Fanfic escrita para o Coculto 3, uma troca multifandom de fics realizada pela comunidade Saint Seiya Superfics.
Olho Azul Apresenta:
A Vulnerabilidade Humana
Aquela luz era dolorida demais. A ponto de queimar seus olhos.A Vulnerabilidade Humana
- Que bom que acordou! – Era Shun.
Ikki olhou ao redor; estava em um quarto de hospital. Não sentia seu corpo. Não conseguia sequer mover o pescoço.
- Vou chamar o doutor! – O rapaz saiu de seu campo de vista, fazendo a porta bater sonoramente.
O barulho alto não incomodou a cabeça de Ikki. Esta parecia flutuar. Analgésicos...
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- Não consigo usar meu cosmo - foi a primeira coisa que Ikki realmente falou naquele quarto de paredes rosa claro.
- É pra você melhorar, não usar o cosmo.
O rapaz se surpreendeu quando quem lhe respondeu não foi Shun, mas Saori. Era como se aquela voz houvesse viajado de um passado distante e falasse com outro eu que não o dele atual, não com aquele Ikki aleijado, defeituoso.
- Por que justo você?
- Por que estou aqui? Bem, você é meu cavaleiro. Por que eu não me preocuparia?
- Não faça perguntas difíceis...
Ikki tentou virar-se de novo. Bem, ao menos podia falar, apesar de a sua língua parecer estranha.
- Eu não estou falando direito, né? – Notava ele agora que o som que voltava a seus ouvidos era composto de palavras quebradas, embora ele conseguisse pensar claramente no que dizia.
- Bem, eu compreendo. Isso já basta. – Saori tinha uma voz suave.
O cavaleiro de Fênix sentiu-se tomado pelo cansaço e seu corpo se entregou.
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Ele não se lembrava mais de como viera parar ali. A sensação constante era de estar tendo pesadelos durante todas as noites. Noites longas e sombrias. Até aquele momento, ele nunca havia experimentado aquele sentimento que lhe vinha salgado na boca, ardido na pele. Era a vulnerabilidade.
Não conseguia queimar o cosmo. Sempre que o tentava, era como se sua energia se voltasse imediatamente contra ele mesmo, queimando-o. E ele ainda o tentava...
Aos poucos, conseguira diminuir o instinto. Mas ainda havia vezes em que, como uma criança que estende a mão antes de ir ao chão, ele queimava o cosmo com toda a força. E se queimava mais.
Nunca fora de gritar. Muitas vezes apanhara na Ilha da Rainha da Morte; foram anos de torturas físicas e psicológicas que o tornaram alguém acostumado à dor. E agora, quando queria gritar com todas as forças – ainda que estas fossem tão poucas – a máscara em seu rosto forçava uma placa de ferro dentro de sua boca, rasgando-a por dentro. Os pregos dessa placa furariam sua língua se Ikki acabasse por gritar demais.
Em seu pescoço, havia uma banda de metal que o prendia a uma cadeira. No momento, alguém girava uma manivela, fazendo a banda quase esmagar seu pescoço.
A maior preocupação de Ikki era saber que não morreria ali. Eles não permitiriam. Iriam exatamente até o limite de suas forças e o soltariam.
E assim foi que o jogaram de volta à sua cela escura e úmida. Seu corpo não mais sentia as feridas. Mas a sensação de ser sufocado por aquela manivela, mesmo o som que esta fazia ao rodar prolongavam-se em seu corpo, fixavam-se em seus cinco sentidos.
Aquele momento, a sós na cela, fazia Ikki ver que as torturas não passavam de pesadelo. Agora o dia começaria. Seria alimentado. Poderia descansar. Mas seus sentidos continuariam lá, naquela sala.
Então, a noite viria e ele voltaria a ser chicoteado. Xingado. Cuspido. Por-lhe-iam a máscara mais uma vez, travando sua língua entre as agulhas.
Desta vez, eles o penduraram no teto com uma gargantilha em seu pescoço com uma haste vertical de pontas afiadas, uma logo abaixo de seu queixo, outra logo acima do peito. Doía... Mas nesta noite Ikki conseguiu ficar sem usar o cosmo.
Por fim, o dia raiou e Ikki foi jogado na poça d’água que era sua cela, o líquido sujo fazendo arder as novas feridas um pouco mais que as antigas.
Era como se aquilo fosse continuar eternamente. Como se toda noite fosse ter um pesadelo. E, durante o dia, ele poderia sonhar. Às vezes via Shun, às vezes Esmeralda, às vezes... Às vezes ele só dormia exausto. Noutras, por fim, ele era torturado novamente. Até mesmo sua mente havia se aliado ao inimigo.
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Ikki havia sido salvo daquela prisão por Seiya e os demais, como já deveria esperar. Eles não falhavam uma só vez, não era? Mas uma parte dele permanecia naquele pesadelo, ainda vulnerável aos caprichos daquelas pessoas.
Com o tempo, o qual ele não conseguia calcular direito, o cavaleiro passou a manter-se acordado por mais tempo. Isto era bom: quanto mais tempo assim se mantivesse, menores as chances de reviver aqueles momentos em seus sonhos.
Os analgésicos foram diminuindo também, trazendo-lhe de volta a dor e parte de seus movimentos. Contudo, continuava preso à cama.
- Pode chegar mais perto? – pediu a Saori, em outra ocasião em que ela foi vê-lo.
- Não consegue me ouvir daqui?
- Mas não consigo te ver.
Ela era apenas uma menina, foi o primeiro pensamento dele ao tê-la em seu ângulo de visão. Como viera apenas para vê-lo, ela não usava nenhuma roupa formal de Saori Kido ou de Athena. Era o que uma japonesa de sua idade estaria usando na rua naquele momento. Ikki não se lembrava de outra vez em que vira Saori daquela forma.
- E pra que quer me ver? – Ela arqueava as sobrancelhas. Aquele tom sim era típico daquela mulher.
- Não consigo usar meu cosmo - anunciou enfim. – Tento, mas não consigo. Minhas pernas também não se mexem.
- Ikki! Você ficou por dois meses nas mãos daquelas pessoas que se fortaleciam pelo sofrimento.
- E quanto tempo mais ficarei aqui...? – Ela não entendia? Não conseguia ver que ficar preso àquela cama era mais uma lembrança do quão vulnerável ele se encontrava? – Mande me darem alta.
- É suicídio. Você ficou sendo torturado por dois meses! Como pode querer mexer suas pernas em três semanas somente?
- Faça parar esta tortura.
Saori deu-lhe as costas e saiu de sua vista.
Eles nunca mais conversaram.
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Saori não conseguiu mais voltar.
Sentia-se fraca demais para ir até Ikki, alcançá-lo. De fato, por muitas noites sonhara com uma conversa sincera em que afinal Ikki conseguia entender o quão preciosa sua vida era, independente do uso dos cosmo.
Mais de um ano havia se passado. Ikki passara a morar em um pequeno apartamento alugado por Shun em um bairro afastado. Ele conseguia andar agora e passara a trabalhar entregando jornais.
Às vezes, ela acordava às três da manhã e ia vê-lo, de longe, subir em uma moto e entregar até o último rolo de papel. Frequentemente, Ikki também ficava orientando motoristas nas estradas à noite, trabalho que emendava com a entrega dos jornais. À exceção das despesas médicas, seu ex-cavaleiro de Fênix não aceitava nenhum dinheiro mais vindo da Fundação e a jovem suspeitava que, em breve, mesmo aquelas despesas seriam pagas inteiramente por ele.
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Todavia, a deusa havia se enganado.
Em um exame de rotina, descobriu-se um objeto encravado em Ikki. Não era possível retirá-lo cirurgicamente, e não havia um só médico que aceitasse fazer tal operação, pois que seria morte certa. Aos poucos, aquele objeto o estava envenenando.
E a moça observou de longe a saúde do homem se deteriorar. Ele largou os dois empregos e começou a trabalhar em uma loja de conveniências, mas mesmo esta função ele teve que deixar para se mudar permanentemente para o hospital.
Foi quando Saori, enfim, encontrou um cirurgião que, por um pagamento muito superior ao normal do mercado, aceitou realizar a cirurgia.
Sentada do lado de fora da sala de cirurgia, ela se lembrou daquela vez no hospital, quando Ikki a olhara com olhos cheios de esperança de que ao menos seria poupado da dor que sentia.
Saori entendia. Ela o amava demais para não entender como ele se doía por dentro em razão da vulnerabilidade que sentia. E ela agora queria voltar ao tempo e dizer para ele não se sentir assim, pois mal algum o tocaria. Pois ela estava ali para ele. Sempre. E ela sempre o amaria.
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Ikki sentiu o momento em que Saori entrou seu quarto. Era quase como se ele pudesse ouvir seu coração. Mesmo após tantos meses, mais de um ano sem vê-la, ainda se lembrava da última vez em que conversaram, de seu último pedido à moça; “faça parar esta tortura”, ele lhe havia dito.
E, agora, aquele pesadelo havia terminado, enfim. Mas o quarto ficara tão vazio depois que seu irmão e seus amigos saíram... Ele não imaginava que o fim daquele longo sofrimento seria tão solitário.
- Eu vim, Ikki... – disse Saori, que até então apenas o olhara calada.
O rapaz tentou observá-la. Pálida, com os olhos fundos, a maquiagem borrada, os cabelos despenteados. Ela havia envelhecido dez anos no mínimo.
- Eu precisava tanto te dizer... que você não está só, que eu estou aqui... – Ela pegou sua mão gelada. – Eu sempre estive. Mesmo quando a chuva caía naquelas noites escuras em que havia apenas você e uma fileira de carros na estrada. Ou naqueles dias em que você percorria sua cidade naquela moto. Foi quase criminosa a forma como sempre estive contigo. – Ela riu, levando a mão do homem deitado na cama até o rosto. – E tão idiota... fui tão idiota de nunca ter podido nem te entregar um copo de café quente para aquecê-lo.
Ikki a olhava admirado, sentindo o peito quente. Não havia mais dor alguma. Aquela dor constante que ficara em seu corpo desde as noites de tortura sumira por completo e era substituída pelo calor vindo dos sentimentos daquela jovem. O cosmo de Saori ardia ternamente.
- Agora entendo como se sentia naquele dia - continuava ela, fechando os olhos ao afundar o rosto naquela mão emaciada. - Não me arrependo de não ter lhe concedido aquele desejo, Ikki. Mas agora... não faz sentido eu te dizer isso, né? – Seus olhos se abriram novamente e as lágrimas transbordaram. – Agora, o que importa é que você não esteja só. Eu ficarei aqui até que você não precise mais de mim. Ninguém mais vai te ferir, meu amado Ikki...
Ikki tentou passar a mão sobre a cabeça da menina que chorava copiosamente, apesar de agora olhar firme para seu rosto e lhe sorrir. Ele queria limpar suas lágrimas; ele queria protegê-la mais. E, ao mesmo tempo em que era banhado por aquela energia cálida enviada pela moça, o rapaz sentiu um uma chama explodir.
Não era tarde demais, ele queria dizer a ela. Ele havia entendido o que ela quisera lhe dizer e agora ele podia sinceramente explodir o universo dentro dele. E assim ele fez.
Saori levantou de repente da cadeira olhando para o teto do hospital. Aquela energia... Era...
Ela desabou a chorar novamente, desta vez não se contentando apenas com a mão. Ela afundou seu rosto no peito inerte do corpo que um dia fora de seu precioso cavaleiro, amigo e grande amor.
Enquanto seus olhos ardiam sem mais lágrimas para derramar, Saori imaginava se algum dia poderia deixar de lado seus sentimentos humanos e apenas ficar feliz por Ikki haver reencontrado seu cosmo, por ele agora sentir-se forte o bastante para enfrentar seu destino.
Mas no momento, tudo o que ela conseguia fazer era segurar firme seu corpo, como se aquilo pudesse prender a alma que havia muito já partira.
Fim!
Anita, 03/05/2010
Notas da Autora:
Enfim, esta história foi completada. Após tantas tentativas e revisões e reformas, parece que tudo acabou.
Espero que tenham gostado! Comentários, críticas e sugestão são bem-vindos.
E até a próxima!
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