvesse tentado se redimir com Aioros, o desenrolar da história lhe revelara que não havia o que pudesse fazer para apagar sua traição.

  “Eu não devia ter contado”, ele pensou ao observar os olhos do amigo se fixarem na parede de sua casa.

  Shura havia se assustado tanto ao descobrir sobre Marin e Aioria que correra para alertar o outro, mas agora queria não tê-lo feito. E se Aioros houvesse sido capaz de perceber por si mesmo? Não era como se os dois ainda fossem os amigos de antes, apesar de ainda usarem a palavra “amizade” para definir sua relação. Não precisavam contar tudo um ao outro.

  Após um longo momento em choque, Aioros baixou a cabeça e assim ficou por outro longo momento.

- Aioros? – Shura decidiu enfim chamá-lo. – É melhor eu deixá-lo só, né?

  É, não havia lugar para um traidor ali. Ele precisava de um ambiente confiável em que pudesse se expor e até ao tentar criar isso Shura havia falhado.

- Não vá. Não agora. – Então, ele lhe sorriu.
- T-tem certeza?
- Sei bem o que vem fazendo. E lamento que tudo tenha dado tão errado.

  Não estava surpreso por Aioros saber, mas sim com o tom de frustração usado. Havia sido tão errado assim? Por mais egoísta que houvesse sido sua motivação, por pior que tivesse sido, por que não deveria tê-lo feito? Shura encarou o outro como se fosse lhe perguntar isso.

- Prometo não perturbá-lo mais depois desta noite, mas... – Aioros se levantou e esticou os braços, cruzando os dedos da mão até estalá-los. – Vamos fazer algo pra comer?
- Seu irmão deve estar te esperando. E você não tá me perturbando.
- Deixe-o com a namorada. Pelo que entendi, o clima deve estar tenso lá embaixo. Hoje quero passar a noite com meu amigo. Depois, quero que você se sinta oficialmente livre.
- Quê?
- De mim. Desde que fui trazido de volta, você só me olha como se não soubesse o que fazer comigo. Hoje, confesso que já estou de coração partido, mas é por isso mesmo que me sinto forte o bastante para te deixar também.
- Quer dizer que não quer mais falar comigo? Por causa da Marin? – Com o sobrecenho carregado, Shura o encarou.
- Vamos, você sabe o que eu quis dizer. Já entendi que passou todos esses anos sem mim e não sabe como agir agora que estou de volta. Encontrarei novos amigos, não precisa me arranjar ninguém pro seu lugar.
- Isso é um pouco de falta de consideração, Aioros. Não importa o que eu tenha feito no passado, essa é uma forma bastante ruim de me mandar embora.

  Foi quando percebeu que um olhava para o outro de forma diferente. Estavam tendo duas conversas distintas. Shura riu de nervoso.

- Então é isso... Todas as vezes que quis te ajudar você achava que eu estava tentando me livrar de você! Está enganado! Muito enganado. – Manteve a expressão séria, mas não livre do desespero que o tomava ao sentir a amizade Aioros escorregar por entre seus dedos. – Eu só notei como estava deslocado aqui. Não se entendia com seu irmão, ou com Saga, ou com qualquer um dos novos cavaleiros. Todos os dias, você me parece triste e pensativo. Aioros, eu fui o culpado disto tudo. Se houvesse dado mais importância à sua amizade, ainda que isso fosse trair minha deusa... Ironicamente, eu nem a teria traído.
- E nós dois?
- Como assim?
- Você tentou refazer meus laços com o Saga, tentou me ajudar com meu irmão e até tentou me arrumar uma namorada. Mas e nós dois, Shura? Não tinha como não pensar que você estava me afastando. Eu tinha ficado tão feliz com a ideia da praia e da taverna... Mas tudo não passou de um plano seu pra se livrar de mim de forma limpa. Aí quando te chamei para o piquenique, você me evitou. Hoje eu quase fiquei no meio de um jantar de namorados e você nem pensou em me acompanhar. Tem certeza de que está me ajudando? Para mim, você é o maior sintoma de que eu não deveria estar aqui.

  Shura havia mesmo agido assim?

- Achei que você não iria me querer por perto. – E baixou a cabeça após dizê-lo.
- O meu melhor amigo?
- Parecemos dois bobos.
- É... – Aioros não riu com o comentário. – Ao menos, isso quer dizer que você não está tentando me deixar de lado, né? Ainda me sinto mal sobre a Marin. A namorada do meu irmão!
- Eu deveria me desculpar por isso. Se prestasse mais atenção no Miro, teria sabido. E por aquela noite. Anos atrás.
- Não podia esperar nada diferente de você, Shura. Inclusive sobre não ouvir o cavaleiro de Escorpião. – E, enfim, sorriu.

  Com um suspiro, Aioros se ajeitou e começou se encaminhar para a cozinha, falando sobre não fazer ideia do que poderia preparar com o pouco que tinha em casa.

  Shura o seguiu um tempo depois e começou a lavar as mãos.

  Como não havia considerado antes que a relação mais fácil para ele presentear a Aioros era justamente a amizade de ambos?

  De fato, estava muito longe de se redimir pelo que fizera, mas não havia por que se apressar, estando ao lado do amigo todos os dias dali em diante. Não sabia como se comportaria quando seu dever para com sua deusa e sua amizade com Aioros se tornassem mais uma vez um dilema, mas toda a experiência já havia deixado claro que aquela nunca havia sido a questão principal entre eles. Sua amizade nunca havia sido contestada se não por ele próprio, pela forma como agira nos últimos tempos.

  Mas estava tudo bem. Ficara mais do que provado que os laços que os uniam eram fortes, e o dever de Shura para consigo mesmo seria nunca mais se esquecer ou duvidar disso.

FIM!

Anita, 13/01/2013

Notas da Autora:

A história ficou tão longa, mas foi divertida. Não creio que tenha feito boas caracterizações, ou mesmo cenas interessantes, mas espero que tenha fluido bem para os leitores.

Acabou que nem tive tempo de mencionar que o Shion ressuscitou também, eu o imagino de volta a Jamiel. xD

Queria deixar um agradecimento pra Vane por revisá-la no meio de tantas coisas para fazer pelo Coculto.

Comentários, críticas e sugestões? Não deixem de fazê-los. ^^ E até a próxima!

Para Black Scorpio no Nyx:

Agora que comparo minha fic ao seu pedido, tenho medo de ter me desviado de suas expectativas. Ainda assim, espero não ter feito algo ruim... Quero também dizer que fiquei feliz em trabalhar com esse tema. É algo que abordei em uma fic anterior, mas sem muito foco. Aqui tive a oportunidade de fazer tudo o que não consegui lá e, ao mesmo tempo, ficar um pouco nostálgica. Fazia tempo que eu não escrevia sobre nenhum dos dois! Em pensar que estes são dos poucos amigos canônicos que há, né? Foi um bom tema, adorei fazê-lo! Espero que tenha gostado. ^^

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