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[Original] As Origens de Sebastian - Capítulo 15, escrita por Andreia Kennen

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Autora: Andréia Kennen
Fandom: História Original
Classificação: 18 anos
Gêneros:  Aventura, Drama, Fantasia, Lemon, Mistério, Romance, Suspense, Tragédia, Yaoi
Resumo: Na Inglaterra da idade média, uma família cavalgava junta quando o cavalo do filho se desgovernou e, após avançar assustado em meio a densa floresta, derrubou o menino e desapareceu. O jovem, ferido e sem poder se defender acabou sendo encurralado por lobos ferozes. No entanto, um belo e estranho animal o salva. E a partir deste momento, humano e criatura partilharão de um amor aparentemente inconcebível.

Notas iniciais do capítulo

Com quase um mês de atraso da minha previsão de postagem. Está aí, atualização de AOS, que está começando a apontar na reta final.
Boa leitura!



As Origens de Sebastian

Capítulo XV

O Prelúdio da Morte

A tempestade de neve encobria parcialmente o corpo feminino estendido no chão. O filhote de lobo aposto diante dele tentava impor presença e amedrontar com seu rosnado os humanos que se aproximavam.

Todavia, a aparência frágil da criaturinha, contradizia sua intenção, pois seus pelos eriçados eram tão espessos e alvos que se confundiam com a própria neve, dando-lhe um aspecto de uma fofa bola de neve.

Mesmo assim ele não recuava. Parecia determinado a afugentar os homens que se aproximavam segurando armas, na maioria delas improvisadas, como pedaços de paus, pedras, foice e facão.

— Sai daí, bicho! — gritou um deles, fazendo um gesto de enxote com a mão.

— Parece um filhote de lobo acuado — expôs um rapaz franzino.

— Até que é bonitinho — observou outro.

— Mas por que diabo ele está defendendo o corpo da velha bruxa? — questionou um mais irritado. — Onde foi parar a criança que ela carregava?

— Deve ter caído no rio — justificou outro, voltando-se para o rio que corria depressa atrás deles, cujas bordas, onde se empoçava a água, estava recoberta por uma fina camada de gelo.

— E essa criatura não está protegendo o corpo da bruxa e sim sua comida. Ele deve ter saído de alguma toca atraído pelo cheiro de sangue.

— E se há um filhote, deve haver uma mãe — comentou alguém, analisando o risco que corriam.

— Não é melhor sairmos daqui? Lobos só andam em alcatéia.

— Estamos armados, idiotas — contrapôs o mais robusto do grupo. — Além disso, mesmo que a bruxa tenha morrido na queda, precisamos arrancar a cabeça dela, só assim teremos certeza que ela não continuará fazendo bruxarias!

Incentivados pela fala do que parecia ser o líder, eles decidiram continuar. Todavia, a cada passo que davam em direção ao corpo caído no chão, os pelos do filhote se eriçavam mais e seu rosnado se tornava mais audível.

— Que bicho insistente!

— Sai daí se não quiser se machucar, filhote, xô!

— Vamos, saia — demandou o líder. — Vá procurar sua mãe.

O rosnado prosseguiu.

O homem vigoroso a frente dos demais encarou a criatura que tinha belos e cristalinos olhos azuis.

Apesar de ele ser muito maior e ter muito mais força, algo naquele pequeno animal o fazia tremer. O olhar dele era firme e cheio de ressentimento. Sentiu arrepios. Tinha a sensação de que ele estava defendendo alguém importante, como sua própria mãe. O que de fato seria ridículo, aquela mulher carregava uma cria sim, mas era humano e não um filhote de lobo.

No entanto, parou e pensou um pouco mais. A mulher era uma bruxa que bebia sangue humano, seria possível ela ter usado o restante de seus poderes demoníacos para disfarçar a criança naquele pequeno e inofensivo ser.

O filhote não se afastava mesmo sendo enxotado e, se fosse aquilo mesmo que deduzira, teria que agir de forma bruta.

Engoliu em seco e segurou firme a tora de madeira que tinha em mãos, ergueu-a no alto, para tomar impulso, se tivesse sorte, com um único golpe o mataria.

Porém, naquele instante, parecendo compreender a ameaça e, talvez, em uma última tentativa de buscar por socorro, o lobinho ergueu o focinho para cima e uivou o mais alto que pode.

Um uivo agudo e cheio de lamento.

Retesou-se e buscou os demais companheiros e os percebeu paralisados assim como ele, como se conflitassem internamente entre continuarem com a missão ou fugirem.

Afinal, era evidente, aquele uivo estava chamando por outros da espécie.

Ficaram em silêncio por algum tempo, esperando por mudanças ao redor. Mas apenas a tempestade de neve continuou agindo e o vento soprando forte a copa das árvores; suspiraram aliviados.

— É, parece que ninguém ouviu seu pedido de socorro pequeno, com certeza você se desgarrou do seu grupo — observou o que estava mais atrás.

O líder a frente pareceu ainda mais incerto sobre o que era aquela criatura. Se fosse mesmo uma criança humana, disfarçada pelos poderes da bruxa, estava prestes a cometer um crime hediondo.

Todavia, humano ou não, nas mãos daquela mulher maligna a criança se tornaria o próprio mal encarnado, era necessário tomar uma atitude. Precisava apenas crer que seria redimido de culpa por estar fazendo justiça.

Respirou fundo e o ar quente dos seus pulmões transformou-se em fumaça ao sair da sua boca e entrar em choque com ar gélido do ambiente.

— Vai ser rápido, eu prometo — garantiu, apertando com força a tora de madeira erguida no alto.

Foi somente um golpe. Houve um ganido angustiante de dor, pode sentir que a força da sua pancada trincou o crânio da criatura, pois ouviu claramente o estralar dos ossos se quebrando.

O sangue jorrou forte pelo ferimento que se abriu quando o atingiu, o qual trilhou um traço na neve por onde o corpo pequeno voou.

A criatura tombou a metros de distância no chão coberto de neve, completamente imóvel.

— Uh! — houve aquela exclamação.

— Do mesmo jeito que caiu o filhote ficou.

— Nossa, chefe, que força monstruosa é essa? Matou ele em um só golpe? Você é incrivelmente forte!

Eles riram.

Mas o que era chamado às vezes de “chefe” e às vezes de “líder” manteve-se sério, não achava graça na situação. A atenção dele estava totalmente voltada para a mulher no chão. Não tinham motivos para comemorar ainda.

— Certo. Agora a bruxa — ele decidiu, jogando a tora longe e estendendo a mão para o lado, pedindo por uma arma com a qual pudesse arrancar a cabeça da mulher. — O facão.

O que estava mais próximo se apressou em entregar a ele sua arma.

— Aqui, chefe. Não está muito afiado, mas com a força bruta que o senhor tem acho que não precisa estar. Não é mesmo pessoal?

— Verdade!

Concordaram aleatoriamente e riram de novo.

— Parem de piadas! — ele repreendeu os companheiros. — Não é nada engraçado tirar uma vida, por mais que seja de gente ruim. Rir do fato só os torna tão débeis e malignos quanto essa mulher e quem sabe até candidatos a próximos feiticeiros.

Os sorrisos que ainda se sustentavam nos rostos de alguns se diluíram rapidamente dando lugar a semblantes sérios e endurecidos.

— Melhor assim — ele constatou e voltou-se para a mulher com o facão em punho. Agachou-se perto do corpo e ergueu a cabeça ao puxá-la pelos cabelos, notando a palidez de sua pele. Parecia morta, pois estava estranhamente pesada. — Agora é a sua vez, bruxa.

Deteve-se ao arquear o braço para trás com intenção de tomar impulso de novo, mas fora assolado por um forte arrepio, desta vez, condensado, o qual correu toda sua coluna. Aquilo era um alerta dos seus sentidos. Havia algo de errado ao redor, um silêncio amedrontador. O vento havia parado de soprar.

Sentiu sua audição se aguçando e percebeu passos apressados, não eram humanos, eram patas ligeiras. E o farfalhar das folhas denunciava a proximidade. Algo estava vindo, se locomovendo depressa, ao encontro deles.

— Merda! — praguejou, tentando se centrar ao menos no que seria sua última missão.

Ergueu o facão novamente, mas algo pulou da moita em suas costas, fazendo-o desequilibrar e tombar para o lado, deixando o facão cair também. Logo o animal que o atacou veio para cima dele novamente e só teve tempo de ver os dentes ferozes diante dos seus olhos. Cruzou os braços na frente do rosto para defender e sentiu quando um deles fora abocanhado.

O som retornou em sentido de caos. Seus companheiros gritavam desesperados, alguns tentaram vir ao seu socorro, outros estavam sendo atacados. Novos lobos apareceram, um atrás do outro.

Lobos não atacavam humanos daquela forma, deduziu que deveria ter sido o pedido de auxílio da pequena criatura.

Tentou lutar, levantou-se e jogou o animal que estava grudado em seu braço longe, mas um novo surgiu rápido e abocanhou sua perna. Socou esse na cabeça, mas vieram três deles de uma vez. Um baqueou contra seu peito e novamente foi jogado no chão e atacado no pescoço, sentiu as presas afundando-se, enquanto sua visão foi turvando.

Olhou adiante e notou um brilho azulado na neve. Era exatamente onde o filhote havia caído. Não sabia se estava delirando antes da morte, mas teve uma estranha visão. O animalzinho se levantou, sacudiu todo o corpo para tirar o excesso de neve dos pelos e deu algumas lambidas aleatórias no sangue respingado por seu corpo. Depois disso passou a caminhar calmamente em sua direção.

Tossiu, engasgando com o próprio sangue que minava das veias atingidas. Poderia estar alucinando, mas notou quando a criatura se aproximou dele o suficiente para que pudesse encarar seus olhos cristalinos. Não ouvia mais os gritos dos seus colegas, sua audição estava se perdendo. Esforçou-se para se manter consciente por mais um tempo.

Observou então quando aquela transformação aconteceu, os pelos do lobinho foram se recolhendo, adentrando de volta a pele, até se tornar uma pele humana, lisa, sem vestígios nenhum de pelos. Surgiu uma linda criança humana, de rostinho meigo, bochechas fofas e rosadas do frio, além daquele par de olhos azuis brilhantes. Era um menino, estava sem roupas e parecia um pouco maior do que antes, quando o vira sendo carregado no colo pela bruxa.

Sorriu ao ouvi-lo falar.

— Afastem-se.

Os animais pararam de rosnar e obedeceram. Era como se compreendessem a fala humana. Como se um bebê fosse capaz de dar ordens com toda aquela clareza.

— E- então e- era verdade... — tossiu sangue novamente e esse espirrou em sua cara. — É mesmo... u- um m- monstro...

A criança sorriu docilmente e passou a mãozinha na face barbuda do homem. Acariciando a lateral e chegando até o ferimento aberto pela força bruta das prezas do animal que antes estivera em cima dele. Melou toda a mãozinha com o líquido vermelho e a trouxe de volta para diante dos seus olhos, farejou-a e levou-a até a boca por fim, experimentando o gosto daquele sangue de um tom rubro intenso.

— É gostoso.

— O... q- que diabo v- você é?

— Sua pergunta é estranha, meu senhor. Não sei responder. Mas se quiser, posso dizer como me chamo. Lady Fran-... digo, a vovó, disse que me chamo “Sebastian”. O nome escolhido pela minha mãe.

O homem sorriu.

— S- Sebastian...?

— Hm?

— Então era isso, a bruxa estava a- alimentando você com os homens que ela seduzia e n- não... s- se alimentando.

— Sim. E se me permitir irei devorá-lo também.

— C- comido por um monstro? — o homem conseguiu sorrir. — Não era bem o fim que eu esperava para mim. Pelo menos demos cabo na bruxa.

— Tem certeza, meu senhor? — a criança perguntou, pendendo a cabeça para o lado.

O homem arregalou os olhos e voltou-se para a mulher caída no chão, observando que os lobos estavam se deitando ao lado dela, como se quisessem protegê-la do frio e devolver o calor ao seu corpo quase congelado.

— Ela está dormindo, exausta devido ao cansaço e ao frio — o pequenino justificou. — Mas algumas horas de sono, aconchegada pelos meus novos companheiros, e ela acordará bem.

O homem abriu a boca, mas não conseguiu falar.

— Descanse em paz, meu bom senhor — o menino desejou, escalando o peito do homem e sorrindo para ele, mostrando a arcada dentária formada por presas finas e pontiagudas.

O aldeão fechou os olhos e apenas esperou a morte o levar, havia falhado horrivelmente.

...

Earthen olhava o céu nublado pela janela. A tempestade havia cessado há algumas horas e a lua surgia momento ou outro entre as nuvens pesadas. Era quase madrugada.

Crispian estava deitado na cama e contemplava o corpo nu e esguio, agora ausente de pelos, do ser que parecia iluminar-se ao ser banhado pela claridade da lua. Os cabelos longos, cujas pontas tocavam as nádegas, se destacavam com a mecha vermelha ao centro.

Earthen era tão perfeito e o sentimento que nutria por ele era tão exigente que fazia o peito de Crispian doer.

Ainda sentia o orgasmo quente do amante escorrendo entre suas nádegas, havia algum tempo que não se amavam daquela forma mais comedida, na qual sentia a penetração acontecendo milímetro por milímetro, fazendo-o derreter e desejar ser atravessado por golpes mais vigorosos.

E, mesmo assim, Earth manteve-se centrado e não escutou seus apelos. Ele fizera fora aumentar o escorregar carinhoso de sua língua por sua pele, o beliscar dos dedos em seus mamilos, endurecendo-os ao ponto de ficarem doloridos, fazendo-o resfolegar sob os lençóis e contrair-se por conta própria.

Procurou ao máximo segurar os gemidos, mas tudo que obteve fora sons ainda mais vergonhosos, roucos e despudorados. Quando Earthen finalmente impôs sua virilidade nas estocadas sentiu a ereção dele deslizando em seu interior, banhada pelo gozo que ele expelia, enquanto continuava golpeando o mais fundo que podia, criando ondas de prazer que, de tão intensas, percorreram toda sua pele, estimulando e intensificando as contrações do orgasmo.

Apenas recordar-se de todo aquele prazer que sentira há pouco o fazia contorcer os dedos dos pés, enquanto o estômago se contraía e o coração passava a bater descompassado. Virou de bruços na cama e começou a mover o quadril, friccionando o sexo contra a maciez da cama. Estava ficando excitado de novo e não queria. Não por não desejar fazer sexo de novo e sim por não dispor de energia suficiente para aguentar uma nova rodada. Apesar de que, se Earthen quisesse, seria capaz de se reanimar rapidamente. Prendeu o lábio inferior nos dentes e ergueu seus olhos para o ser.

Todavia, sua excitação se dissipou ligeiramente ao notar algo de errado com o amante: Earthen não estava prestando atenção nele. Nem mesmo o calor que parecia exalar do seu corpo fora capaz de atrair o faro potente que ele tinha. Sua mente parecia distante. Esfriou.

— Parece preocupado — observou Crispian, sentando-se na cama e apanhando o camisolão que estava jogado no chão, com o qual cobriu sua nudez.

Levantou-se e se aproximou da janela, ficando ao lado de Earthen e vislumbrando o ambiente encoberto do lado de fora.

Earthen não havia respondido.

— Talvez esteja cansado de estar encerrado atrás dessas paredes? — sugestionou.

— Não há preocupações em meu peito além daquelas que o rodeia, milorde — ele deu aquela reposta, porém não moveu sua atenção para o lorde.

Aquilo estava incomodando Crispian.

— Não seja escorregadio, Earth — rebateu irritado. — Eu o conheço bem. Parece perturbado.

— Eu não...

— Está pensando em sua cria? — optou ferino.

A pergunta causou uma reação inesperada: Earthen engoliu em seco, permaneceu em silêncio e continuou com a atenção voltada para o tempo, o que fez o lorde de Valdávia estender o braço na direção dele, alcançar seu queixo, o segurar e o direcionar para si, obrigando-o a olhá-lo.

— É isso? — insistiu. — Está preocupado com a cria que gerou com a minha esposa?

Os olhos de Earthen se semicerraram, analisando com cuidado as nuances de ironia que se formavam no rosto bonito do seu amo. Aquela era natureza humana que pouca compreendia mesmo após décadas a fio de correlação com a espécie.

— E tal fato parece incomodá-lo?

Crispian sorriu, cansado. Earthen estava se desviando de suas perguntas novamente, seu lobo sempre fora muito astuto, de poucas palavras e análise perspicaz. Era assim que ele evitava conflitos desnecessários.

Soltou do rosto dele e se encostou ao beiral da janela, ficando diante de Earthen que, provavelmente, media dois metros, enquanto ele não passava muito da altura mediana feminina. Algo que o incomodava, por contribuir para sua androgenia.

Suspirou fundo, buscando retomar o fio da conversa em sua mente. Não haviam falado muito sobre a traição. Tinha interesse em saber por qual motivo aconteceu e o que levou Earthen a cometê-la. Passariam a noite juntos, era o momento perfeito para sanar aquelas dúvida. Entretanto, faltava disposição para entrar naquele assunto. Não tinha certeza que queria gastar o raro tempo que dispunham juntos discutindo algo que poderia tornar o clima entre eles carregado.

— Você me traiu, Earth — lembrou-o apenas, soltando um suspiro chateado no final. — Não pense que me esqueci disso. Você ainda me deve uma explicação.

— Já o esclareci sobre isso, milorde — o ser rechaçou. — Sou apenas movido pelas minhas necessidades.

— Quer mesmo que eu acredite que dormiu com Catherine somente por extinto? — o questionou revoltado. — Você é cuidadoso, Earth. Sabe se controlar, ser comedido quando quer. Seus instintos nunca foram problemas, você nunca se deixou dominar por eles, é você quem os domina muito bem. Tanto que você nunca me atacou, nem a minha mãe, ou outra pessoa qualquer da nossa residência durante os anos que convivemos juntos antes de poder me ter. E não parece necessidade o que permeiam seus olhos nesse momento, parece, de verdade, a preocupação de um pai com sua criança.

A observação causou um novo efeito em Earthen, os olhos dele se arregalaram levemente e pareceu que queria sorrir; algo completamente incomum vindo dele.

Todavia, se houve aquele desejo, o demônio esforçou-se para segurá-lo.

Earthen não deixava de dar razão as observações feitas por Crispian. Passaram-se décadas em que convivera com os humanos e, mesmo que achasse confuso às vezes, aprendera a distinguir e compreender a natureza dos sentimentos.

Não sabia afirmar se os interpretava da forma devida, para que tivesse certeza de que era capaz de senti-los, mas se aquele desejo intenso de proteger, de estar ao lado de alguém por uma eternidade, era o que chamavam de “amor”, então podia dizer que “amara” todos os seus amos e amava aquele atual da forma mais desmedida possível.

Mas, mesmo que sustentasse aquele desejo, de que seus laços com Cris durassem por toda uma eternidade, sabia que não era possível. Humanos eram seres frágeis, quebráveis e que se degeneravam com o tempo.

Durante todos seus anos de vida vinha assistindo, sem poder fazer nada, aqueles que amava partirem. E, todas às vezes que aconteceu, não conseguiu dominar aquele alvoroço que se apossava e comprimia seu interior por anos. Era algo estranho. Ruim. Muito pior que a fome. Aprendera a distinguir aquilo que os humanos chamavam de dor. Uma sensação tão fria que era capaz de torná-lo um ser arisco e selvagem.

Quando perdeu seu último amo, decidiu que não queria mais sentir aquilo, optando pelo o único meio de evitar aquela sensação: se manter afastado dos homens.

Durante muito tempo conseguiu seu intento, passou a viver sozinho na floresta, alimentando-se de outros animais, algumas vezes de humanos, esses bandidos, que se escondiam na sua região.

Ajudou outros humanos bons que se perdiam por lá. Porém, se afastava após concluir o resgate, algo que não era difícil, pois sua aparência monstruosa colaborava para que eles fugissem por vontade própria, sem sequer agradecê-lo.

Conseguiu viver daquele jeito por muito tempo, e estava indo bem, até o dia infortúnio em que resgatou aquela criança, evitando que ela fosse atacada por lobos selvagens.

Crispian não o temeu em nenhum momento, ao contrário, ele o desejou para si desde aquele primeiro momento. Sabia que se aceitasse o capricho daquele pequeno lorde passaria mais uma vez por aquela sensação horripilante, a qual não gostava nem de se recordar, mas não foi capaz de resistir quando sentiu os braços dele envolverem seu pescoço.

Amou e desejou aquela criança humana para si tanto quanto o pequeno também o desejou. Seus sentimentos foram recíprocos desde o primeiro encontro. Aquele era o poder dos sentimentos humanos: uma atração tão forte que, mesmo com toda a força que dispunha, não fora capaz de resistir.

Desde então, tomara uma nova decisão: seria a última vez.

Earthen buscou a mão de Cris na sua, notando aquela grande diferença de comprimento entre os dedos, os seus ficavam ainda mais largos devido as unhas compridas. Procurou os olhos dele e o viu prender a respiração, parecendo prever que estava prestes a dizer algo importante.

Seu pequeno Cris havia crescido; amadurecido, tornado-se forte. Mesmo que, ao seu modo de ver, ele nunca fora uma criança completamente ingênua e inocente. Por isso sabia que há muito ele estava pronto para aquele momento.

— Milorde, eu vou morrer.

Houve um profundo e pesado silêncio após aquele anúncio.

Crispian petrificou-se, o ar de satisfação que tinha na face dissolveu-se. Tinha ouvido muito bem, mesmo que preferisse não ter ouvido. Aquela fala nada tinha a ver com o que estavam conversando ou aquilo que ansiava ouvir de Earthen.

De repente o ambiente ficou mais frio, suas mãos e pernas tremeram e faltou ar. Quando deu por si as lágrimas desciam dos seus olhos.

Encarou Earthen, ele nunca fez e não seria naquele momento que faria uma brincadeira.

— Não chore — o homem-lobo pediu.

Crispian soltou das mãos dele para limpar os olhos.

— O que significa isso? — quis saber. — V- você não está mentindo — falou em um soluço, deixando o choro tomá-lo. — Deus, você não está mentindo, Earth. Você... não... — As pernas de Crispian fraquejaram e ele caiu sentado no chão. Earthen tentou segurá-lo, mas ele não se permitiu e ficou no chão, o choro aumentando. — Me solta! Me deixa, droga!

— Milorde...

— Eu não quero ouvir mais isso! Nunca mais! Está me entendendo?

— Milorde, eu estava me gabando em minha mente por você ter se tornado um homem forte, maduro. Não me decepcione mostrando esse lado mimado, por favor.

— Não, não! Eu não quero! — Crispian negou, agarrando-se as pernas de Earthen. — Não quero! Você não pode. Você é um ser poderoso! Imortal. Como, Earth? Como isso vai acontecer? Por quê? Como pode ter tanta certeza?

— Eu tenho vivido há anos, décadas, milorde. Muito mais do que pode imaginar. Meu corpo e minha mente estão desgastados e não suportam mais essa carga de vida. Por mais que estar ao seu lado rejuvenesça meu espírito, ele não faz isso com meu corpo. Estou deteriorando. O sangue não me alimenta mais, sinto fome o tempo inteiro e estou com medo que essa fome venha dominar minha consciência.

— Se está com fome então venha me tomar!

Earthen não se moveu.

— O que foi? Não deseja mais meu sangue? Você se excitava somente em sentir meu cheiro.

­— Ainda me excito, milorde. Garanto que sim. Mas a excitação está sendo sobreposta pela necessidade de me alimentar. Estou com muita fome. Essa fome vem crescendo com o passar do tempo. Se eu tomá-lo agora posso não conseguir parar como fiz das outras vezes.

— Quando isso começou acontecer, Earth? Quando descobriu que iria morrer? E como pode ter tanta certeza que irá? Deve haver uma forma...

Batidas repentinas na porta interromperam a fala de Crispian.

— Cris, você está acordado? Sei que é tarde, mas meu irmão chegou de viagem e deseja conhecer o lobo de que falam os rumores. Abra, vamos — pediu Benjamin.

Crispian foi erguido do chão pelo agarrar firme da mão de Earthen em seu braço. Sentiu quando ele tocou seu rosto, aproximou-se dos seus lábios e o beijou. O salgar das lágrimas se misturou ao beijo, que nunca pareceu ser tão ruim, tão amargo. A boca dele se afastou da sua, notou a respiração ofegante ser expelida entrecortada. As mãos de Earth apertaram com mais força os seus braços. As unhas estavam quase se cravando em sua carne. Ele parecia sentir dor, lutar contra seus extintos. Encarou aqueles olhos firmes, os quais começavam a se manchar de rubro.

Earthen aproximou a boca do seu ouvido e sussurrou.

— Antes de partir o deixarei com parte de mim. Por isso deitei-me com lady Catherine. Por isso me preocupo e desejo resgatar Sebastian. Eu o gerei para você, milorde. Para ser seu. Eu usei a fórmula que os humanos usam para se tornarem eternos. Dome-o, torne-o seu e terá parte de mim até o fim dos seus dias.

Foram às últimas palavras que Crispian ouviu de Earthen naquele instante.

Não soube como a porta fora aberta, mas viu quando Benjamin e o príncipe Albert entraram no quarto e se direcionaram diretamente ao lobo, que havia retornado a forma original.

Ouvia o que eles falavam, sentiu quando a mão de Albert apertou firmemente a sua em saudação. Teve certeza que respondeu algo, mas a sua cabeça não assimilava nenhuma informação.

Apenas notou, com certa surpresa, quando o olhar de Albert se direcionou totalmente para criatura de grande porte em seu quarto. Bem diferente do que imaginara a reação do príncipe o surpreendeu. A princípio ele se aproximou cauteloso, com a mão estendida na direção do animal, como se faz com os animais não domesticados, como se pedisse com aquele gesto permissão para se aproximar.

Ao perceber que o lobo não iria reagir de forma agressiva, Albert o tocou na face, acariciou com cuidado os pelos em seu pescoço e depois de algum tempo declarou com um sorriso grande iluminando sua face barbuda.

— Impressionante. Eu sabia que você não era fruto da minha imaginação. Você realmente existia e eu finalmente o encontrei.

O mais surpreendente para Crispian não foi à fala de Albert, mas a reação de Earthen a ela. Após o homem dizer aquilo o lobo lambeu a face barbuda diante dele, como se fosse um cão perdido que acabara de encontrar seu dono.

— O que significa isso, Albert? — Benjamin havia conseguido vocalizar a pergunta que engasgara na garganta de Crispian.

— Eu já encontrei esse rapazinho uma vez — ele continuou explicando, de forma íntima, enquanto alisava a face do animal. — Eu me perdi na floresta perto do monastério, havia recém chegado ao lugar. Ainda era um moleque, pouco inexperiente, mas que achava que sabia de tudo por ter sido criado no castelo, rodeado de todas as mordomias. Mas me separei do grupo na primeira cavalgada que tivemos pela floresta, fiquei perdido por dois dias, estava faminto, desnutrido e assustado. Achei que fosse morrer e se não fosse uma criatura me encontrar e me guiar de volta ao monastério, eu não estaria aqui. Durante anos achei que havia tido uma visão, um lobo negro gigante, com uma extensa faixa vermelha sobre os pelos, de profundos olhos azuis. Eu devo minha vida a você, rapaz. Eu nem acredito que pude encontrá-lo.

Benjamin riu debochado do irmão.

— Ah, Albert. Por essa eu não esperava. Não era você quem estava chamando o lobo de demônio agora pouco?

— Não sou eu, meu irmão tolo. São os rumores que ouvimos por aí. Apesar de...

A fala de Albert se perdeu, mas Crispian não precisava ouvi-la para compreender a conclusão: “Apesar de... Earthen ser mesmo um ser sobrenatural”. Albert sabia. Havia algo mais naquela história que o irmão de Benjamin não relatara. E o olhar entre eles dizia aquilo. Não só o olhar, mas a permissão ao toque e a retribuição de Earthen através das lambidas.

Crispian sentiu seu peito comprimido apertar ainda mais dolorido. Eram tantas novas informações que sua cabeça não acompanhou, havia apenas aquela dor latente na fronte, sentiu vertigem, faltou ar e, de repente, uma estranha exaustão o abateu e tudo se apagou; desmaiou.

...

Crispian acordou como se tivesse passado o tempo em um estalar de dedos. Os olhos arregalaram-se, mas estava submerso em uma grande escuridão. Soergueu-se em um impulso.

A cabeça girou, apoiou-a com ambas as mãos, apertou-a e esperou a tontura passar, enquanto sua mente se recarregava com todas as lembranças anteriores ao desmaio.

“Milorde, eu vou morrer”.

Aquela lembrança atingiu o peito de Crispian como uma faca afiada, fazendo-o jogar as pernas para fora da cama e se levantar, mas estava tão fraco que as pernas não suportaram seu peso e acabou caindo.

Apoiou-se na cama e tentou ficar de pé novamente. Ao conseguir, tateou a parede a procura da porta, encontrou a maçaneta e a puxou. Estava trancada. Bateu na porta e começou a gritar.

— Abram! Eu quero sair! Por favor, alguém?!

A porta se abriu e um rosto conhecido surgiu preocupado.

— M- Milorde, não deveria estar de pé.

— Onde está o meu lobo, Reiji? — perguntou, agarrando-se a roupa do rapaz em busca de apoio.

Era a única preocupação que dominava a mente de Crispian.

— Saiu em diligência na companhia do príncipe Albert, seus obreiros e o conde Bardo, milorde. Foram a procura de seu filho e sua mãe.

— Desde quando?!

— Há quatro dias. O senhor estava muito debilitado, foi consultado pelo curandeiro da corte após o desmaio e ele mesmo ministrou todos os antídotos para recuperá-lo. Esteve dormindo desde então.

— Para que direção eles foram? Eu preciso alcançá-los!

Crispian fez menção de que iria passar pela porta, mas foi impedido pelo guarda que se interpôs no caminho dele.

— O que está fazendo? — Crispian riu desnorteado. — Deixe-me passar!

— Não posso — Reiji contrapôs rápido. — São ordens do rei para que não permitisse que o senhor deixasse o quarto antes das ordens dele. Além disso, o senhor ficou quatro dias sem se alimentar, precisa comer e recuperar as energias. Fora que... está se formando um caos nas ruas.

— Caos? Por qual motivo?

— O Rei suspendeu as audiências à população por tempo indeterminado. Os que estavam aguardando há semanas para serem atendidos se revoltaram e quiseram invadir o salão. O rei... — Reiji suspirou, incerto em dar conclusão a informação, todavia iniciara, então decidiu concluí-la. — O rei ordenou que eles fossem tirados do castelo à força e se resistissem era para usar de meios drásticos.

— Não fizeram isso, não é? São os súditos dele. Gente de bem.

— Sim, mas...

Crispian não precisava ouvir, havia entendido.

— Quantos morreram?

— Muitos, milorde. Entre eles, mães com crianças e idosos.

— Meu Deus! Por que vocês guardas obedecem qualquer tipo de ordem sem sentido assim? São loucos?

— Eles apenas cumprem as ordens cegamente por medo de serem decapitados, milorde.

— E os conselheiros não fizeram nada? Ninguém interveio, Reiji?

— Não, meu senhor. Como o Conselheiro Alfa estava desacordado o rei não quis ouvir ninguém e o próprio Baltazar fez questão de garantir que ninguém interferisse.

— Aquele maldito velho-cobra!

— Mas a situação vem piorando. — Reiji teve o olhar preocupado de Crispian de volta para ele. — Depois da chacina as famílias dos mortos se revoltaram e começaram a se juntar em uma grande manifestação, incitando outros aldeões. E para que a ordem fosse restabelecida o rei comandou aos seus soldados que tomassem as ruas e permitiu que usassem de violência novamente. Não preciso dizer ao senhor que estão acontecendo mais mortes, não é? A situação vem se agravando, milorde. Não tem como o senhor deixar o reino nesse estado de calamidade do momento.

Crispian parou um segundo e decidiu pensar melhor sobre a situação. Sentiu-se fraco e acabou voltando para dentro do quarto, onde se acomodou na beirada da cama.

Reiji buscou uma lamparina do corredor e entrou no quarto iluminando-o. Fechou a porta, passando a ascender as outras lamparinas dispostas sobre os móveis do cômodo, enquanto o lorde parecia raciocinar sobre tudo que lhe fora dito.

Havia dormido por quatro dias, Crispian ponderou. Estava realmente fraco e se fosse sair do reino poderia ser capturado ou até morto pelos rebeldes. Voltou a se deitar, repousando a mão sobre a testa.

— É melhor assim, milorde — concordou Reiji, aproximando-se do lorde na cama. — Vou avisar ao rei que acordou e solicitar para que o curandeiro venha vê-lo. Também precisa se alimentar, vou pedir que façam algo nutritivo para o senhor recuperar as... — a mão de Reiji foi apanhada e ele interrompeu sua fala.

— Não faça nada disso, Reiji.

— Senhor...

— Não diga a ninguém que acordei, por favor. Eu preciso fugir daqui e essa é a minha grande oportunidade.

— Fugir? Mas o senhor serve a coroa, não é um prisioneiro.

— Eu não sou? — Crispian ergueu-se e se sentou na cama, fazendo questão de manter seu agarre firme ao pulso do guarda. — Olhe nos meus olhos e diga que não sou, Reiji? Você está vigiando a minha porta e precisa de ordens até para me permitir sair no corredor e tudo isso por qual motivo? Eu sou um prisioneiro de Benjamin desde que cheguei nesse maldito lugar!

O guarda engoliu em seco.

— Você viu com seus próprios olhos. Na verdade você também sentiu. Ele o obrigou a participar. Benjamin toma meu corpo a força e me usa como se fosse sua meretriz, seu brinquedo. Você viu, Reiji. Eu sou um homem. Eu tenho meu orgulho que está sendo jogado na lama dos porcos desde que aqui cheguei. E se até o momento nada fiz foi por puro medo. Esse rei louco decapitou meu pai na minha frente, meu pai não teve culpa de nada. Assim como as pessoas que ele mandou matar lá fora são! Elas queriam apenas uma audiência para expor suas necessidades. Benjamin inventa desculpas para matar e usar de violência descabida. Ele quer reinar através do medo. Deixemos que ele seja destronado. Do pouco que conheço, acredito que Albert, o próximo sucessor da linhagem, será um rei muito melhor que ele. Reiji, por favor, ajude-me a fugir? Só posso contar com você agora. Irei ao encontro de Albert e explicarei com clareza tudo que vem ocorrendo.

O rapaz engoliu em seco mais uma vez, mas o olhar vívido de Crispian, em contraste com a debilidade do agarre fraco em seu pulso, fazia-o crer. Sua família toda poderia sofrer as consequências de sua traição, em contrapartida, se o caos continuasse se alastrando, sua família poderia ser atingida de qualquer forma. Todos sabiam que seu pai servia a Benjamin e lá fora isso poderia desfavorecê-los.

Ademais, o lorde de Valdávia tinha razão, Benjamin era um rei insano, ser destronado era a melhor opção para Valais. Puxou sua mão do agarre de Crispian para deixar a lamparina de lado e ter as duas mãos livres para apanhar as do lorde e segurá-las firmemente entre as suas, enquanto olhava no fundo daqueles olhos azuis claros e tão límpidos.

— Estou do seu lado, milorde. Diga-me o que devo fazer.

Crispian abriu um grande e aliviado sorriso, mesmo que ainda não tivesse motivos para se sentir daquela forma. Precisava encontrar seu Earthen com urgência e tirar com ele a imprecisão que se instaurou em seu peito sobre aquela estranha conversa de que ele estava prestes a morrer.

Continua...


Notas finais do capítulo

Vou tentar não demorar no próximo, já sabem que não é uma promessa, né? ;D
Obrigada a todos que lerem, meu obrigada maior para todos que deixarem seus comentários!
Até o próximo!

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