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[Spiral] O Jeito Que as Coisas São, escrita por Madam Spooky

Capítulo: único
Fandom: Spiral
Autora: Madam Spooky
Gênero: Angst
Classificação: 12 anos
Status: Completa
Resumo: Ayumu Narumi e Yuizaki Hiyono. Algumas pessoas não nasceram para serem queridas.

Avisos: Spoilers do final do mangá.
Fanfic escrito para a lista de temas da comunidade 30cookies

Set: Inverno
Tema: Sofrimento



Ela tinha quinze anos quando fugiu de casa. O enredo era clichê e simples: menina que cansara das surras de um pai bêbado, correndo pelas ruas de Berlin em uma noite particularmente fria de inverno. Seu casaco era fino e ela tinha esquecido as luvas sobre a cama, mas nada disso parecia importante sob a furiosa determinação que sentia. O mundo era grande e assustador, mas não mais que a figura rígida do pai se debruçando sobre ela e atingindo suas costas com a tira esgarçada de couro de seu velho cinturão vermelho. Naquela noite ela tinha tido sorte, ele estava demasiado fora de si para procurar por algo mais duro.

Era difícil lembrar quanto tempo tinha ficado sozinha antes de conhecer Kyotaka. Embora fosse grata por ele tê-la encontrado, quando fechava os olhos e se deixava levar de volta para aqueles dias, pensava que devia ter estado completamente transtornada para confiar em um desconhecido quando seu corpo ainda trazia a dolorosa recordação de seu ponto de partida. Kyotaka tinha um copo de café fumegante e uma casa cujas luzes pareciam muito convidativas para uma criança que passara dias vagando sozinha pela cidade. Poderia ter morrido, ou pior, ter sido encontrada pelas autoridades e mandada de volta se não fosse por ele.

Nunca teria conhecido Narumi Ayumu se não fosse por ele...

Ela gostava de Ayumu porque ele nunca a tocava e ela não gostava de ser tocada. Ele se esforçava por ser rude e desinteressado, achando que isso a afastaria. Ela, no entanto, podia ver além do papel que ele representava. Por trás daqueles olhos havia o desespero de alguém cuja existência nunca teve um verdadeiro propósito. Ninguém nunca o tinha amado. Ninguém se importara em ao menos fingir. Narumi Ayumu nunca tocava ninguém, mas era ela a única a sentir desconforto quando suas mãos se esbarravam.

Antes de Ayumu, ela pensava que tinham sido os golpes contra sua pele que tornavam o passado algo tão distante quanto difícil perdoar. Porém, no dia em que ele lhe contou sobre sua mãe, ela entendeu. Era o homem por trás da tira de couro que causava aquela dor que nunca abrandava. Seu próprio pai que, assim como a mãe de Ayumu, nunca a amara.

- Você sabe – ele tinha dito no final, logo após contar sobre os anos de indiferença e comparações com seu irmão mais velho. A voz já estava ficando enrolada e sua expressão denunciava o início de uma dor de cabeça. Tinha consumido uma garrafa quase cheia de saquê antes de começar a falar. – Algumas pessoas não nasceram para serem queridas. Não é culpa de ninguém, é só o jeito que as coisas são.

Ele fez menção de segurar a mão dela, mas hesitou, e ela fez o movimento no lugar dele. A mão dele estava gelada, mas ela pensou que gostava de sentir a suavidade da pele de seus longos dedos de pianista. É só o jeito que as coisas são. Ela queria dizer que não era verdade, mas não pôde.

Ela sabia que ele tinha razão.

Eles compartilhavam aquela amizade distante há dois anos quando tudo chegou ao clímax. Kyotaka voltou e Ayumu finalmente descobriu o que a tinha trazido até ele em primeiro lugar. Ele a tinha abraçado rapidamente naquele dia mais cedo, prometendo que voltaria, e ela sentiu uma ponta de esperança de que ele finalmente estivesse se curando. Talvez as Blade Children tivessem lhe dado um propósito, ainda que elas não exatamente gostassem dele, apenas precisassem. A absoluta falta de rancor nos olhos de Ayumu quando se encontraram no final de tudo, porém, lhe disse a verdade. Ele nunca tinha esperado que ela fosse real. Meninas sorridentes de cabelo trançado não entram na sua vida de repente decididas a ficar. Ele tinha desfrutado da mentira por um tempo e, agora que acabara, estava tudo bem para ele.

É só o jeito que as coisas são.

Ela tinha cicatrizes, mas, se não fosse por isso, seria como se seu pai nunca tivesse existido. Algumas vezes acordava de um pesadelo onde ele a segurava, alto como um colosso, e não havia cinto, ferro ou garrafa em sua mão, mas um pequeno caderno de anotações. Quando sua respiração acalmava, ela ligava para o antigo número de Ayumu e fingia que a gravação de número inexistente era a voz dele reclamando por ela estar ligando tão tarde. Depois disso ela chorava.

Foram dois anos até que estivesse naquele quarto de hospital, ouvindo-o tocar uma canção ao piano. Enquanto ele executava um legato perfeito, ela fechava os olhos, se agarrando ao momento. Aquilo era real. Ela era real. Naquele instante podia sentir a antiga dor enfraquecer como o ardor de um ferimento físico sob um bálsamo frio. Desejou que Ayumu estivesse sentindo também, e que depois daquele dia, fosse o jeito que as coisas seriam.


FIM

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