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[Saint Seiya] Breve visita ao passado, escrita por Nemui

Capítulos: Único
Autor: Nemui
Gênero: drama
Classificação: 14 anos
Resumo: Findas as guerras, Ikki visita o irmão no hospital logo após o parto de June.


Saint Seiya é propriedade de Masami Kurumada, Shueisha e Toei Animation.

História escrita para o Amigo Oculto de Fanfics 2009, promovido pela comunidade Saint Seiya Superfics Journal.


Para Érika (espero que goste!!)



Breve visita ao passado

    Esperava sentado no sofá da recepção do hospital, com os braços cruzados e a cabeça apoiada no encosto. Olhava para o teto e para uma imagem no fundo da mente, que eventualmente voltava à tona, deixando-o incomodado. Ikki puxou o ar fundo, deixou o pulmão ser preenchido por completo para depois liberar tudo num suspiro irritado, como quem não gostasse de ouvir comentários alheios. O pior era que quem lhe metia o dedo na ferida era ninguém senão ele mesmo.

    Por que sua mente desenterrara algo tão antigo? Quase podia tocar no ferimento aberto pelo cosmos, com o sangue a manchar o vestido gasto de Esmeralda. E por mais que desejasse, era em vão. Mesmo que tentasse puxá-la daquela lembrança, Esmeralda jamais cruzaria o limite entre realidade e imaginação, entre morte e vida. Para que, então, resgatá-la nas lembranças? Que a deixasse quieta ali, dormindo bem no fundo de uma cicatriz mal curada.

    Se dissesse seu nome, ela voltaria, com a mesma força de anos atrás. Todas as
 lembranças inundariam a sua mente, com risos, choros, comentários, palavras inesquecíveis. E por isso mesmo Ikki não dizia o seu nome. Passado era passado, era o que devia por obrigação ficar atrás, no caminho pisado. Por isso, quando Esmeralda surgia em sua mente, duas forças entravam em conflito: uma delas queria reviver a garota que o enchia de vitalidade, e a outra reprimia a volta de uma dor inerente à lembrança. Esmeralda era passado.

    “Ikki! Você está me ouvindo?!”

    Ele olhou para o zangado Seiya, meio surpreso com o chamado, após ter sido tragado bruscamente dos pensamentos.

    “O quê...?”

    “Eu perguntei por que está com essa cara séria! Sua família cresceu! Tente mostrar um pouco de alegria ao menos.”

    “Deixe-o, Seiya”, disse Hyoga. “Você sabe que Ikki é assim mesmo.”

    Seiya voltou a conversar com os amigos. A recepção da maternidade ficava barulhenta com seus irmãos cavaleiros a conversarem sobre o pequeno ser que surgira algumas salas do lado, nas mãos da médica de June. Ikki viera porque o irmão lhe pedira para ir vê-lo. Era um momento marcante para Shun, principalmente depois de passar tantos apuros no campo de batalha, com a quase certeza de uma morte violenta. Não podia faltar com a promessa feita a Shun. E, no entanto, não queria estar lá.

    As vidas de todos à sua volta estavam cheias, repletas de vontades, expectativas, esperanças para si mesmos; enquanto que ele não via nada, a não ser campos de guerra e morte. Shun certamente tinha uma existência plena, agora com uma família de verdade para proteger. Nenhum inimigo seria capaz de derrubá-lo, já que possuía o oitavo sentido. Shun não mais precisava ser protegido do frio, da fome, dos outros meninos, de ladrões ou de qualquer ser humano sobre a face da Terra. Lobos, quando filhotes, ficavam juntos para proteger-se de predadores. Quando adultos, separavam-se completamente.

    Queria sair de lá, mas tinha prometido que viria. Ficava satisfeito quando pensava no irmão: tinha-o criado para ser uma boa pessoa, para ser forte. E Shun jamais perdera a pureza de menino enquanto crescia, cada vez mais forte. Ele tinha feito um trabalho perfeito. Mas todo trabalho, um dia, chegava ao fim.

    Se Esmeralda não tivesse morrido, sua vida com certeza seria bem diferente. Talvez não tivesse se tornado uma pessoa tão amarga. Talvez fosse otimista e esperançoso como Seiya e os demais, um homem completamente diferente, com sonhos e ideais. Para ele, não havia outro futuro que não fosse continuar como um lobo solitário. Não era mais alguém necessário.

    Shun apareceu no corredor do hospital, sorridente e ainda contagiado pelo terror radiante de ser um pai. Foi logo cercado e bombardeado de perguntas pelos amigos. Ikki não se meteria naquela bagunça para ver o irmão. Sua vontade de vê-lo não era assim tão desesperadora. Continuou de braços cruzados, olhando calado para a cena.

    “Shun, como a June está?”

    “E o bebê?”

    “Ei, eles estão bem, não se preocupem. Vocês até podem ir vê-los, mas precisam fazer silêncio.”

    “Mas o que estamos esperando, então? Vamos!”

    Sob repreendas dos amigos, o ruidoso Seiya caminhou à frente do grupo, animado como sempre. Shun parou atrás do grupo e fitou o irmão.

    “Niisan? Não quer ir vê-los?”

    “Depois. Prefiro esperar o furacão passar.”

    Shun sorriu: sabia que Ikki detestava aglomerações, barulho e pessoas conversando sobre assuntos inúteis. Apenas o fato de o irmão estar presente já era um presente, e dos grandes.

    “Eu não vou demorar.”

    Não era difícil imaginar o quanto Shun estava feliz. Mas por algum motivo, Ikki não conseguia sentir a mesma alegria. Era uma satisfação por ter conseguido protegê-lo até ali, mas não uma alegria. Era algo mais parecido com alívio, porque, se o tivesse perdido, teria perdido tudo o que restava de sua vida. Tinha conseguido manter-se são após a morte de Esmeralda por causa de Shun. E agora, o que seria dele se não era mais necessário?

    Não tinha mais a intenção de viver com outra mulher. O que tivera até então eram noites esparsas para aliviá-lo quando o corpo tinha sede, mas ninguém que lhe alimentasse o espírito. Lutava para proteger o mundo onde o irmão pisava, mas que já tinha acabado para ele. Sabia, no fundo, que tudo o que lhe restava era a morte no campo de batalha com o único objetivo de obter uma vitória. Iria para o inferno muito tranqüilo, com a missão cumprida.

    Como a recepção do hospital só acabava com o restante de sua paciência, Ikki levantou-se, tomou o elevador e pediu o último andar do edifício. De lá, subiu as escadas até o terraço para respirar ar puro. A brisa de inverno acalmava-o e permitia-lhe esperar mais. E depois teria de prosseguir com o paparico padrão de bebê recém-nascido.

    Olhava para a paisagem de Tóquio por trás da cerca gradeada. Luzes, trens, prédios altos, pessoas caminhando aos montes nos cruzamentos. Um mundo completamente distante de seu passado na ilha da Rainha da Morte. Não havia escravos, não havia fome, e flores eram usadas comumente para presentear queridos. Não era um lugar fácil, pois possuía seus próprios obstáculos, muitos invisíveis a olho nu; mas talvez agradasse Esmeralda.

    A ironia de Tóquio era estar entre milhões de habitantes, milhares de vezes a população da ilha da Rainha da morte, e sentir-se mais sozinho ali do quem em qualquer outro lugar do mundo. Assim seria melhor. Apenas Shun e mais alguns amigos sentiriam a sua morte daquele jeito, e não causaria em mais pessoas a mesma dor que sofrera anos atrás.

    ‘Assim será melhor’, pensou, amargo, ‘é melhor que a minha morte seja tão importante quanto a queda de uma folha seca.’

    “Niisan?”

    Ikki voltou-se para trás e acompanhou Shun com os olhos até que este se colocasse ao seu lado e também observasse a paisagem cinza de Tóquio.

    “Daqui de cima dá até para ver a mansão Kido, não é mesmo? Dá para ver os prédios, mas não os órfãos.”

    “Eles estão abrigados nas igrejas e orfanatos.”

    “Você se lembra daquele padre que nos acolheu quando éramos pequenos? Soube no mês passado do falecimento dele. Foi dormindo, em paz. Quando me contaram, eu fui visitar o túmulo dele. Viveu oitenta e nove anos... E pensar que faz mais de dez anos que nos abrigamos lá...”

    “Ele vai voltar, num novo corpo, numa nova vida. Que nem os cavaleiros quando morrem e renascem para lutar de novo por Athena. Nosso consolo é que alguns de nós têm sorte. Podem ter até uma família.”

    Shun respondeu ao sorriso de Ikki com a alegria de ser um pai.

    “Nem eu estou acreditando. Os nove meses já se passaram, mas eu ainda não consigo acreditar, niisan. Eu, um cavaleiro de Athena, consegui viver para deixar alguém neste mundo. Agora não sou mais aquele que depende de alguém, mas sou o pilar das vidas de outras pessoas. Estou um pouco assustado para ser franco e, no entanto, só tenho vontade de seguir adiante nos meus planos.”

    “É porque não há outra opção senão essa.”

    “Quanto a isso...”

    Shun calou-se, suspirou e afastou-se um pouco da cerca.

    “Niisan, não gostaria de ir vê-la? A sua sobrinha.”

    Pelo olhar, Ikki sabia que Shun não aceitaria uma resposta negativa. Conhecia o irmão bem demais para recusar.

    “Eu estava esperando por isso.”

    Desceram os andares em silêncio. Não precisavam de muitas palavras para estarem bem um com o outro, pois já se entendiam apenas pelo olhar. Shun guiou-o até o segundo andar, num quarto bem espaçoso e com ar condicionado do hospital da Fundação Grado. June estava sentada na cama com o pequeno embrulho nos braços. Mesmo vestindo trajes hospitalares, mantinha a máscara sobre o rosto, que apenas Shun podia ver.

    “Ikki...”

    “Parabéns, June”, disse. Fora seco, mas estava habituado a ser assim. A cunhada nem se importou, tamanha era a sua satisfação com o bebê.

    “Obrigada. Sei que é raro uma amazona ter filhos, mas nem ligo para isso. É fantástico... Agora ela está mamando.”

    Ikki aproximou-se e observou o rosto enrugado daquele pequeno ser. Era feioso como todos os bebês recém-nascidos, mesmo que todos dissessem ser ‘bonitinho’. Entretanto, era um pedaço de vida solto pelo irmão para o mundo, e isso era bonito.

    “Como devo chamá-la?”

    “É aí que nossa conversa começa”, respondeu Shun, assumindo em semblante tenso. “Você nota algo enquanto a vê?”

    “Hum... Lembra muito você quando era bebê. Tirando esse cabelo loiro, é claro.”

    “É a cara do Shun, não acha?”, comentou June, tomando excepcional cuidado com o modo de segurá-la. Não era muito habilidosa quando o assunto era criança. Ikki ainda se lembrava do jeito correto de segurar um bebê, pois aprendera apenas com a experiência. Mas o que mais lhe chamava atenção, de fato, era a semelhança dela com Shun.

    “Eu fiquei surpreso agora há pouco, quando a vi”, disse Shun, “nem tanto com a semelhança, mas o que pensei naquele instante, sem querer. Eu me lembrei da descrição que você me deu uma vez, niisan.”

    “Do que está falando, Shun?”

    “Da descrição Dela. Você me disse que só havia duas diferenças entre nós: cor do cabelo e o sexo. E então, acha parecido?”

    Se Shun não tivesse comentado, Ikki nem sequer notaria, pois na sua cabeça era apenas um recém-nascido com cara enrugada. De fato, aquela menina poderia se parecer com Esmeralda ao crescer, uma tremenda coincidência. E alguma coisa moveu dentro dele: uma lembrança que ainda doía, lá no fundo, com cheiro de morte.

    “É... É sim.”

    “Na hora, quando a vi, pensei: deve ser a reencarnação dela! Bem que poderia ser, não acha, niisan?”

    Ikki riu baixo diante da impossibilidade da suposição do irmão.

    “Não poderia ser... Não creio que seja. Pelo que sei, cavaleiros de Athena reencarnam como Athena, mas apenas a cada duzentos anos. Deve ser o mesmo com ela. Além disso... Ela é passado, Shun.”

    Mesmo que Shun concordasse e encerrasse o assunto, aquela pergunta ecoaria na mente de Ikki. Estava plantada ali uma pequenina dúvida, que o irmão mais velho imediatamente tentou assassinar. Esmeralda estava enterrada na ilha da Rainha da Morte e era ali que devia permanecer.

    Shun e June entreolharam-se, e Ikki supôs que fosse a comunicação mental pelo convívio. Algo não estava bem entre eles.

    “Algum problema, Shun?”

    A expressão problemática e hesitante de Shun era velha conhecida de Ikki, que logo cortou o irmão de forma brusca:

    “Se não disser, morrerá com a dúvida na cabeça. Você sabe que não precisa esconder nada de mim, nem ter medo de dizer nada.”

    “Bem...”, iniciou ele, ainda hesitante. “Foi apenas uma idéia que eu tive quando vi o rostinho dela agora há pouco, depois do parto. June concordou, contanto que você também concordasse, niisan.”

    “Não vejo nada que precise de meu consentimento, mas prossiga, Shun.”

    “Sim... June e eu... gostaríamos de saber o que acha de chamarmos a pequena de Esmeralda... Como uma forma de homenageá-la. Se isso o incomoda, não o faremos, niisan. Se bem que... como eu pensava, deve incomodar.”

    Como sempre, Shun agia conforme o coração e o pensamento nos outros. Podia parecer uma surpresa, mas Ikki julgou aquele pedido apenas como um excesso de zelo do irmão. Não importava o nome da sobrinha, nada mudaria quem ela era de verdade. Riu.

    “Shun, eu sou mais forte do que isso, não acha? Vocês podem colocar o nome que quiserem nela. Afinal, são os pais. Apenas siga a sua vontade, entendeu?”

    “Niisan...”

    Shun não estava totalmente convencido, mas Ikki sabia que o irmão não insistiria porque o conhecia bem demais. Quando o cavaleiro de Fênix decidia, não havia nada que o fizesse mudar de idéia. Enterrar as lembranças de Esmeralda incluía aceitar aquele nome. Se sempre se lembrasse da ilha da Rainha da Morte ao ouvir o nome da sobrinha, jamais seria capaz de superar o passado e seguir adiante. Talvez fosse até melhor assim.

    “Posso pegá-la?”

    O bebê tinha terminado de mamar. Ikki pegou-o nos braços na posição para o arroto com extrema habilidade. Ainda se lembrava de Shun, quando era bebê, pesando em seus braços no meio da chuva. Era curiosa a leveza do bebê comparada com o pequeno Shun. Lembrava os braços doloridos do tempo de garoto.

    “Eu ainda sei fazer isso. Logo vocês aprenderão por conta própria. Pegue, Shun.”

    O pai desajeitadamente pegou a filha, que fez uma careta de desconforto. Ikki conhecia muito bem aquela expressão. Sorriu para a pequena Esmeralda e decidiu que sua missão ali estava terminada. Já mostrara ao irmão como devia segurá-la, agora deixaria o resto por descobrir.

    “Opa... Vamos, pequena, não chore, por favor, não faça isso com o seu pai...”, murmurava Shun, rezando para que a filha não reclamasse.

    “Heh. Eu vou deixar o resto com vocês. Tenham uma boa sorte.”

    “Niisan, já está indo?”

    “Se eu ficar, tirarei toda a graça de vocês terem o primeiro filho. Além disso, é a sua vez de proteger alguém, Shun. E eu não preciso ficar, porque conheço a sua competência. Talvez... Essa Esmeralda cresça bem parecida com a minha Esmeralda, e seja mais feliz do que a primeira. Mas o único que pode dar a felicidade a ela é você.”

    “Niisan...”

    Shun não impediu a sua partida. Compreendia que cada um seguira por um rumo completamente diferente, apesar de compartilharem o mesmo sangue e de ambos serem cavaleiros de Athena. Sempre haveria um lugar para Ikki sob a sua casa, mas o irmão não mais desejava ter sempre uma companhia. Sabia que o feriria se o prendesse a ele.

    Ikki saiu do prédio em silêncio, sem um rumo definido. A partir de agora, Shun deixaria de ser tão próximo, pois precisaria dedicar-se aos seus protegidos. Seu trabalho estava terminado. Olhou para a avenida do hospital e decidiu segui-la sem nenhuma razão. Seguiu andando, sem objetivo, motivação ou desejo de recomeçar.


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