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[Saint Seiya] Conceitos, escrita por Anita

Capítulos: único
Autora: Anita
Fandom: Saint Seiya
Classificação: 14 anos
Gêneros: romance
Status: completa
Resumo: Spartan vem se sentido bastante incomodado e até curioso com o sucessor da armadura de Lagarto.

Notas Iniciais:
 História escrita para a Quinzena Cavaleiros de Prata, um desafio promovido pela comunidade Saint Seiya Super Fics Journal.

  Alguns cavaleiros de prata haviam sido reunidos no salão do Mestre a fim de serem apresentados ao novo membro de sua classe. Era realmente uma nova era do Santuário e havia cavaleiros novos demais na opinião de Spartan, mas ele tentava acreditar que não poderia estar mais certo que a própria Athena quanto a estratégias. Olhou desconfiado para Ion de Lagarto mesmo assim.

  Uma mulher, pensou ao ver a máscara enfeitada com símbolos tribais ao redor dos olhos e na bochecha. Mais uma mulher. Ele não era particularmente machista, só vinha notando o crescente número do outro sexo a seu redor. Com aquela, o número de amazonas de prata duplicara. Havia ainda mais três de ouro, sendo que algumas armaduras nem dono possuíam ainda. O maior problema era que essa mudança na proporção dos sexos era mais uma entre tantas que vinham ocorrendo desde o final da batalha de Hades, para a qual ele sequer fora convocado apesar de seu status.

  Mais humilhante que não ser convocado foram os olhares de quem o conheciam quando o pior passara. Era quase como se fosse um fantasma. Bem, era exatamente o que pensaram já que todos juravam que ele morrera. Sequer havia uma lápide para ele e só porque todo mundo morrera, o incluíram no meio. Até sua namorada já estava saindo com um soldado. Um maldito soldado, a base da hierarquia do Santuário!

  Spartan era melhor que isso. Um cavaleiro de prata. Um dos poucos restantes com alguma experiência. Ao menos, os novatos o respeitavam por isso. Não que os visse com muita frequência, já que as missões vinham sendo bem simples. Os dias eram resumidamente de paz, as cobranças do Mestre atual sequer se comparavam com as com que ele se acostumara. Era quase chato. Certo. Era bem chato. Mal conhecia as pessoas, Shaina então que sempre andara com ele agora o ignorava, ocupada com serviços fora da Grécia e era difícil se socializar com os novos cavaleiros de prata quando todos eram tão infantis e mimados.

  Talvez ele devesse se esforçar mais... Não havia muita diferença de idade, um era até mais velho que ele próprio. Sim, Athena havia iluminado a escolha daquelas pessoas, ela saberia melhor que ele qual era o cavaleiro mais adequado.

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  A novata... a armadura dela era de Lagarto, né? A mesma que o estranho do Misty usava. Tão acostumado a ver pessoas virarem donas do que fora parte da identidade de seus amigos, Spartan não havia feito a ligação até o dia em que vira aquela pessoa sem máscara.

  Era seu segundo encontro e ele voltava de sua ronda usual pelo terreno do Santuário para tomara um banho gelado no chuveiro reservado para cavaleiros de bronze e de prata. Ao abrir a porta da construção, encontrara-a conversando com uma amazona de bronze. Sem máscara.

  Com o susto, Spartan fechou a porta para a construção com força e se apoiou nela até sentir ser puxado para trás. Alguém a abrira novamente.

- Ah, você. – A voz da tal amazona Ion o fez tremer. Ela percebera sua intromissão e agora... iria matá-lo!

  O cavaleiro endireitou-se, mas não se virou para ela.

- Gostaria de declarar que eu nada vi de seu rosto.
- Tô percebendo. – Sentiu-a dar a volta a seu redor até estar bem à sua frente.

  Por ser bastante alta, Spartan teve que a cabeça para cima a fim de não olhá-la.

- E por que você não pode ver meu rosto? – Ion inclinava sobre seu corpo, forçando o contato visual.
- Eu não sei o que você tem em mente, amazona. Mas eu não pretendo me casar com você. Não mesmo. Mal nos conhecemos.

  Então, ouviu-a rir e voltar a entrar para a construção onde ficavam os banhos.

  Ion herdara a armadura de Misty, o guerreiro que se dizia o mais forte, pois nunca recebera uma cicatriz. Ou algo assim. Um maluco qualquer. E ela era outra maluca.

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  Ou outro maluco?

  Mais de uma vez, ele ouvira as pessoas ao seu redor cochicharem sobre a novata em razão de seu costume de não ter o costume de usar máscara. Não que ela fosse uma amazona rebelde contra a lei, pois muitas vezes ela ainda a usava, mas Ion também a deixava em casa noutras.

  Não era apenas isso que era estranho. Suas roupas diárias numa hora pareciam femininas, noutra masculinas. Já a vira usar saias até. Não estava falando de toga, quíton nem nada parecido que homens usariam, mas saia rodada e prendedor de cabelo com enfeite de flor.

  Era impossível não ficar curioso com isso, mas sempre que ele olhava demais, a mulher – ou o homem – ria de sua cara e fazia alguma piada. Estava claro que Ion entendia seu interesse e que não estava disposto a satisfazer sua curiosidade.

  Aos poucos, ela ou ele foi se tornando uma figura presente em seus dias. Spartan devia estar agindo como uma criança que não consegue tirar os olhos de qualquer coisa que saísse do padrão, mas Ion não agia como se estivesse incomodado com a atenção. Pelo contrário, ele sempre respondia de alguma forma amigável. Mas ainda ambígua e comumente com algum escárnio.

  Quem sabe sendo seu amigo, ele pudesse de fato obter alguma resposta? Já estava mesmo em sua resolução ficar mais próximo dos novatos. Só havia a ganhar com a situação.

*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*

  Spartan começava a desconfiar de que aquilo seria propositado. Ora Ion estava desfilando com sua máscara cheia de pinturas tribais, ora entrava no banheiro masculino. Havia também vezes em que ela entrava lá com a máscara. Ou de maquiagem, o que incluía um batom bem vermelho. Alguém no Santuário sequer usava batom? Pensando bem, ele sempre desconfiara que Misty sim, mas ele estava morto. Isto devia dizer muito sobre o que estava destinado para os que se maquiassem.

  Uma vez ele entrou junto no banheiro apenas para prestar atenção, mas Ion nunca usava o urinol. Ou entrava no enorme banho público dividido com todos os cavaleiros. Era deliberada a forma como ela ou ele escondia seu real gênero.

  Spartan simplesmente não conseguia entender como aquilo podia ser permitido. Fosse em outros tempos, sua atenção já teria sido chamada. Não era como se suas missões fossem cumpridas com louvor; Ion não era tão valioso assim. O Santuário é que estava uma bagunça. Se aquela pessoa fosse uma mulher, estava desrespeitando a lei e se fosse um homem estava fazendo pouco de uma tradição milenar.

  A cada dia, Spartan ficava mais irritado com a presença dele. Sim, decidira que o chamaria de ele para o caso de um dia durante um treino juntos a raiva lhe subisse e decidisse socá-lo. Não seria sua culpa se ele fora enganado caso afinal se tratasse de uma mulher.

  Então, chegou a seu limite e decidiu confrontá-lo. Não dar-lhe um soco, apenas perguntar logo qual era a dele.

- Como assim qual a minha? – Ion voltou seu rosto recém enxugado na toalha e franziu a testa.

  Ambos estiveram substituindo o encarregado de comandar o treinamento de garotos que chegaram fazia pouco tempo ao Santuário e logo seriam enviados a diversas partes do mundo.

- Você está com uma saia hoje.
- Tá bem quente, achei que não teria problema já que treinei cedinho.
- Mas não está de máscara.

  Ion deu uma gargalhada.

- Droga! – Deu-se um tapa no rosto de forma exagerada. – Será que eu devo me casar agora com o primeiro que viu meu rosto ou só com o último? – E voltou a gargalhar, ainda mais alto que inicialmente. Parou por um instante e olhou séria para o outro, antes de prosseguir: - Tá certo, Spartan, decidi. Eu mato todo mundo do Santuário e me caso com você.
- Isto não tem a menor graça.
- É porque você está sem espelho. – Ion começou a caminhar em direção à casa de banhos para cavaleiros. Não mais ria. – Eu só não vejo qualquer importância no sexo de uma pessoa. Digo, a menos que precisemos procriar. Mas, como um cavaleiro, não posso me dar ao luxo de considerar isso tão cedo. E, também como cavaleiro, tenho certeza de que só meu status me garantia material para uma eventual prole.
- Não pode estar falando sério.

  Ion deu um suspiro.

- Olha, eu não costumo ter paciência de me explicar pra qualquer um. Mas pense assim: o sexo só serve para preconceitos. Contanto que eu seja um cavaleiro forte, de que importa se no fundo sou uma amazona? Posso servir a Athena não importa a denominação, minha armadura ainda é a mesma. Só não quero que uma diferença inata, a qual já superei, deva dizer algo sobre mim mesma.
- Se você é tão... feminista? Por que ainda usa máscara por aí?
- Ué, elas não foram feitas para igualar os sexos? Esconder o rosto mais delicado que o dos homens ou algo assim?
- E no final só servem para gritarem de longe que lá vem uma mulher.
- Mas não é culpa das amazonas. O problema é que só elas as usam, né? Se nós cavaleiros também fizéssemos nossa parte, não seria algo tão chamativo.
- Tá sugerindo que todos nós usemos uma... máscara? Debaixo deste sol?
- Pois é... – Ion passou novamente a toalha na testa. – Mas tem dia que é legal, sabe? Não ter que lavar o rosto e tal.
- Isso é nojento.

  Mesmo ouvindo a confissão da própria pessoa, Spartan não conseguia realmente acreditar. Quantas vezes já não o vira de maquiagem cuidadosamente feita? E, mesmo hoje quando ele estava de cara limpa, poderia ser tido como uma mulher muito atraente. Não do tipo frágil, isto definitivamente não era. Braços musculosos, perna torneada e grossa, características fortes no rosto que davam a impressão de ser uma pessoa naturalmente brava. Aquele dificilmente seria o tipo chamado de frágil. O cavaleiro esticou o pescoço para a gola da blusa preta que Ion usava no momento, tentando decidir se havia um peitoral masculino ali ou...

  Seu rosto ardeu e sua vista ficou escura. Havia levado um chute na cara – e desperdiçado a chance de matar toda a curiosidade ao olhar aquilo que mais definia cada sexo em primeira mão.

- Seu pervertido! – Ion abraçava o próprio corpo, como se protegendo seus seios. Então, riu sonoramente e deu-lhe um tapa forte nas costas.

*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*

  Quando Spartan foi escalado para sua primeira missão com Ion, ele estava certo de que teria a grande chance. Era certo que havia outros com eles, dois soldados encarregados de serviços mais tediosos e três cavaleiros de bronze, mas esperava que pudesse tornar tudo uma situação favorável.

  Ao longo dos meses em que haviam se aproximava, ficara evidente como as pessoas mantinham uma distância segura de Ion. De fato, algumas amazonas pareciam apaixonadas pelo ideal andrógino ou como se chamasse daquele cavaleiro, mas homem algum além do próprio Spartan ficava satisfeito em se envolver com ele.

  Mas não era culpa de preconceitos apenas, Ion não era uma pessoa muito fácil de se lidar. Não era que não aceitasse existirem opiniões divergentes, mas era aconselhável não tentar convencê-lo do contrário. As duas partes apenas se estressariam. Shaina que o dissesse quando lhe chamara a atenção para o mau uso da máscara e exigira que lhe revelasse seu sexo, sob pena de morte. Ion contra argumentara, e com alguma razão, que a amazona não possuía qualquer direito em lhe dar ordens, muito menos de julgá-la quando ambos pertenciam
à mesma classe. E ambos continuaram no bate-boca, mas Spartan não se lembrava mais dos detalhes. Ele apenas os ouvira mais tarde Ion, tentando manter em mente por que o suportava por perto.

  Por tantos motivos assim, Ion tinha apenas a ele naquela missão como seu amigo, o que significava que passariam um bom tempo juntos.

  Ou assim ele esperava. Mas em nenhuma vez ele o vira tomar banho. Tantas os cavaleiros e soldados mergulharam juntos no rio mais próximo ou foram juntos a casas de banho público, mas durante todo o mês que a missão tomara, Ion sempre o fizera sozinho sem dizer como nem onde. E até passava um perfume estranhamente adocicado, quase como o que uma prostituta usaria em um bordel para chamar atenção de clientes. Também havia outras vezes em que ele optava por uma colônia amadeirada, enquanto desfilava com os cabelos úmidos, quase como um amante latino de algum filme pornô.

  Mesmo após se verem todos os dias, todas as horas, a grande dúvida não se solucionara. Invés, mais e mais surgiam na cabeça do cavaleiro. Quantos anos Ion teria? Já não era a época de mudar a voz, caso fosse homem? Ou de ter um corpo mais feminino?

  Em uma das noites decidiu perguntar mais diretamente quando o flagrou voltando de um banho no rio, ainda com os cabelos longos emaranhados e pingando no chão.

- Afinal, quantos anos você tem? – foi direto ao assunto.

  No momento estavam apenas os dois fora das barracas que vinham trazendo nas costas. Dois dos cavaleiros haviam saído como parte da missão e os demais já dormiam. Era a oportunidade perfeita para uma conversa mais privada.

- O bastante para ter uma armadura.
- Isso não diz nadinha mesmo. – Spartan estalou a língua algumas vezes. – Vamos, o que isso diz do seu sexo?

  Ion pareceu sorrir ao se sentar a seu lado. Ele usava os dedos para desembaraçar os nós do cabelo.

- Eu tenho dezessete. Satisfeito?
- Nossa, em pensar que só perguntei a idade.
- Se eu for mesmo uma moça, isso é uma falta de educação imensurável.
- Moça? Mesmo que seu sexo de nascença seja feminino, isso não é um bom nome para você.
- Devo ficar bem ofendida com isso.
- Pelo contrário, quer dizer que você está longe de um estereotipo.
- Eu duvido que você o tenha dito para me agradar, Spartan. – E deu-lhe um tapa sonoro nas costas antes de cair na gargalhada.

  O cavaleiro sorriu, mas logo parou quando percebeu que Ion havia se aproximado, ajoelhado à sua frente. Seus rostos estavam bem próximos e tudo o que conseguia olhar era para os lábios do cavaleiro. Cavaleiro! Tentou gritar para si, já havia decidido tratá-lo no masculino exatamente para situações dúbias como aquelas.

  Aliás, por que ele estava naquela posição?

  Spartan jogou o corpo para trás com força. Não obstante a reação, Ion inclinou-se mais sobre ele e por fim pôs os dedos no seu rosto. O cavaleiro prendeu a respiração e fechou os olhos.

- O que há contigo? – Ion havia voltado a se sentar, mas parecia segurar algo entre o dedo médio e o indicador. – Tinha um cílio debaixo do seu olho.

  Sem conseguir conter o embaraço, o outro voltou também a se sentar, com sonora violência.

- Por que tá tão bravo? – Ion soprou o que dizia ser o cílio de forma afetada.
- Normalmente, a pessoa só avisa. – Ele precisava se conter e esquecer o que acontecera. Ou pensara que aconteceria.
- Normalmente, não se faz bico quando um amigo mexe no seu rosto.
- Um amigo não mexe no rosto dos outros!
- Desculpa por não saber seu código de amizade, Spartan. Só é muito estranho um amigo achar que o outro vai beijá-lo.

  B-b-beijá-lo?

- Olho fechado e bico de fora? – Ion disse, como que retrucando o pensamento. – Você só não admite porque tem medo de eu não ser uma mulher.

  Aquela conversa já havia passado tanto dos limites que não valia a pena fugir dela. Spartan impulsionou todo o corpo para frente e começou a gesticular cada palavra.

- Talvez, seja isso. Tá, eu confesso. Pode me prender. Eu não me importaria de ser beijado por uma mulher. Que crime cometi? Diga.

  Mesmo tendo sido o provocador, Ion quedou-se calado por um longo período.

- Mas eu sequer sei que bicho você é, - confessou Spartan. – Você não dá uma só dica. Como posso beijá-lo?
- Quem disse que eu quero te beijar? – A voz de Ion estava algumas oitavas mais aguda. – Vou deixar bem claro que parte da minha escolha incluiu abrir mão deste tipo de relação. Não tenho o mínimo interessa seja em romance, sexo ou que seja. Só te chamo de amigo porque você quis isso. Também não quero me dar ao trabalho de amizades.
- Eu quis ser seu amigo? Bem, já que foi tudo um mal entendido... Eu é que não me importo se o desfizermos. – Spartan se levantou.

  Conhecia o bastante os hábitos de brigas do outro para se desgastar ainda mais com aquilo. E aquilo era para melhor.

  Não admitiria, mas um beijo realmente lhe passara pela cabeça e ele gostaria muito de um se Ion fosse uma mulher. Um casal de cavaleiros seria bom, certo? Um entenderia o que o outro faria. E, sendo da mesma categoria, eles poderiam se compreender melhor ainda. Ademais, considerando como a outra parte tinha o dom de afastar pessoas, Spartan nunca precisaria se preocupar com traições.

  Todavia, ainda havia aquela questão feminista, andrógina, militante ou que fosse. Como ele poderia ter um relacionamento com alguém de quem nem sabia o sexo? Okay, as chances de ele vir a descobrir eram bem altas. Talvez até a tempo de impedir um casamento, mas... Não. De jeito nenhum!

  Era tudo culpa daquela bagunça no Santuário. Afrodite, Misty, todos daquela laia podiam parecer lindas mulheres, mas sempre se deixara claro seu real gênero. Agora, ninguém mais se importava se havia uma amazona desfilando sem máscara ou um homem usando saias. Como podiam deixar isso acontecer a um local devia ser sagrado?

  Spartan bagunçou os cabelos, não acreditando que justo ele era um dos quatro únicos sobreviventes de sua classe. Talvez fosse melhor nunca ver aquele futuro sombrio em que ele teria mais autoconfiança e experiência que um cavaleiro de ouro. Talvez até que o próprio Mestre, de onde tivesse que aquele cara estranho houvesse saído. Não havia alguém mais a ver com o cargo, por falar nisso? Quem era aquela pessoa no topo das doze casas, afinal? O Santuário não era mais uma empresa daquela menininha.

  Então, bateu com força a cabeça contra um tronco de árvore. Como podia achar isso de sua deusa? Por quem ele dera sua vida? Bem, ainda tina sua vida, mas ele sabia que teria que se matar se Athena assim o ordenasse. Sem qualquer queixa, apenas porque assim ela entendeu que seria melhor. Toda aquela nova era mexera com seus princípios, concluiu por fim.

- Spartan? – A voz de Ion soou reticente.
- Aconteceu alguma coisa? – perguntou cansado.
- Eu vim me desculpar. Sabe, na vez em que briguei com a Shaina você me disse algo que vem grudando na minha cabeça. De como ninguém tem o direito de ficar bravo com uma opinião contrário. Mesmo que eu ache absurda a forma como aquela mulher pensa.
- Eu disse isso? – Ele dissera várias coisas tentando soar inteligente e amigo no início para Ion, mas vinha perdendo a paciência com as discussões tolas em que o não mais tão novato vinha se arrumando. Por isso, não prestava mais tanto atenção e apenas dizia a primeira coisa em que pensasse sobre o assunto.
- E hoje eu fiquei bravo com a sua opinião só porque não era a mesma que a minha.
- Olha, tá meio tarde pra eu entender sua lógica. – Acrescentou o adjetivo “bizarra” mentalmente. – Só vamos nos desculpar e aí você dorme.
- Quer dizer que você também tá pedindo desculpa? – Ion entortou a cabeça.
- Foi só modo de falar. – Spartan virou o rosto em outra direção.

  O outro começou a rir e deu um tapa nas costas do agora novamente amigo. Então, desejou-lhe boa noite antes de partir.

- Droga! – esbravejou o Spartan, voltando a dar cabeçadas no caule próximo, com cuidado apenas para não derrubar a árvore com sua força.

  Ele estivera tão perto de cortar o mal pela raiz e agora seu coração parecia flutuar só por sentir que a relação havia voltado ao usual.

*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*

  Spartan havia acabado de dar um sermão em um aprendiz que vinha aprontando pelo Santuário. Sentou-se em uma das incontáveis escadarias em ruínas que existiam por ali, vestígios de templos antigos que vieram a ser abandonados com a expansão das terras devotas a Athena.

  O dia estava bastante quente, mesmo já sendo o anoitecer. Ainda assim, uma sensação gélida tomou conta do lado direito de seu rosto. Spartan olhou imediatamente para trás.

- Pra você! – Ion surgira já sentado do lado oposto de sua visão.
- Cerveja? – Olhou confuso para a lata, enquanto observava o outro cavaleiro abrir uma idêntica.
- Acabo de voltar de uma missão na cidade, aí pensei em trazer um souvenir. Vamos comemorar?
- Não sabia que tinha sido escalado pra algo importante. Por que a festa?
- Duas pessoas bebendo dificilmente constituiria uma festa. Mas a comemoração é por mim mesmo. Faz dois anos hoje. Desde que cheguei ao Santuário e recebi minha armadura.

  Já? Já o conhecia fazia tanto tempo assim?

- Nossa, não esperava tanta surpresa. Não é como se eu esperasse que você soubesse, Spartan. – Ion bateu de leve em suas costas com a lata gelada que segurava.
- Só percebi que nunca comemoramos nada. Eu nem sei quando é seu aniversário nem nada assim. Quer dizer que agora você tem dezoito anos, né? Ou dezenove?
- Não importa isso. Guarde apenas este dia. Foi quando nos conhecemos também, certo?
- Que coisa gay. – E se esquivou de receber um golpe, já sabia muito bem sobre como Ion se sentia com aqueles comentários.

  Sua lata estava pela metade quando um bando de guardas os alcançou até o topo da escadaria. O Mestre os convocava com urgência.

  Spartan olhou ressentido para a cerveja na sua mão, não era sempre que tinha uma oportunidade daquelas. Boa parte das missões era realizada longe de grandes centros e quando estavam perto de civilização, apenas ficavam concentrados demais para pensarem em comprar produtos fúteis. Com certeza, Ion apenas pensara naquilo por se tratar de uma data especial. Faltaria mais um ano para a próxima.

  Mas aquela era a vida que ambos por um motivo ou outro haviam escolhido. Os dois se levantaram, deixando o lixo com os soldados, e partiram rumo ao topo das doze casas.

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  A missão era atípica. Em vez de conversas ou perseguições, desta vez, Spartan e Ion haviam sido escalados para ajudar em uma infiltração. Aparentemente, um milionário francês vinha recrutando mulheres para servirem ao sacerdote de alguma seita, cujos maiores devotos possuíam como bastante avançado. As duas mulheres soldado que foram apresentadas ao milionário haviam sumido, a primeira acabara de reaparecer em um necrotério.

Por que não enviaram cavaleiros de bronze, então?”, havia perguntado Spartan. Aquele tipo de serviço de conversar e enganar pessoas estava bem fora daquilo que treinara para ganhar sua armadura. Era chato e um péssimo uso de toda a imensidão de seu cosmo. Contudo, não se queria arriscar mais baixas.

  Para maior desconforto seu, o chefe da missão continuava a ser o mesmo soldado francês. Ao menos, era um dos antigos, conhecido seu. Era ele quem vinha apresentando as mulheres após haver feito alguma amizade com o milionário. O plano era usar Ion como sua terceira enviada à seita.

- E então?

  Estavam no que parecia ser a base da missão, uma casa alugada por uma empresa parceira da comandada pela atual encarnação de Athena. Tudo mais parecia uma van de polícia, tal qual nos filmes de televisão, equipada com alguns monitores e outros aparelhos estranhos. Spartan levantou do arquivo que vinha revisando acerca da missão e deparou-se com o parceiro usando um longo vestido de lantejoulas.

  Ciente do rubor em seu rosto, baixou os olhos para a folha em suas mãos e apenas assentiu. Ion não parecia satisfeito, com uma das mãos puxou o rosto do amigo para si e inquiriu:

- Estou bem o bastante? Isto é importante, não temos outra. A menos que queira se candidatar.

  Spartan suspirou resignado e se aproximou do outro.

- Parece que enfim temos um veredito sobre qual gênero usar contigo.

  Os olhos do outro começaram a procurar algo enquanto sua testa franzia. Para esclarecer mais, Spartan apontou para o volume arredondado em seu tórax.

  Após algum silêncio, a risada de Ion ecoou pela sala. Em seguida, abaixou levemente a alça do vestido de forma a revelar aquilo que o decote pouco generoso vinha ocultando.

- Vê, enchimentos. – E voltou a rir. – Nossa, sua cara parece a da vez em que me viu sem máscara. Achou mesmo que eu ia te mostrar meus peitos?
- Então, eu te peguei de qualquer forma, - respondeu-lhe, cruzando os braços. – Se não fosse homem, não precisaria de enchimentos tão convincentes. Seria até perigoso descobrirem isso. Você foi exposto! – Então, puxou a alça mais abaixada do vestido.

  O soco de Ion o lançou ao chão.

- Seu pervertido!

  Spartan deixou-se ficar no chão por um tempo, tentando ignorar os olhares arbitrários dos soldados que ali trabalhavam. Enquanto isso, Ion sorria confiante.

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  Ion já havia conversado os detalhes com o soldado francês que vinha comandando a missão quando foi se sentar ao lado de Spartan. Precisavam ainda esperar até o horário marcado com o milionário.

- Não era melhor mandarem uma amazona? Shaina faria um ótimo papel de matar esse sujeito.
- Seria meio suspeito, já que elas usam máscara, - arguiu Ion.
- Basta tirar, oras.
- Você realmente faz pouco das opiniões dos outros em favor de seus próprios conceitos.
- Como assim? Esta missão é bem importante. Não foram só nossos soldados que morreram.
- Claro, eu compreendo haver momentos urgentes o bastante para abrir mão de um comando em favor de outro mais importante. Mas não estamos no meio de uma escolha de Sofia quando obviamente havia uma segunda opção. – Ion cruzou as pernas de forma afetada. Então, acrescentou: - Ademais, nenhuma das amazonas de prata é francesa, né? – E estendeu a mão para acariciar o rosto de Spartan lentamente. – Eu sou a isca perfeita. Mas se eu for realmente um homem, você seria totalmente gay agora com essa sua cara vermelha só porque te toquei.

  O cavaleiro virou o rosto para o outro lado, tentando não se afetar com a gargalhada malvada que Ion agora dava às suas custas. Por mais que Spartan tentasse manter-se alinhado, era nítido o olhar reticente dos soldados que os cercavam.

- É interessante como esses seus preconceitos o põem em situações tolas, - comentou Ion antes de voltar a rir.

  Não adiantava se defender naquele assunto, Spartan aprendera naqueles anos de convivência com o outro. O ideal era guardar sua verdade para si mesmo. Também não queria se desgastar em uma discussão quando estavam tão perto de se envolverem em uma situação perigosa. Ele não mentira sobre sua apreensão. O que fariam a Ion quando descobrissem que ele não era ela? E se ele fosse ela?

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- Pra você ser assim, algo muito ruim deve ter te acontecido, não? – Spartan lembrou-se de um haver feito essa pergunta.
- Assim?

  Ele apontou para a máscara que cobria seu rosto naquela noite enquanto voltavam para suas respectivas casas.

- Essa coisa de não querer que saibam seu sexo. Algo te fizeram por causa disso, certo? Por isso você quis eliminar tudo de sua vida para não mais atrair esse tipo de atenção. Foi seu mestre? Ele se apaixonou por você em vez de te ensinar direito?

  Ion deu-lhe um forte tapa nas costas.

- Pare de pensar absurdos. Eu não posso simplesmente ter me educado e criado minha própria opinião? Não é preciso sofrer uma violência sexual para ficar desgostoso com a ditadura do sexo em vivemos hoje.
- Mas por que você não quer revelar nem mesmo para mim? Somos amigos, eu já conheço tudo sobre você.
- Tudo? – Ele gargalhou com sarcasmo.
- Certo, não tanto.
- Já disse que eu ser homem ou mulher não mudaria nada. Por que é importante? Se é necessário prova de confiança, então... não sei se podemos dizer que confiamos um no outro.
- Lá vai você falar bobagens. Sabia que às vezes você soa como uma verborragia de clichês?

  Com aquela conversa, Spartan descartou qualquer agressão sexual como causa daquele comportamento peculiar do outro. Todavia, a confusão de sexos parecia mais e mais importante na vida de Ion do que parecia antes.

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  Naquela missão, Spartan passou a temer as consequências de uma possível revelação pública do gênero que Ion trabalhava tanto para ocultar. Aquela informação de seu amigo devia ser tão íntima quanto... o que a máscara de uma amazona ocultava.

  Aqueles pensamentos não lhe saíam da cabeça enquanto observava a parca filmagem que saía da câmera espiã de Ion. O milionário, uma mancha. O lugar, uma mancha. Os arredores, nem estavam no vídeo manchado. Pior que isso só os sons. Francês. Puro francês. Ou devia ser, já que ele próprio não fazia ideia.

- Camille? – repetiu o que Ion acabara de dizer para o milionário. – Esse é o nome que ele escolheu?
- Acho que é o verdadeiro, senhor, - respondeu o líder da missão.
- Então, ela é mesmo uma mulher! – disse sem entender porque soava como se houvesse ganhado uma aposta.
- Na verdade, há muitos homens chamados Camille na França. Um primo meu inclusive.

  Nenhum dos soldados abafou o suficiente o riso pelas costas do cavaleiro de prata.

  Spartan voltou a se concentrar no que podia captar de tudo aquilo. Mas era impossível, todo aquele material estava longe de garantir a segurança da missão. “Droga, não somos espiões”, pensou com um soco na mesa à sua frente. “Somos cavaleiros, guerreiros da deusa Athena! Uma missão deveria ser apenas ir lá e assustar o sujeito. Se não dá certo, a gente o mata!

- O senhor vai sair? – perguntou um dos soldados mais próximos à porta aonde o cavaleiro se direcionava a passos largos.

  Apenas assentindo, ele seguiu em direção ao ponto de encontro com o milionário.

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  Ele seguiu o casal até um hotel. Ainda não conseguia entender aquela maldita língua, mas estava mais tranquilo agora que estava perto o bastante para ajudar.

  O peso na consciência de estar contrariando a missão aprovada por sua deusa ajudara muito nesse sentido. Fossem outros tempos, aquela atitude podia ser definida como deserção ou pior. De toda a forma, o castigo seria a morte. Ao menos uma vez, ele estava feliz de tudo haver virado uma bagunça.

  Pacientemente, ele decidiu se disfarçar de empregado do hotel e entrar como serviço de quarto. Bastava checar pessoalmente com Ion se tudo estava bem. Um só sinal positivo dele, e Spartan voltaria a apenas aguardar instruções.

  Com um carrinho na mão retirado de outro rapaz com quem também conseguira as roupas, Spartan treinou por uns momentos para imitar os poucos filmes que já vira na televisão. Quando se deu por satisfeito, ele bateu confiante à porta.

- Serviço de quarto, - anunciou.

  A porta abriu para revelar o milionário. Spartan apenas o havia visto direito em fotos, as quais não fizeram jus a seu ar arrogante.

- Não pedimos nada.
- É cortesia do hotel, - insistiu, empurrando o carrinho para dentro, mas tentando demonstrar calma. Realmente, seus treinamentos não o prepararam para aquele tipo de missão.

  Ao menos, o mesmo lhe garantira rapidez para entender as situações. Apenas com aquele movimento de entrar ele já pudera encontrar Ion no imenso quarto. Ele estava ainda com o vestido de lantejoulas, sentada em uma confortável namoradeira junto a um homem obeso. O sacerdote, concluiu ao se lembrar da descrição provável desse.

- Está dispensado, garoto. – O milionário sequer se dera ao trabalho de pegar a carteira para a gorjeta e já projetava o corpo para a frente, andando contra Spartan.

  Foi naquele momento que algo despertou a intuição do cavaleiro. Não tinha certeza se Ion havia feito algum sinal estranho, se fora telepatia ou pura intuição mesmo. Não, era a mão do sacerdote que parecia entrar no vestido. Todo o temor de antes parecia se realizar, mais um pouco e poderiam descobrir toda a farsa. Não havia por que esperar o que iria acontecer: era preciso voltar a agir como um cavaleiro de verdade.

  Spartan chutou o carrinho, que se quebrou contra a parede. 

- O que está fazendo? – O sacerdote se ergueu com tanta força que pareceu fazer o chão tremer.
- Venha, minha armadura! Sou um cavaleiro de Athena, Spartan. E este é o fim de seu jogo sujo, sacerdote de araque.

  Não foi apenas o milionário que reagiu com pavor, Ion também deu um grito agudo após a apresentação. Por que ele não se revelava logo?

  Tentando ignorar, Spartan usou seu poder de psicocinese, movendo vários objetos do quarto contra os dois adversários. Um líquido escorreu pelas calças do milionário, caído inerte sobre o chão.

  Entretanto, o sacerdote fez uso do próprio cosmo, causando um efeito semelhante ao de uma implosão de cada objeto. Com uma velocidade incrível, ele aproveitou a distração de Spartan com o próprio golpe para atacá-lo, jogando-o contra a parede. Talvez a força do outro pudesse ser comparada a de um cavaleiro de ouro, era preciso reconhecer. Mesmo assustado com lidar com um inimigo superior a ele próprio, não iria se render. Elevou seu cosmo ao sétimo sentido e atacou de volta, jogando o sacerdote sobre a urina de seu cúmplice.

  Com a vantagem temporária, ele correu até Ion e ordenou que ele se vestisse.

- Acho que meu disfarce foi mesmo por água abaixo, - disse, jogando para fora os enchimentos do vestido. Por fim, chamou sua armadura.

  Spartan vira os olhos e tenta não comentar a última de seu parceiro: havia uma saia esvoaçante ao redor da cintura da armadura.

  Graças ao elemento surpresa, ambos conseguem cercar o sacerdote com facilidade.

- Athena exige que se apresente a ela. – Ion apontou altivo para o homem ao chão.

  Todavia, o mesmo se levantou lentamente, sem desviar o olhar em um só momento. A risada que deu em seguida fez Spartan se lembrar de algum animal a roubar ovos do galinheiro.

- Não acha que já estão grandinhos demais para acreditarem em Athena? Não vou baixar minha cabeça pra menininha alguma. – E ajeitou suas vestes.

  Instantes depois, a porta do quarto escancarou para revelar vários homens. Era uma quantidade assustadora de cosmo-energia que agora rodeava os cavaleiros de prata. Em poucos momentos, Spartan se viu isolado por um grupo e percebeu que já haviam conseguido agarrar Ion. Aquilo não estava bom.

  Inspirou fundo, precisava manter-se inabalado.

- Uma amazona sem máscara seria o equivalente do Santuário a uma prostituta, né? – disse um dos homens para Ion. – Não tem algo sobre ter que amar todos que a virem?
- Quem disse que sou uma maldita amazona? – Sua tentativa de soco falhou, mas o chute que se seguiu acertou com força um dos homens, que caiu aos pés do cavaleiro.
- Então, é um homem fácil, heh, - concluiu o que primeiro falou. – Não faz muita diferença.
- Mas homens não deviam usar cabelos tão compridos. Acabam sendo confundidos, sabia? Farei um favor pra você. – Um deles ergueu a mão com bastante cosmo concentrado e tentou segurar os cabelos de Ion.

  Não mais conseguindo manter a própria luta enquanto tantos se juntavam contra seu amigo, Spartan queimou ao máximo seu cosmo para afastar os que o cercavam. Mas logo todos estavam recuperados. Ao menos o golpe chamara atenção de uns que então pareciam mais interessados no outro.

  Aqueles homens eram muito fortes. Alguns poderiam ser formidáveis cavaleiros de prata. Ou até de ouro. Spartan reuniu se cosmo novamente e puxou todos os objetos pesados para dispersar o grupo que cercava não apenas a ele próprio quanto o que ameaçava Ion. Precisavam fugir dali, não podiam lutar naquelas condições.

- Seu idiota, em vez de tentar me resgatar como um príncipe encantado, dá pra pensar em derrotar o líder? – ao dizê-lo, Ion se desvencilha dos capangas mais próximos e investe ele mesmo contra o sacerdote.

  Os dois começavam a travar um rápido combate físico em que o cavaleiro parecia ter vantagem, talvez pela diferença de idade. Contudo, o sacerdote dominava a velocidade da luz e, em instantes, havia conseguido agarrar o adversário pelas costas. Ion se contorceu em vão.

- Está bem, eu decidi que vou contigo me apresentar para Athena, - disse-lhe o sacerdote com o tom cheio de sarcasmo. – Exceto que, da última vez em que chequei, ela morava lá em cima no Olimpo. – Seu cosmo brilhou com intensidade. – Preparado para a decolagem, cavaleiro?

  Aquele golpe... Spartan observou impotente a barreira de energia que se formava entre os dois. Era a primeira vez que o via, mas já ouvira muito sobre o mesmo nos relatos daqueles cavaleiros de bronze. Fora assim que haviam derrotado o cavaleiro de Capricórnio, atirando-o para o céu até seu corpo não mais aguentar as condições extraterrenas.

  Precisava se concentrar mais. Não podia permitir matarem Ion bem na sua frente. E se pudesse usar sua psicocinese para abrir a barreira? Poucas vezes treinara controlar o cosmo alheio e em nenhuma o experimento dera muito certo. Mas desta vez ele tinha na sua frente uma quantidade imensa. Duvidava que o sacerdote pudesse se defender naquela posição; então, um pequeno furo já seria o bastante.

  Com toda sua força e concentração, Spartan lançou seu golpe. Sentia-se em uma história bíblica, como se estivesse prestes a dividir o mar. Precisava conseguir. E atacar no momento em que abrisse a brecha. Elevou o cosmo até o sétimo sentido. Por microssegundos, a barreira de cosmo ao redor dos dois se abriu, permitindo a Spartan golpear o sacerdote com o que lhe restou de força.

  Ion e o outro homem caíram com força no piso já destruído do quarto e rolaram até a parede. Esta cedeu com o impacto, apenas uma das mãos do cavaleiro agora estava visível.

- Iiiion! – Spartan correu até o lugar. Como pudera calcular tão mal seu golpe? Ficara tão aflito que usara força demais, esquecendo-se também de que estavam em um prédio alto.
- Há um terraço. Vou pular até lá! – gritou-lhe o outro.

  Mas um golpe de luz foi até o céu, o grito de Ion ficou cada vez mais distante. O sacerdote, que devia estar se segurando ao cavaleiro, lançara um ataque contra a única mão que os prendia ao prédio. Spartan mal registrou quando outros cavaleiros de Athena adentraram o quarto para servirem de apoio contra os capangas. Apenas continuara a olhar o corpo de Ion até ele bater com força contra o teto do terraço que mencionara antes.

*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*

  Ao chegar até o telhado, Spartan correu na direção onde Ion se debatia.

- Como você está? – Segurou o corpo dele e tentou ajudá-lo a se levantar.
- Eu caí de costas, é melhor não me mexer. Deve ter sido minha coluna, não consigo mexer a perna.
- O que importa é que você está bem. – Olhou o sacerdote pelo canto do olho.
- Ele não tem armadura, não sobreviveria a esta queda.

  Spartan assentiu.

- Logo virá ajuda, - acrescentou.

  Olhou ao redor, enquanto permaneciam em silêncio. Não havia nada que pudesse fazer. Nisto o Santuário não mudara em nada: cavaleiros não podiam curar ou ressuscitar os outros e a morte sempre os acompanhava.

- Ei... – Ion o chamou sem ocultar da voz o fato de estar sentindo dor. – Você sente algo por mim?
- Quê?
- É que lá em cima. Eu tenho a impressão de que você tava distraído. Seria por causa do que estavam me dizendo?

  O outro virou o rosto para outro lado.

- Se eu fosse mulher, você se declararia?
-Não é isso. E não é hora pra esses assuntos.
- É, eu poderia não me mexer nunca mais.
- Não diga algo assim.
- E acho que peguei pesado pra um novato. Com aquelas minhas crenças e opiniões e...
- Eutôapaixonadoporvocê! – gritou Spartan de olhos fechados, sua voz se sobrepondo ao que Ion dizia.

  Um silêncio se seguiu.

  Enfim, Ion começou a gargalhar.

- Eu não entendi nada do que você disse, - explicou o cavaleiro mais jovem.

  Após grunhir, Spartan se repetiu pronunciando cada sílaba:

- Eu tô apaixonado por você.
- Oh. – O outro contemplou por um instante o céu noturno antes de tornar a encarar seus olhos. – Para um cara chato que gosta das coisas certinhas sem grandes mudanças... você escolheu uma péssima hora para declarações.

  Spartan sorriu e ajeitou os cabelos de Ion. Ao contrário do que achava, metade deles havia sido queimada afinal pelo capanga de antes.

- Apenas fique vivo, - disse-lhe com um sorriso, tentando parecer calmo. Então, beijou-lhe a testa.
- Sabe, se eu for mesmo um homem, você seria totalmente gay.
- Realmente não é hora para esse assunto.

  Após assentir levemente, Ion voltou a olhar para o céu. Ele nunca recusou as carícias em seus cabelos, por isso, Spartan decidiu continuar até que o socorro médico chegasse.

- Não é mesmo...

*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*

  Quando Spartan abriu a porta do quarto, Camille já parecia pronto. Ele usava um vestido florido com uma calça jeans por baixo e uma boina, mas nem o excesso de roupa podia cobrir o quanto emagrecera naquele tempo em que ficara internado entre cirurgias e semanas de imobilização.

- Olha quem chegou, - anunciou a enfermeira que parecia ajudá-lo na cadeira de rodas.
- Pensei que já pudesse andar. – Franziu a testa. Fazia bastantes semanas que o acompanhava na reabilitação.
- Regra do hospital. Com certeza, ando melhor com meus pés que com isto aqui.
- Mas o senhor não deve abusar, - advertiu a mesma enfermeira, agora entregando ao paciente uma desgastada bolsa de couro, com a qual Spartan vinha descaminhando alguns produtos para dentro do hospital a pretexto de buscar roupas novas.
- Ele tá pronto pra ir, né? – perguntou o cavaleiro à senhora.
- Claro! Apenas confiram se não se esqueceram de nada.

  A moça saiu do quarto para dar privacidade a ambos. Não que fossem um casal. Desde a conversa sobre o telhado, parecia haver ficado subentendido que resolveriam a questão pendente quando tudo houvesse passado. Mesmo quase quatro meses depois, Spartan continuava a aguardar com paciência.

- Sabe... – disse a Ion, vasculhando os cantos do quarto por objetos perdidos. – Tenho certeza de que ao menos nas cirurgias eles notaram. – Apontou para seu colo. – O que você realmente é.

  Spartan então aguardou uma reação em silêncio. Viera se contendo por todo aquele tempo com medo de revelar a probabilidade para o amigo e seu estado acabar se agravando.

- Hm. – Ion conferia distraído os itens em sua bolsa.
- Quero dizer, eles com certeza sabem. Com aquela coisa de urina e tudo.
- É.
- Um bando de desconhecidos sabe.
- Acho que este caso se encaixou naquelas situações extremas de que falamos uma vez.

  Ao menos, havia mesmo um exemplo real de exceção em meio a tanto radicalismo nas ideias do outro. Entretanto, Spartan não se sentia satisfeito.

- Mas esse monte de gente fofoqueira sabe e deve já ter contado por aí. Mesmo assim eu nunca saberei?
- Vamos pra casa, Spartan.

  Ion ainda não estava completamente recuperado. Nem mesmo andar ele conseguia sem o uso de muletas. Todavia, tudo parecia seguir como planejado. Logo, poderia voltar a treinar e cumprir missões. Fora um longo período parado para um cavaleiro, mas não importava. Desde que estivesse bem.

  Spartan tentou dizer que nada mais importava também. Sabia que quando o outro apressou que saíssem de lá era de forma a poderem conversar com privacidade. A grande conversa. A que ele tanto aguardara no primeiro mês, mas passara a até temer nas últimas semanas.

  Em silêncio, colocou a bolsa sobre a cadeira do de madeira do pequeno quarto de Ion e olhou para ele.

- Que olhar de enterro! – disse o outro, colocando a boina em cima da cama e ajeitando os cabelos ainda curtos. Demoraria ainda uns meses para alcançar seu ombro e talvez um ano para voltar ao cumprimento de antes. – Meu cabelo? – perguntou ele fazendo careta.
- Você deve sentir muita diferença, né?
- Autorizei cortarem quando acordei. Era mais prático para as enfermeiras e tava todo estranho depois daqueles caras.
- Eu sei.
- É, você sabe. – Ion sentou-se na cama. Então, fez gesto que Spartan tomasse o lugar a seu lado.
- Isto é sobre o que te disse naquele dia, né? – Mas fez o pedido. – Eu não mudei de opinião. – Engoliu lentamente a saliva que se acumulava na boca. – Aliás, o que sinto por você se tornou ainda mais certo.

  Ion estava sorrindo, enquanto o observa com atenção.

- Mas quando você me olha dessa forma tão calada, eu fico com dúvidas.

  O outro assentiu e levantou a mão. Lá vinha mais um de seus típicos tapas nas costas, pensou Spartan já preparado. Mas se enganara e a mão de Ion pousou delicadamente sobre seu ombro. Parecia massageá-lo. Não, acariciá-lo.

  Não mais conseguindo se conter, o cavaleiro beijou com força o mais novo. Envolveu com as mãos seu rosto e passou a mexer nos cabelos eu vinha observando havia meses. Tão macios... Não conseguia se afastar de Ion, precisava senti-lo cada vez mais perto. Pôs a mão em sua cintura, mas lembrou-se a tempo de que o outro usava um maldito vestido além da maldita calça. Que escolha! Onde pensava que estava? Na França? Estava quente na Grécia, sempre estava. Para que tanta roupa? Voltou a subir as mãos para seu pescoço. Pele. Pele na pele. Era o que mais queria sentir. Além de boca na boca.

  Então, afastou-se.

- Algum problema? – perguntou o outro ofegante.
- Acho melhor ir para casa, você precisa descansar.
- Descanse comigo. – E sorriu-lhe oblíquo.
- Ion, não sei se consigo tirar o sexo da minha lista de prioridades. Eu ainda sou humano e bastante físico quanto a isso. – Spartan se levantou da cama e começou a ajustar sua blusa. – Vamos tentar ir devagar, certo?

  De repente, sentiu um calor na cintura. Os braços de Ion o envolviam e desciam em direção a seu colo.

- Eu nunca fui do tipo paciente, Spartan. – Seus dedos compridos envolviam o fino tecido a cobrir o órgão sexual do outro.
- E como faremos isto? Não tem como não descobrir o que você realmente e aproveitar a situação. Eu teria que estar amarrado para não te agarrar agora, Ion. Principalmente depois de tanto tempo te esperando.
- Você realmente não entendeu a nossa conversa de antes.
- Sobre os médicos do hospital?
- Exato.

  Spartan por fim se virou e franziu a testa para o outro.

  Ion se ajoelhou na cama e enlaçou seu pescoço em um novo beijo profundo, intenso.

- Esta é obviamente mais uma daquelas situações extremas que justificam entortar um pouco os nossos conceitos. – E retirou seu vestido logo em seguida. – Ainda quer ir embora?

  Não obstante ainda se sentisse confuso, Spartan balançou a cabeça.

- Nunca. – E envolveu Ion, após tirar a própria blusa.

FIM!

Anita, 08/11/2012

2 comentários:

  1. Respostas
    1. Oi! Muito obrigada por ter lido a história! Eu poderia tentar te revelar essa informação, mas Ion nos mataria imediatamente. Então, preservemos nossas vidas. ;)

      Beijos,
      Anita

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